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Previdência pública: o tesouro que os bancos lutam por abocanhar! | Claudio Puty

O Brasil conseguiu construir um sistema de proteção social razoável, que garante com que boa parte de nossa população não viva na pobreza extrema. As pressões do mercado pela diminuição dos gastos sociais em prol do pagamento de juros da dívida pública voltam agora com as propostas de Bolsonaro e Paulo Guedes, em uma de suas versões mais radicais de desmonte do sistema de seguridade pensado pelo constituinte de 1988.

A previdência Social no Brasil é composta de múltiplos regimes onde o mais importante é o Regime Geral da Previdência Social (RGPS). O RGPS é considerado um dos maiores sistemas previdenciários do mundo, tendo pago em 2016 mais de 33 milhões de benefícios, impactando indiretamente a renda de cerca de mais de 100 milhões de brasileiros e brasileiras, ou seja, metade da população do Brasil. Funciona, assim, como um enorme mecanismo redistributivo para os extratos mais pobres da população, já que em 2017, 63% dos beneficiários receberam até um salário-mínimo e outros 27% receberam entre 1 e 3 salários-mínimos.

O mesmo é válido para a economia dos municípios, já que, segundo dados de 2012 do extinto Ministério da Previdência, em 3.996 municípios brasileiros o pagamento de benefícios do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) ultrapassou os repasses do Fundo de Participação dos Municípios (FPM).

O Brasil viveu entre 2004 e 2014 um processo de diminuição considerável de sua pobreza e redução, ainda que moderada, da desigualdade de renda medida pelo índice de Gini. Os aumentos reais do salário mínimo e a expansão do sistema de seguridade social foram cruciais para tal resultado, já que as transferências da previdência e da assistência social com benefícios de piso atrelado ao salário mínimo protegeram vastas camadas da população contra a pobreza. Esse fato se reflete nas estatísticas de pobreza entre idosos, que tem sido menor do que a entre não-idosos, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)[1]. Em 2011, a proporção de idosos pobres foi de 4,8% e a de não-idosos chegou a 16,7%. Segundo a Secretaria da Previdência do Ministério da Fazenda, mais de 81,7% da população maior de 60 anos recebia algum benefício da seguridade social em 2015[2]. Infelizmente, a partir de 2016, entramos em um ciclo regressivo, onde, associado ao aumento da desigualdade social, verifica-se uma explosão da pobreza extrema. Dados de abril de 2018 mostram que, na região metropolitana de São Paulo, a pobreza extrema cresceu impressionantes 35% em um ano[3].

O sistema previdenciário público do Brasil foi configurado na Constituição Federal de 1988, ainda que parte do ali estabelecido nunca tenha vingado plenamente, por conta da firme oposição de setores conservadores do Congresso Nacional e do Executivo nos anos seguintes à promulgação da Carta Magna.

A oposição ao estabelecido pela Constituição foi imediata por parte dos setores derrotados na Assembleia Nacional Constituinte. Em 1988 o executivo transferiu a gestão do Instituto de Administração da Previdência Social (IAPAS, futuro INSS, após fusão em 1990 com INPS –  Instituto Nacional de Previdência Social) para o Ministério da Fazenda, gerando duros protestos por parte dos Constituintes, que viam naquela manobra uma forma de se desvirtuar recursos destinados à previdência para outros gastos do governo.  Ainda ao final daquele mandato presidencial, o governo não cumpriu diversas determinações da Constituição, como a criação da lei que organizaria a seguridade social e o estabelecimento do orçamento da seguridade. Em vez disso, preferiram tomar medidas no sentido de fragmentar a seguridade, a partir de leis setoriais para a previdência e saúde, por exemplo. Adotaram ações que levaram à captura de recursos constitucionais vinculados ao Orçamento da Seguridade Social para o financiamento do déficit público, não cumpriram a obrigatoriedade constitucional de transferência de recursos fiscais para financiar a seguridade e mais da metade da receita prevista como arrecadação da COFINS em 1989 foi destinada ao pagamento dos inativos e pensionistas da União, medida inconstitucional.

Só em 1991 a Lei Orgânica da Seguridade Social (8.212/91) veio à luz, seguida da lei 8.213, também de 1991, que tratou dos planos de benefícios da previdência social.

