Circula na mídia corporativa uma agressiva campanha de marketing para descrever as virtudes dos proprietários de picapes, de uma determinada marca. Argumenta que: “Ser picapeiro não é sobre ter; é sobre ser. Somos aventureiros, únicos, família, empreendedores”. Leia-se, a posse da caminhonete não é uma questão de classe social, mas um dom espiritual / racial. “Temos coragem para ir além”. Assim, propagou-se o arianismo na Alemanha ao salientar a distinção dos alemães puros (arianos) em relação às etnias inferiores. Os comuns não compartilham a essência do ser, acomodam-se à pasteurização e ao anonimato da multidão. Não valorizam os laços de sangue e tampouco idolatram a iniciativa privada. O produto-significante transfere o significado heroico para os consumidores.
O convite sub-reptício para transcender reatualiza o discurso expansionista dos nazistas nas práticas neoliberais contra as regulamentações estatais. Se considerarmos que as peças publicitárias visam, em especial, o mercado dos agentes do agronegócio que percorrem grandes distâncias em estradas de chão batido, os quais defendem a “autofiscalização” em suas terras no que concerne ao equilíbrio ecológico; então se esclarece a ênfase para ir além das convenções. Estudos de semiótica de Roland Barthes auxiliam na compreensão dos símbolos linguísticos dos novos rebeldes a favor do sistema.
À propaganda interessa a gramática e o léxico dos grupos socioeconômicos. É no habitus para a construção da economia política que se encontram os traços do capitalismo nas classes sociais. A arrogância colonialista (racista) dos dominantes, o vetor da acumulação (o hiperindividualismo), a lógica do agro no campo (a plantação de soja que ataca os biomas, o desmatamento da Amazônia) e a ação predatória das megaconstrutoras nas cidades (os arranha-céus nas orlas, a financeirização de espaços de sociabilidade) são os signos da destruição que deixa um rastro de ruínas atrás de si.
A cotidianidade é o palco, por excelência, das contradições capitalistas que ameaçam a democracia. Em suma, é no nível da vida cotidiana que podemos julgar realmente uma sociedade. No Brasil, a presentificação dos 350 anos do passado colonial-escravista se observa na maneira como a classe média se dirige às caixas de um supermercado; ou na abordagem de menosprezo a um garçom no restaurante; ou na exigência supremacista de um “quartinho de empregada” nos apartamentos.
Coleira no pescoço
Na campanha eleitoral, em curso, a direita chama de “adensamento” a verticalização das urbes em regiões que dispõem de equipamentos (hospitais, escolas); um eufemismo. Estão subentendidos o abandono da periferia ao deus-dará e a aliança da administração do município com a especulação imobiliária com vista ao lucro. Os cuidados só aparecem nas comunidades periféricas, em eleições. Em Porto Alegre, após a tragédia climática, o prefeito bolsonarista Sebastião Melo (MDB) iniciou o asfaltamento de ruas em bairros atingidos pelas enchentes; como o quero-quero, canta sempre longe do ninho. A demagogia oculta a incúria e prejuízos patrimoniais, financeiros, psicológicos, morais.
Em São Paulo, em tom solene, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) declara aceitar o ex-ministro da Economia Paulo Guedes – do desgoverno no quadriênio miliciano – para uma secretaria no segundo mandato; se Jair Bolsonaro lhe pedir. A sabujice com a mediocridade e o negacionismo apenas não é maior do que a irresponsabilidade para com o povo da grande metrópole paulistana. Em um centro de fachada, Melo e Nunes militam com a coleira do status quo, no pescoço. Não buscam eleitores com propostas para, quiçá, cumprir as promessas desde sempre descumpridas; acenam com a velha sinalização para ressuscitar os fantasmas do “anticomunismo” – obrigatório no cardápio do medo.
