A Otávio Dulci, companheiro sempre
“Agora, é simples”, diz o post/panfleto : uma foto de Bolsonaro, outra de Haddad. “Escolha entre o policial e o ladrão”.
Parece simplório, mas não é. Há aí uma narrativa, uma agenda e um personagem. Até chegar a esta síntese, houve um conceito, um longo investimento em uma narrativa e, agora, há um personagem para encarná-la. O conceito de que o PT é “neopatrimonialista” (em linguagem direta: assalta o poder para roubar), formulado por FHC a partir de uma interpretação fraudulenta da obra de Raymundo Faoro, que organiza a cobertura das grandes empresas de mídia desde 2005. A narrativa de que o mal do Brasil é a corrupção encarnada pelos “políticos” – principalmente pelo PT- atualizada neste final de primeiro turno pela parceria Moro/ Globo, vazando a delação premiada de Palocci. Bolsonaro é o grande ator (“mito”, “Messias” ou “herói”?) que vem de fora do sistema político para limpar o Brasil e salvá-lo da crise moral em que se afunda.
A fórmula “bandido” faz a passagem do primeiro Bolsonaro (o que cresceu no Rio com a bandeira de que “bandido bom é bandido morto”) com o Bolsonaro presidente ( o que vai salvar o Brasil dos bandidos do PT). Bolsonaro firma-se como o grande herdeiro do antipetismo, construído sob a direção do PSDB, mas hoje já enlameado pela imagem da corrupção. Bolsonaro é limpo: o capitão é o soldado, o “polícia” do Brasil: as Forças armadas, em meio ao descrédito das instituições, não seriam as mais confiáveis?
Roger Griffin, o grande estudioso do fascismo clássico e contemporâneo, identifica o “fascismo genérico” exatamente a partir desta noção central de uma regeneração moral de uma sociedade nacional em crise: Bolsonaro vem limpar o Brasil dos bandidos que assaltam nas ruas, assaltam o Estado, assaltam os valores da família. “A contrarrevolução”, afirmava o reacionário Joseph de Maistre, “não é o oposto de uma revolução; é uma revolução oposta”.
Bolsonaro vem continuar o ideal da Lava-jato, de forma mais ampla e por outros meios. Lula e o que ele significa sobreviveu à Lava-Jato mas não sobreviverá a Bolsonaro. A violência é necessária para extirpar da sociedade a sua parte doente. A esquerda, em um sentido amplo, deve ser eliminada para o Brasil ressurgir sadio. Sem corrupção, o Brasil voltará a crescer e será possível ter dinheiro para fazer as políticas que o povo precisa: não é esta a grande formula do quadro popular “O Brasil que o povo quer”, exibido diariamente nos últimos meses pelo Jornal Nacional?
Nossa agenda, narrativa e ator
No primeiro turno, 90% ou mais do esforço da campanha de Haddad foi o de promover a passagem dos votos de Lula. Pode-se discutir se, a partir da sua chegada aos 20 % das intenções de voto, a polarização com Bolsonaro poderia ter sido já iniciada. Mas, este é o principal desafio do segundo turno. Pois se trata, fundamentalmente, de disputar a narrativa, a agenda e o ator com a narrativa fascista de Bolsonaro. Quem vencer esta disputa vencerá as eleições.
Em uma expressão aproximativa (que se vale de uma fala do companheiro Jacques Wagner), poder-se-ia formular assim: o professor que quer continuar os sonhos de Lula do Brasil feliz e em paz versus o mito do torturador que é inimigo dos direitos do povo brasileiro.
Sim, é preciso firmar, dar a conhecer mais, expressar a autonomia de voz, construir a liderança política de Haddad. Mas seria um verdadeiro desastre pretender descolar a sua candidatura da presença central e polarizadora de Lula: Bolsonaro já o chama de “patife”, “preposto de bandido” no início da campanha. O centro de sua biografia é o de ter sido professor da USP e ministro da Educação dos governos Lula. Deixar Lula para trás seria uma verdadeira quebra de narrativa, uma desorganização no centro da coerência e da imagem da campanha.
A agenda central é: quem defende e vai expandir e quem é inimigo dos direitos do povo brasileiro. São os direitos sociais e do trabalho, os direitos das mulheres, negros e gays, os direitos à liberdade e de viver em paz. Não há por que cair no erro de opor uns direitos a outros, como apressadamente concluíram alguns: a rejeição a Bolsonaro das mulheres, principalmente pobres, foi quem garantiu o segundo turno (a diferença de votos de Bolsonaro entre homens e mulheres continuou muito alta até o final) e continua sendo fundamental. Denunciá-lo como racista continua sendo fundamental: o assassinato brutal e covarde do Mestre da capoeira baiano é um símbolo dramático da campanha!