Nos últimos 20 anos, tivemos uma série de reformas previdenciárias de diferentes envergaduras, cujo objeto foi tanto o regime geral quanto do regime próprio dos servidores públicos federais. O governo Bolsonaro agora segue o caminho do governo Temer e tentará aprovar uma emenda constitucional que altera substancialmente as regras para a aposentadoria no RGPS e RPPS, ainda que não toque, segundo declarações de sua equipe econômica, no problema das pensões dos militares, um dos maiores gastos per capita dentre os servidores públicos.

No que se refere aos seus aspectos fiscais, o chamado resultado primário das contas da previdência – a diferença entre a arrecadação líquida e os pagamentos de benefícios – tem sido utilizado pelo mercado e pelo governo como indicadores da necessidade de se alterar as regras de concessões e o valor dos benefícios no sentido equilibrar as contas previdenciárias. Por esse critério, o resultado previdenciário é sistematicamente deficitário: chegando a um déficit de R$149 bilhões de reais em 2016.

Entretanto, ressalta-se, o orçamento da seguridade estabelecido na Constituição de 1988 define que suas fontes de financiamento não são oriundas exclusivamente da arrecadação própria de benefícios, e, portanto, não faz sentido tratar de “rombo” das contas de previdência contabilizando-se exclusivamente a arrecadação previdenciária direta. Nesse sentido, no final da 2017, o Senado Federal, através do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito da Previdência (Senado, 2017) mostrou que, segundo a própria Lei Orgânica de Previdência, “tecnicamente, é possível afirmar com convicção que inexiste déficit da Previdência Social ou da Seguridade Social, e que o eventual resultado negativo deve ser observado sobre o prisma do conjunto agregado das contas públicas”,  já que a União é a responsável pela cobertura de eventuais insuficiências.

Com isso, o Senado não ignorou os resultados negativos do resultado primário da previdência, mas na realidade afirma que esse indicador é legalmente inadequado para balizar as propostas de reformas, à medida que ignora fontes de receita constitucionalmente estabelecidas, além de não contabilizar cerca de R$500 bilhões de reais retirados das contas da previdência[4], durante os anos de existência da Desvinculação de Receitas da União (DRU), ainda que segundo o governo, a partir de 2010, tenha havido uma reposição completa do recursos subtraídos por tal mecanismo.

Outro resultado importante da CPI foi mostrar que as projeções de déficit futuro do governo são enviesadas, pois se baseiam em pressupostos irreais, particularmente um aumento do salário mínimo muito acima da inflação por cerca de 40 anos, além de um crescimento econômico futuro medíocre, não chegando a 2% a.a. em média. É possível simular com pressupostos mais realistas – reajustes do salário-mínimo seguindo o índice nacional de preços ao consumidor, por exemplo – um sistema previdenciário sustentável, onde os gastos previdenciários me relação ao PIB decresçam rapidamente, não obstante o envelhecimento da população.

As polêmicas recentes sobre a reforma da previdência parecem, à primeira vista, dizer respeito estritamente a aspectos fiscais das contas da seguridade e sua sustentabilidade futura, frente às mudanças no perfil demográfico de nosso país. Mas, em grande medida, correspondem a concepções de Estado e Nação que estavam em conflito já na Assembleia Nacional Constituinte e que se expressam no valor dado ao combate à desigualdade social no Brasil, particularmente ao papel que o poder público possa cumprir na proteção social.  Por isso, derrotar as propostas de Guedes e Bolsonaro dizem respeito a um projeto global de país, não somente a aspectos fiscais como os tecnocratas de plantão querem nos fazer crer.

Claudio Puty é economista, professor da UFPA e membro da coordenação nacional da DS.

[1] http://g1.globo.com/economia/noticia/2013/02/pobreza-entre-idosos-e-menor-do-que-entre-nao-idosos-diz-ipea.html
[2] http://www.previdencia.gov.br/wp-content/uploads/2017/10/Previd%C3%AAncia-Social-e-pessoas-idosas.pdf
[3] http://www.valor.com.br/brasil/5480737/na-grande-sp-pobreza-extrema-cresce-35-em-um-ano
[4] https://www.anfip.org.br/noticia.php?id_noticia=21427

 

 

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