A estratégia da direita e sua extrema recende os “vendilhões do templo”, de priscas eras. Combina a maquiagem e as fake news sobre a cotidianidade com o aceno à guerra cultural: “um político não se conhece pelo que promete hoje, mas pelo que fez ontem”, sentencia Olavo de Carvalho em seu site, Sapientiam autem non vincit malitia / “Contra a sabedoria o mal não prevalece”, homenagem ao apóstolo Paulo. A lembrança das ocupações do MTST lideradas por Guilherme Boulos (PSOL/SP) e a defesa dos Direitos Humanos, por Maria do Rosário (PT/RS), são ventiladas para a ideologização da procedência de esquerda disseminar o pânico da luta de classes. A saída do astuto labirinto está em evidenciar um projeto generoso que seja – qualitativamente – alternativo para a população.
Ao subtrair sua condição, les enfants terribles reiteram os preconceitos às mudanças. Apresentar mais do mesmo, como se a linha de separação entre a direita e a esquerda dependesse da quantidade de energia para alcançar objetivos idênticos, não funciona. Isso o conservadorismo consegue, sem mudar o que está aí. Potencializar o consumismo e a adaptação passiva à ordem adormece o espírito subversivo. No Sul global, no máximo, forma os românticos sem apreço pela organização política.
Faz como a aurora
As críticas moralistas ricocheteiam na armadura do populismo extremista. No redivivo “estado de natureza” hobbesiano o que importa é derrotar o inimigo. As vantagens amealhadas do Erário são troféus conquistados por minar os alicerces de eticidade do Estado de direito democrático, tido um bunker das “elites políticas”. É o que torna a atividade no Executivo e no Legislativo bom negócio para os cafajestes, cuja única vocação é se locupletar com elásticas vantagens nos cargos eletivos.
O Judiciário faz igual, com a caneta Mont Blanc para autorizar o aumento de salários e prebendas indecentes em causa própria. O paradoxo consiste na conversão da esquerda em apologista de um sistema podre, nas esferas de mando da República, em cada unidade federativa. O enaltecimento abstrato das instituições favorece a ideia de acumpliciamento com o establishment oficial. Na conta, entra a precarização do trabalho legalizada na aprovação da Reforma Trabalhista e Previdenciária pelo governo do golpista Michel Temer, e a lei das terceirizações celebrada pelo atual presidente da Suprema Corte Luís Roberto Barroso. O garrote “contra a radicalização” sufoca toda indignação.
O risco é fazer desaparecer a crítica da vida cotidiana para não parecer radical, abdicando de outra possibilidade de existência individual e coletiva para não receber a pecha de utópico. O resultado é o aval silencioso à reprodução das estruturas que acirram o mal-estar da civilização e os sacrifícios hercúleos para colocar a comida na mesa. Ao fazer da cotidianidade um sinônimo da imediatidade neoliberal, a alienação barra a consciência para lutar por uma nova realidade. Em termos marxistas, implica dissociar o indivíduo do “pertencimento à espécie humana”, o que gera a subcidadania.
Retomar a ética na política é propor uma reestruturação plena da vida cotidiana. Esse é o dever de uma nova esquerda, de fato e de direito. Os ideais igualitários não se resumem nas realizações econômicas, antes se exprimem na transformação da diuturnidade das tarefas dos trabalhadores, dos sentimentos e dos desejos. O aumento da representação “identitária” nas instâncias parlamentares é um grito de libertação da cotidianidade em face dos grilhões que prendem pessoas na imediatidade. Combater o sofrimento é interpelar oprimidos e explorados para qualificar a sua / nossa existência.
Conforme sublinha Agnes Heller, em La théorie des besoins chez Marx / A teoria das necessidades em Marx: “O socialismo não é somente a sociedade economicamente mais justa, é a sociedade que permite uma vida diferente”. Exercitar a imaginação com base nas experiências do dia a dia é o caminho para desconstruir o mundo artificial criado pelo marketing neoliberal e conservador, com a ajuda dos cães de guarda da mídia parceira dos poderosos. A história não submerge o cotidiano.
Um programa político e ideológico para mudar a sociedade deve também mudar a vida, e vice-versa. Humanizar uma é humanizar a outra; coisa que o neofascismo não pode e não pretende. Tal é o compromisso da esquerda que ousa dizer seu nome, e avança sem medo de ser feliz. Vem, segue o conselho do poeta, e faz como a aurora quando nasce: “Tira o lenço vermelho e agita-o ao vento”.
Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS; ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul.
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