Foi Tancredo Neves quem, nos momentos delicados da intermitente democracia brasileira, eternizou a ironia: “entre a Bíblia e o Capital fico com o Diário Oficial”. A graça carregava os vícios e virtudes do presidencialismo de coalização: de um lado, a força sedutora das verbas públicas, dos cargos estatais, da caneta presidencial e dos votos parlamentares; de outro lado, a preferência pela negociação pragmática ao invés da ideologização moralista.
Esse velho edifício parece caminhar para o seu ocaso. Para tristeza dos saudosos tancredistas, foi ainda durante o governo Temer que a gráfica da Imprensa Oficial anunciou “depois de 155 anos em circulação, a versão impressa do Diário Oficial da União deixa de existir, os atos do governo federal passarão a ser publicados exclusivamente na plataforma digital”.
Mas foi apenas no governo Bolsonaro que se clarificou o significado da expressão “plataforma digital”, desde então o país tem sido governado por tweets, posts, memes, e-mails, quase sempre por meio do uso de discurso autoritário, linguagem infantilizada, polêmicas obscenas e propostas simplistas. É difícil encontrar água em meio a tanta espuma.
Ao confundir negociação com negociata, concessão com corrupção e debate público com ofensas privadas, o governo Bolsonaro parece promover, à falta de nome melhor, uma espécie de presidencialismo de polarização, onde o Diário Oficial perde sua perenidade e cede à efeméride.
Nos quatro primeiros meses de governo, quando comparado às presidências de Sarney, FHC e Lula, Bolsonaro está acima da média no número de medidas provisórias enviadas ao Congresso, trata-se de uma medida a cada 7,4 dias. Se considerarmos o primeiro trimestre, veremos que Bolsonaro assinou mais de 80 decretos, contra 75 de FHC, 68 de Lula e 34 de Dilma.
O quadro se agrava se levarmos em conta que o número de projetos do atual governo é consideravelmente menor que o de seus antecessores, foram apenas dois: a reforma da previdência e o pacote anticrime; o número de substituições nos cargos de alto escalão e a quantidade de recuos anunciados tem feito da instabilidade uma rotina.
O presidencialismo de polarização governa mais por medidas provisórias e decretos do que por emendas constitucionais e projetos de lei. O desrespeito aos ritos institucionais anda de par com o desencanto com a política e por isso tem a finalidade de manter acesa a piromania incendiária do bolsonarismo.
O enrosco está no fato de que tal procedimento coloca o Executivo sistematicamente em situações turbulentas, como as MPs tem validade máxima de 120 dias e precisam ser apreciadas pelo Congresso e como os decretos tem validade condicionada à apreciação de constitucionalidade por parte do STF, mantidas as coisas como estão, o governo Bolsonaro terá que continuar prestando contas aos demais poderes, ainda que à revelia de parte de seus eleitores, alguns afeitos ao fechamento democrático.
Essa fragilidade se evidenciou recentemente, em função das alterações impostas pela Câmara dos Deputados à reforma administrativa do Estado e aos questionamentos sobre o decreto de porte de armas. O tensionamento institucional tem atrasado a tramitação e dificultado o apoio a propostas caras ao governo, como é o caso da reforma previdenciária.
No presidencialismo de polarização do atual governo, bolsonaristas, olavistas, lavajatistas, financistas e militaristas se coesionam em torno de um mesmo diagnóstico sobre a desmoralização da política e a criminalização dos políticos.
No entanto, enquanto a agenda de reformas dos lavajatistas e dos financistas exigem emendas constitucionais e projetos de lei, e, portanto, alguma manutenção da ordem institucional, a agenda de mudanças dos bolsonaristas e dos olavistas demanda a luta ideológica travada por MPs e decretos, e, portanto a permanência da desordem institucional; alçados à condição de tutores em um primeiro momento, mas também imersos em suas próprias contradições, os militares seguem sendo dardejados por demandas contraditórias oriundas dos dois grupos.
Sem a força que o Diário Oficial já representou outrora, resta saber quanto tempo mais a delirante cruzada ideológica entre a Bíblia e o Capital vai conter as insatisfações concretas do mercado, da política e da própria sociedade.
No caso do mercado, a aprovação do governo por parte do empresariado contrasta com as repetidas revisões dos analistas de mercado apontando menor expectativa de crescimento do PIB, o que sinaliza uma relação estremecida; no caso da política, a própria base parlamentar do governo e o chamado centrão tem explicitado uma queda de braços que impôs ao menos três derrotas ao Executivo: o deslocamento do COAF do Ministério da Justiça para o Ministério da Economia, o aviso de que o Congresso não votará nenhuma MP nos próximos dias, a convocação do Ministro da Educação para dar explicações no plenário do Congresso sobre os cortes e contingenciamentos na verba da educação, o que indica uma relação tensionada.
No caso da sociedade, a esperança emerge da primeira paralisação nacional em favor da educação. Em todos os estados da federação, alunos, professores e pesquisadores, de instituições de ensino médio e superior, públicas e privadas, estão se mobilizando contra os cortes no orçamento da educação. Isso significa que a crise institucional pode ser agravada pela insatisfação social que começa a tomar conta do país, e que pode ser intensificada por novas revelações ou denúncias acerca da relação entre a família Bolsonaro e o submundo dos ilícitos e das milícias.
O momento é de turbulência, está instalada a instabilidade constitutiva do presidencialismo de polarização, resta torcer para que as ruas e as instituições mobilizem a razão e o bom senso, as vozes e as lutas, e sejam capazes de corrigir as distorções e distúrbios provocados pela marcha a ré que atende pelo nome de bolsonarismo.
William Nozaki é professor de ciência política e economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).