Os direitos sociais e do trabalho devem ir ao centro agora. Ampla concordância: emprego, salário-mínimo, saúde, educação, segurança são as principais reivindicações do povo brasileiro segundo as pesquisas. Bolsonaro votou com Temer contra o povo brasileiro em todas estas questões. Ele votou a favor de não investir mais em educação, saúde, segurança, Bolsa Família por vinte anos!
Devemos, a partir desta narrativa de esquerda e desta identidade, acolher o desejo do povo brasileiro de viver em um país livre da corrupção sistêmica. Não é o centro, mas este compromisso deve ser firmado. Não firmá-lo é dar razão, pela omissão, a Bolsonaro. É preciso combater a maior fake news desta campanha: Bolsonaro se apresentar como líder do combate da corrupção no Brasil! A consciência do povo brasileiro já não teve a experiência de Aécio?
Por que chamá-lo de “mito do torturador”? Ora, porque o mito do “mito” é o torturador Brilhante Ustra. Não se tem notícia da prática de Bolsonaro como torturador mas como personagem político ele se construiu como o herdeiro do coronel Ustra. A expressão “mito” aí vale como desconstrução: o capitão não representa as Forças Armadas brasileiras, em sua história e em seu conjunto, mas em seu pior momento e na sua facção mais tenebrosa. A agenda da paz e da democracia contra a violência e a ameaça de ditadura deve estar sempre conosco.
Por que é possível e até provável vencer?
Este artigo está sendo escrito quando ainda não saiu nenhuma pesquisa do segundo turno. Mas é provável que, assim como na última semana do primeiro turno, com exposição no Jornal Nacional, Ibope e Datafolha venham a público para expor a impossibilidade de uma vitória de Haddad neste segundo turno. As duas pesquisas não abaixaram a votação de Haddad (convergindo no mesmo erro de previsão, coincidência, acredite quem quiser), durante os últimos dias do primeiro turno, forçando a possibilidade de vitória de Bolsonaro no primeiro turno, contra todas as outras pesquisas?
Mas isto não é verdade. É exatamente o contrário disso: a vitória de Haddad é possível e até provável, se vencer a disputa de narrativa e de agenda.
O único movimento político que confrontou Bolsonaro decididamente até agora foi o #Ele não! O candidato do Bolsonaro imunizou-se à crítica pelo atentado criminoso que sofreu durante um período decisivo. Alckmin pregou contra ele por ser um candidato fácil de ser vencido pelo PT. A campanha de Ciro estava legitimamente voltada para disputar o voto útil com Haddad. E a campanha da Haddad só iniciou o ataque e tardiamente na fase de ascensão final de Bolsonaro.
Na última quinzena, para Bolsonaro já convergia o fundamental do sistema econômico, político, midiático, das igrejas conservadoras e uma dinâmica de voto útil. Os 46 % dos votos válidos a Bolsonaro neste contexto– 49 milhões de votos, 1/3 do eleitorado brasileiro – representam um estado ótimo de sua performance. Certamente, parte não desprezível destes votos recentes são de um Bolsonaro ainda não submetido à crítica e não estão cristalizados.
No Sudeste e no Sul, a campanha de Haddad não contará com fortes apoios na campanha de segundo turno para os governos estaduais. Esta é a sua maior dificuldade. Mas o apoio de Dória ou Zema ou Witzel trará novos votos a Bolsonaro? Em que medida o voto à presidente, em uma eleição tão polarizada, não seguirá fundamentalmente uma dinâmica nacionalizada?
Haddad tem agora três novas vantagens. A passagem de votos de Lula, em seu primeiro e necessário patamar, já está realizada. Agora, a sua candidatura pode-se dedicar integralmente à polarização e a afirmação de seu programa para o país. Mesmo no auge das fake news, na última semana de campanha, a sua rejeição ainda era menor que a de Bolsonaro!
Em segundo lugar, receberá o reforço decisivo de Ciro e de seus eleitores, além da importantíssima militância de Boulos e do PSOL, do apoio formal do PSB. Pode ainda contar com o apoio, mesmo que com mediações, de setores democráticos do PSDB e da Rede. Contará, sem dúvida, com praticamente todo o apoio dos setores artísticos, intelectuais e de lideranças religiosas. Terá a seu lado toda a militância dos movimentos sociais.
Em terceiro lugar, terá metade das inserções e da propaganda na TV, no momento mais decisivo da disputa. Tem todas as condições de sair-se com forte vantagem nos debates, que Bolsonaro comparecer.
A maioria do povo brasileiro, se bem informado, no pluralismo de suas razões, não apoiará Bolsonaro, mas Haddad. É uma previsão condicionada, é certo, mas provável em um espaço de indeterminação.
A ilusão é a esperança sem razões. A esperança se afirma, em tempos assim, só com uma extraordinária mobilização da vontade, mas precisa de razões. E há muitas para confiar que uma vitória de Haddad ainda é possível e até provável.
Juarez Guimarães é professor de Ciência Política da UFMG.
Artigo publicado originalmente no portal Carta Maior