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Por que não se formou um plano federal de cargos, carreira e salários no SUS? | Ronaldo Teodoro

A efetiva universalização do direito a atenção integral, resolutiva e de qualidade à saúde é indissociável da superação da precarização do trabalho no SUS. Dito de outro modo, sem um plano de cargos e salários não será possível avançar na construção de uma rede assistencial – com serviços de atenção primárias, exames e especializada atenção hospitalar efetivamente integrados.

Todavia, passados 34 anos de sua criação, inexiste qualquer vestígio de uma carreira do SUS para seus trabalhadores e trabalhadoras, a exemplo do que existe para os trabalhadores das universidades federais, do Judiciário e da Polícia Federal.

Foto: Reprodução/ Marcello Casal Jr./ Agência Brasil

No SUS, o que se observa é uma progressiva deterioração das condições de trabalho e precarização dos vínculos ao longo do tempo. Segundo pesquisa realizada por Maria Helena Machado os profissionais da enfermagem, por exemplo, que são em sua maioria mulheres, “vivem em condições precárias de sobrevivência”, possuem múltiplos vínculos de emprego e convivem com ambientes de trabalhos inseguros “que os impede de exercerem com dignidade suas atividades laborais”.

No processo de redemocratização do Estado brasileiro, após a Constituição Federal de 1988, várias áreas da vida social ganharam uma condição constitucional inédita. Além da saúde pública, a expansão da educação e dos direitos à assistência social exemplificam essa condição. Todavia, na contramão da legitimidade pública que essas agendas assumiram, a legislação trabalhista e os servidores públicos recebia críticas de vários lados.

Em conexão com esses ataques se aprofundava também a longa marcha de descredibilização da administração pública do Estado brasileiro.

Nos dias atuais, quando observamos esses dois movimentos históricos – de crise de legitimação dos direitos do trabalho e da administração pública do Estado brasileiro – compreendemos melhor porque inexiste nesses trinta anos de SUS uma carreira para os seus trabalhadores e trabalhadoras.

Tradição desenvolvimentista x deslegitimação do Estado

Como apontado por muitos estudos, a estrutura das carreiras públicas no Brasil está diretamente ligada ao que se convencionou chamar de tradição nacional-desenvolvimentista, que se estruturou de 1930 ao pré-1964. É fruto dessa época o Departamento de Administração do Setor Público (DASP), criado em 1938 para pensar a estrutura das carreiras públicas que colocariam de pé o Estado brasileiro.

Nessa concepção, constava a valorização do Estado enquanto núcleo de uma modernização pensada a partir do planejamento público no qual o funcionalismo assumia grande centralidade.

Registros históricos como a proposta de Emenda Popular levada à constituinte de 1987 e 1988 atestam a preocupação com uma política nacional de recursos humanos que garantisse aos profissionais de saúde um plano de cargos e salários, com remuneração condigna, isonomia, admissão por meio de concurso público, estabilidade no emprego e incentivo à dedicação exclusiva e tempo integral, além de condições adequadas de trabalho.

A consciência da importância de uma carreira de Estado para os trabalhadores do SUS esteve presente na concepção do sistema. Até o início dos anos 2000 as propostas para um plano federal de cargos e salários esteve fortemente presente nos debates sobre a construção do SUS.

No pós-1988, a crise de legitimação do trabalho coincide justamente com a desorganização dessa tradição de desenvolvimento nacional, que tinha o trabalho regulado por direitos como parte do seu programa político. No lugar desse paradigma se impôs a tese de que o Estado era ineficiente, gastador, patrimonialista e corrupto, enfim, um peso para a integração do país ao dinamismo do mercado internacional.

Paradoxalmente, foi nesse momento de crise de legitimação do Estado, da cultura do planejamento público e do direito do trabalho que se iniciou a expansão do SUS.

No lugar da tradição estatal se estabeleceu uma nova linguagem: a new public management (ou nova gestão pública). A partir daí, a gramática anterior da administração pública que abrigava importantes conquistas trabalhistas como a progressão continuada e a estabilidade no emprego, passou a ser substituída pela ideologia de uma suposta ‘gestão eficiente’, combinada a crescente flexibilização e redução de custos.

Aos poucos as carreiras públicas foram se tornando uma linguagem do passado e os vínculos de trabalho no SUS foram se tornando uma responsabilidade quase exclusiva dos municípios.

Tal linha definiria um processo de profusão dos modelos de contrato e parcerias com o setor privado como as OSSs  e OSCIPs, que têm no setor da saúde um dos seus principais setores de penetração. Em meio a um processo de guerra comunicacional, a chamada nova gestão pública se afirmou no centro do Estado brasileiro, funcionando como uma verdadeira reforma trabalhista regressiva.

Como consequência, a fragilização da tradição estatal e a desvalorização dos direitos do trabalho aprofundaram desafios para a implementação do sistema de saúde. Uma carreira do SUS se coloca como a possibilidade de ofertar condições dignas de trabalho e ao mesmo tempo superar questões como a desigualdade da distribuição de profissionais da saúde, além de contribuir para a regionalização e a estruturação da rede de atenção à saúde.

É preciso compreender que parte importante dos problemas do SUS está diretamente ligada à questão do trabalho. Em síntese, o direito público à saúde é indissociável dos direitos públicos do trabalho.

Ronaldo Teodoro é cientista político e professor do Instituto de Medicina Social (IMS – UERJ).

Via Brasil de Fato MG

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