O governo Bolsonaro se beneficiou até agora do apoio ambíguo dos partidos neoliberais e do horizonte limitadamente institucional da oposição movida pelos partidos da esquerda brasileira. Mas sem um movimento político social, nacional e unitário pelo seu impedimento democrático, ele não será derrotado pela esquerda
Em seu livro referencial da denúncia do golpe de 2016, “A democracia impedida”, Wanderley Guilherme dos Santos formulou um dilema para as esquerdas brasileiras: se abandonassem a luta institucional e eleitoral, corriam o risco de se isolar e ceder sem resistência todo o espaço de manobra para os que haviam liderado o golpe na democracia brasileira; caso optassem por fazer a luta no terreno institucional e eleitoral, corriam o risco de legitimar o processo do golpe e seus desdobramentos institucionais.
No 6 Congresso Nacional do PT, este dilema encontrou uma resposta de solução ótima com a manutenção da candidatura Lula à presidência mesmo na prisão e sua confirmação até o impedimento final. Assim, o movimento político de denúncia do golpe servia, ao mesmo tempo, para criar as bases sociais e políticas do que seria a candidatura Haddad/ Manoela à presidência.
No 7 Congresso do PT, tal dilema encontrou uma resposta diferente: por uma maioria –contra a posição que defendia o impeachment de Bolsonaro -, optou-se por não defender o seu impeachment, deixando em aberto a questão para uma futura atualização de posições. Claramente, o horizonte que se anunciava era disputar com Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2022.
A atualização de posições – a definição de uma posição favorável ao impeachment de Bolsonaro pelo Diretório Nacional do PT – veio em meados do primeiro semestre de 2020, em meio a um recrudescimento da crise do governo. Mas teve sempre uma orientação institucional: ao invés de se organizar para organizar a luta na sociedade, dificultada sobremaneira pela pandemia, ficou-se na expectativa de algum encaminhamento dos inúmeros pedidos de impeachment pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Como este bloqueou o encaminhamento, a “luta” pelo impeachment desapareceu nas disputas eleitorais municipais de 2020.
Na disputa da presidência da Câmara Federal, a posição adotada pela maioria do PT e PC do B –ao contrário da posição finalmente decidida pelo PSOL- foi de apoiar uma candidatura nascida da direita neoliberal, que não assumia compromisso com o encaminhamento de um pedido de impeachment. Com a vitória esmagadora do candidato apoiado por Bolsonaro para a presidência da Câmara Federal, esta perspectiva de luta institucional pelo impeachment, teria ficado superada como inviável.
A entrevista de Lula a Kennedy Alencar, do UOL, expressa limpidamente esta pragmática. O tempo político e a inviabilidade institucional tornam a política do impedimento democrático de Bolsonaro inoportuna. O centro da estratégia política desde agora deveria ser uma candidatura à presidência em 2022 liderada pelo PT, capaz de provavelmente ir ao segundo turno em uma polarização com Bolsonaro, com chances de vitória. Uma unidade das esquerdas e centro-esquerdas, impossível de ser construída em um contexto de vários protagonismos eleitorais, seria assim concebida apenas para o segundo turno.
Esta pragmática política, voltando ao dilema de Wanderley Guilherme dos Santos, encerraria o PT na armadilha institucional de legitimação do golpe e seus desdobramentos eleitorais. E geraria três dilemas em sequência: o dilema da identidade, o dilema da ilusão eleitoral e o dilema do protagonismo solitário. Eles só poderiam ser superados com uma política que combinasse a organização social, nacional e de forma unitária de um movimento pelo impedimento democrático de Bolsonaro com a construção de uma candidatura frentista de esquerda à presidência.
Pragmatismo institucional e crise de identidade
Desde 2014, vem ocorrendo uma forte viragem à direita na correlação de forças que organiza a institucionalidade brasileira. A derrubada do governo Dilma, o governo Temer e, mais ainda a ascensão de Bolsonaro ao governo central do país, arrastaram o funcionamento das instituições pactadas na democracia liberal da Constituição de 1988 para um cenário de degradação e de militarização,ou ainda, de aberta fascistização. Procedimentalismos democráticos mínimos no Congresso Nacional foram quebrados, assim como toda a infra-estrutura participativa duramente construída, em um contexto de extrema judicialização arbitrária, sem respaldo constitucional.
A adoção pelo PSDB de uma plataforma programática neoliberal radical, em compasso com o DEM e o PMDB, e a ascensão do bolsonarismo, associada a uma expansão da bancada da “bala, do boi e da Bíblia” (interpretada pelo fundamentalismo conservador), formaram certamente as composições mais conservadoras do Senado e da Câmara desde a redemocratização do país.
Esta pressão à direita teve e tem um impacto sobre os partidos de esquerda e centro-esquerda. Uma parte expressiva das bancadas federais do PSB e do PDT freqüentam com assiduidade as pautas neoliberais de votação, apoiando, por motivos fisiológicos, o candidato de Bolsonaro à presidência da Câmara. O PDT, de Ciro Gomes, procura uma aliança nacional com o DEM de ACM Neto.
O PC do B, ameaçado pela cláusula de barreira, vive hoje a maior crise de sua identidade histórica, em uma proposta de fusão com o PSB e com uma proposta frentista com partidos neoliberais, em conflito com Bolsonaro.
Esta pressão à direita certamente se exerce também sobre o PT no sentido de buscar o caminho das alianças ao “centro” entendidas como necessárias para viabilizar um protagonismo eleitoral visto como potencialmente viável para uma vitória nas eleições presidenciais de 2022. Em um sentido mais profundo, a participação do PT na chapa formada pelo DEM nas eleições pra a presidência da Câmara expressa esta pressão. Na esmagadora maioria dos estados do país, em particular na região Sudeste e Sul, mas também na região Norte e Centro-Oeste, o PT não apresenta hoje candidaturas próprias capazes de, por seu próprio protagonismo, com maior probabilidade disputar um segundo turno. O caminho eleitoral será, então, o de compor, apoiar palanques “amplos ao centro” neoliberal nos estados?
Este verdadeiro mergulho na institucionalidade pós-golpista, com sua deriva à direita e neoliberal, levaria certamente a uma destruição da identidade socialista em crise do PT.
Pragmatismo e ilusão eleitoral
A ilusão eleitoral é particularmente recorrente em partidos profundamente inseridos na dinâmica institucional e funciona como uma expectativa futura que alimenta o pragmatismo presente. Existe desde o 7 congresso do PT, um pressuposto de que como o partido foi o grande protagonista da polarização com Bolsonaro em 2018, o desgaste previsto de seu governo automaticamente ou mesmo provavelmente beneficiaria eleitoralmente o PT em 2022.
Em grande medida, era esta a expectativa para as eleições municipais de 2020, nas quais o PT sairia fortalecido para as eleições de 2022. Não foi o que ocorreu, mesmo considerando os resultados gerais das eleições municipais de 2016, fortemente desfavoráveis. É muito difícil que o PT construa, somente a partir de seu próprio protagonismo, candidaturas eleitorais potencialmente majoritárias nos estados da região Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Norte. Mesmo no Nordeste, as disputas para governos estaduais serão certamente difíceis. Mas a ilusão eleitoral do pragmatismo repõe suas razões: se o PT está enfraquecido nos planos municipal e estadual, no plano nacional- vis à vis outras candidaturas de esquerda ou de centro-esquerda ou ainda da direita neoliberal- o PT ainda teria um maior protagonismo potencial no primeiro turno em oposição a Bolsonaro, levando-o a liderar uma polarização vitoriosa com Bolsonaro no segundo turno.
Há três razões que conspiram contra esta previsão eleitoral.
A primeira decorre de uma analogia incorreta com a dinâmica das disputas presidenciais bi-polarizadas com as coligações lideradas pelo PT e pelo PSDB. Se em 2014, a quase passagem de Marina ao segundo turno expressava já a força de uma pressão sobre esta polarização binária, a ascensão do bolsonarismo sem partido multiplicou as tendências de fragmentação do sistema partidário brasileiro. É possível pensar as dinâmicas eleitorais em capitais e em grandes centros em 2020, no primeiro e segundo turnos, como expressões de uma tripla polarização: a esquerda, com o PT, o PSOL e o PC do B; uma direita neoliberal anti-petista e o bolsonarismo. PSB e PDT têm de fato oscilado entre uma aliança à esquerda e uma aliança com a direita neoliberal. No segundo turno, o eleitorado destas duas últimas duas forças – bolsonaristas e direita neoliberal – confluíram.
Em suma, haveria um novo padrão de dinâmica eleitoral em formação, expressivo das viragens à direita na correlação de forças antes referida. Esta dinâmica anti-esquerda de duas camadas, a direita neoliberal e o bolsonarismo, apóia-se na memória do movimento político que levou à derrubada do governo Dilma, que pretenderia criar um novo ciclo político no qual as esquerdas, e não somente o PT, perderiam o protagonismo de polarização. Esta dinâmica, se não for desconstruída, fecharia o caminho a uma vitória eleitoral das esquerdas em 2022.
Uma segunda razão é de ordem legal eleitoral: a reforma eleitoral aprovada no governo Temer reduziu muito as condições democráticas já assimétricas da disputa, ao diminuir o tempo do horário eleitoral gratuito pela metade. Eleições sem debate público, com máquinas operativas poderosas de fakenews, com justiças eleitorais judicializadas, com derrames de financiamentos empresariais e a violência política de um estado militarizado. É um cenário, pensado em sua própria dinâmica, pouco propícia a uma vitória eleitoral olímpica das esquerdas.
A terceira razão diz respeito a um enfraquecimento social das classes trabalhadoras, do povo organizado, dos movimentos sociais e das forças partidárias de esquerda, como fruto do estágio já muito avançado da aplicação de um programa de refundação neoliberal do Estado brasileiro. Assim, como os governos Lula e Dilma criaram condições para um fortalecimento social das esquerdas, o governo Temer e o governo Bolsonaro agiram metodicamente em sentido inverso.
Uma estratégia das esquerdas deveria avaliar, problematizar, construir respostas realisticamente a estas dificuldades e não contorná-las em um cálculo baseado em ilusões.
O dilema do protagonismo solitário
Até como instinto de defesa diante de uma das campanhas mais violentas e sórdidas já sofridas pela esquerda em toda a história brasileira, o PT tem diante de si o gigantesco e permanente desafio de reafirmar a sua dignidade e reafirmar o seu sentido histórico para o povo brasileiro. A permanência de um anti-petismo, mais forte nos estados do Sul e do Sudeste e nos grandes centros urbanos, reflete já um certo grau de cristalização, isto é,um juízo conformado e reiterado diariamente pelas grandes empresas de mídia que seguem o lema: “não fale do PT mas se falar,fale mal!”.
Como bem escreveu Jeferson Miola, há “Antipetismo de todos os gostos”: o da guerra-fria dos militares, o fascista de Bolsonaro, o do “PT corrupto e que quebrou o Brasil” dos neoliberais, o fundamentalista no plano moral da grande maioria das seitas evangélicas, do conservadorismo de corporações jurídicas e médicas e de classes médias, que vicejaram em meio à cultura do ódio. Ciro Gomes, ao centralizar ataques ao PT e à Lula, busca certamente ir ao encontro deste senso comum, reforçando-o. O PSB fez uso deste anti-petismo para derrotar Marília Arraes no segundo turno em Recife nas eleições de 2020.
Certamente a desmoralização do processo da Lava-Jato e o provável voto de desconfiança no STF sobre a condução de Moro vem quebrar um elo fundamental da narrativa neoliberal. Mas ela não deveria ser pensada como, por si só, superadora da onda anti-petista: há muitos preconceitos, sentimentos irrazoáveis de ódio e interesses cravados nela.
O caminho de uma auto-afirmação eleitoral, competitiva com as outras forças de esquerda e centro-esquerda, certamente deixa o PT mais vulnerável diante do antipetismo, pois a ele agrega as razões do desencontro das esquerdas. Um hegemonismo sem hegemonia é a crítica mais freqüente que se faz, então, ao PT.
O PT, a história e um novo ciclo político
A proposta da construção de um movimento social, unitário e nacional pelo impedimento democrático de Bolsonaro deveria ser concebida como o caminho de universalização de uma candidatura do PT à presidência que se propõe a ser liderança de um novo ciclo político de refundação da democracia no país.Ela seria o veículo por excelência de luta por uma plataforma política que é um verdadeiro imperativo categórico na atual conjuntura do país: vacinação já e construção de um Comitê de Salvação Nacional de enfrentamento à Covid( como propôs a Abrasco e a Frente Pela Vida, auxílio emergencial de 600 reais, anulação da condenação de Lula e restituição de seus direitos políticos, retomada plena da construção do SUS e da educação com o fim da EC-95.
O seu objetivo seria o de desconstruir a legitimidade de Bolsonaro governar o país e desconstituir o bolsonarismo como movimento político capaz de disputar com chances as eleições presidenciais de 2022. Ao mesmo tempo, ele seria fundamental para denunciar a frente neoliberal de direita como co-responsável pela origem, apoio e defesa do mandato de Bolsonaro.
Ao mesmo tempo, ela seria uma oportunidade para reconstruir as bases sociais da esquerda brasileira, vitalizá-la na sua relação com as forças democráticas e populares, criando uma ambiência de unidade nas bases em movimento que pressiona para uma expressão comum em uma frente política das esquerdas e centro-esquerdas. Uma plataforma comum e um programa básico de co-governança do país poderia ser elaborado no contexto deste movimento social, nacional e unitário.
O PT ainda é um caminho fundamental da esperança do povo brasileiro. Mas é preciso que ele seja agora capaz de atualizar plenamente esta esperança. É preciso impedir que Bolsonaro dispute as eleições presidenciais de 2022 e, se não se conseguir, que ele chegue às eleições tão repudiado socialmente que nem tenha condições de disputar a ida a um segundo turno. Derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo é reabrir o caminho da esperança.
- Juarez Guimarães é professor de Ciência Política da UFMG