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Pronunciamento por ocasião de sua posse como presidente do parlamento do Mercosul

A íntegra do discurso em português (no site do deputado, a tradução para o espanhol).

Senhoras e Senhores Parlamentares,

Autoridades presentes,

Senhoras e Senhores

Tomo posse como Presidente do Parlamento do Mercosul nesta “benemérita y muy digna” cidade de San Miguel de Tucumán.

O cargo e o lugar no qual assumo este compromisso solene não poderiam ser mais honrosos.

O cargo, porque presidir o Parlamento do Mercosul significa coordenar os esforços de todos nós na estratégica construção da cidadania do bloco, que irá, sem dúvida, dirigir o processo de integração e consolidá-lo no terreno fértil dos corações e mentes dos habitantes de todos os Estados Parte, única forma de assegurar o seu pleno êxito.

O lugar, porque foi aqui, exatamente aqui, que a Independência da República Argentina, forjada pela bravura de San Martín e Belgrano, foi finalmente declarada, há quase duzentos anos, num parlamento, numa casa da democracia como esta hoje aqui reunida.

Assim, os grilhões da metrópole foram quebrados. Assim, o grito da liberdade tão duramente conquistada foi ouvido pelos mortais de todo o mundo. Liberdade votada, liberdade já nascida democrática.

Mas não apenas na Argentina. Na mesma época, quase toda a América do Sul obteve a ansiada liberdade em processos semelhantes e, em muito casos, vinculados entre si. A luta de San Martín foi a luta da Argentina, do Chile, do Uruguai, do Peru. A luta de Bolívar foi a luta da Venezuela, da Colômbia, do Equador. E a luta de um era a luta do outro.

Desse modo, o combate pela independência foi um combate que uniu os melhores americanos, numa época em que as fronteiras eram dadas apenas pelos vastos ideais iluministas.

No entanto, a união contra a opressão das metrópoles durou pouco. Em curto tempo, as fronteiras dos ideais foram substituídas pelas fronteiras terrenas, disputadas em fragmentados processos de construção de identidades nacionais.

De fato, a independência dos países da América do Sul, que começou como afirmação de identidade própria frente às antigas metrópoles, acabou concretizando-se em múltiplas identidades que se definiam, às vezes em sangrentos conflitos, contra as outras. Ao mesmo tempo, intervieram no processo novas metrópoles que, com freqüência, estimularam as divergências e desestimularam a industrialização e o desenvolvimento econômico autônomo.

A América espanhola fragmentou-se irremediavelmente e a América portuguesa, o Brasil, manteve-se íntegra dada à sua singularidade, mas de costas para o resto do continente.

Uma longa noite de quase duzentos anos, na qual predominaram as rivalidades artificiais, os regimes autoritários, a dependência econômica e política, e a falta de consistência nos processos de desenvolvimento econômicos e sociais impediu que nossos países implementassem processos de integração para produzir sinergias comerciais, econômicas e políticas.

Felizmente, o retorno da democracia, a partir dos anos 80 do século passado, permitiu que, dois países, Argentina e Brasil, abandonassem a histórica disputa pela hegemonia da bacia do Prata e identificassem vastas áreas de cooperação e interesse mútuo. Como resultado, foram firmados os famosos acordos Alfonsín-Sarney, que deram impulso inicial à integração entre Argentina e Brasil e pavimentaram a criação posterior do Mercosul, já com a presença de dois aliados preciosos: Paraguai e Uruguai.

Tais acordos tinham uma estratégia implícita. Tratava-se de dar aos Estados Parte condições de enfrentar juntos os problemas criados pela crise da dívida, do aumento da vulnerabilidade externa e da recessão com inflação. Os países pretendiam fortalecer sua posição ante um cenário internacional mais competitivo e hostil, mediante a ativação de complementaridades econômicas. Ao mesmo tempo, procuravam estabelecer políticas de desenvolvimento harmônicas com ênfase nas variáveis endógenas do crescimento econômico. Por esta razão, buscava-se, sobretudo, a integração industrial dos setores líderes, especialmente o de bens-de-capital.

Entretanto, essa estratégia inicial de integração à economia internacional, radicalmente distinta da recomendada pelo Consenso de Washington, foi parcialmente abandonada na época da celebração do Tratado de Assunção, que criou formalmente o Mercosul.

Com efeito, a hegemonia ideológica do paradigma neoconservador na América do Sul teve como conseqüência principal, no âmbito do Mercosul, a ênfase excessiva na liberalização comercial, com prejuízos para outras dimensões do processo de integração.

Por conseguinte, aspectos vitais para uma integração verdadeiramente exitosa, como a coordenação de políticas macroeconômicas, a implementação de políticas de desenvolvimento e industriais simétricas e a redução da vulnerabilidade externa das economias, foram colocados em segundo plano em favor das aberturas econômicas quase incondicionais e das “políticas amistosas para os mercados”.

Também a dimensão social do processo de integração, que inclui a livre circulação dos trabalhadores e a harmonização da legislação trabalhista, entre outros aspectos, não teve a atenção merecida.

Aldo Ferrer, pensador arguto do Mercosul, identifica quatro “pecados originais” que prejudicaram o processo de integração: a vulnerabilidade externa das economias, o mal-estar social na região, o abandono das estratégias nacionais de desenvolvimento e a crise ideológica frente à globalização.

A vulnerabilidade externa tendia e tende a dificultar que os governos adotem políticas autônomas em relação aos interesses criados pela globalização financeira. Aliada ao predomínio da “visão fundamentalista da globalização”, segundo a qual as únicas políticas possíveis são as paleoliberais, tal vulnerabilidade torna perenes e praticamente intocáveis os ajustes econômicos pró-cíclicos, com as conseqüências negativas que todos conhecemos.
Por sua parte, o mal-estar social ocasionado pelo aumento da concentração dos rendimentos, do desemprego e do subemprego, bem como também pelo agravamento da marginalização de amplos setores da população, tende a gerar tensões sociopolíticas que dificultam uma integração mais estreita.

De outro lado, o abandono parcial das estratégias nacionais de desenvolvimento impedia a coordenação das políticas macroeconômicas que poderiam ter evitado as grandes oscilações do câmbio, as quais provocaram notável instabilidade no fluxo comercial no Mercosul.

Ora, para que o processo de integração possa avançar e distribuir eqüitativativamente os seus frutos, fazendo crescer as economias de todos os Estados Parte, é preciso que haja políticas nacionais de desenvolvimento industrial e científico-tecnológico estrategicamente convergentes. Essas políticas devem se constituir nos pilares da divisão do trabalho no bloco sobre bases intra-industriais, as quais permitiriam o crescimento harmônico simultâneo dos países do Mercosul.

Senão houver esse tipo de política, o crescimento é errático e seus benefícios tendem a distribuir-se sem eqüidade, estabelecendo-se uma relação centro-periferia no interior do bloco, que mina profundamente o processo de integração.

Em relação à crise ideológica, ela provocou, em alguns casos, alinhamentos ideológicos e acríticos com interesses externos e a opção preferencial pelo “realismo periférico”, isto é, pela inserção subalterna no cenário mundial como única forma de aceder à modernidade.

Evidentemente, os Estados Parte do Mercosul tem de ter uma visão comum do cenário global que dê embasamento teórico-político a um único projeto comunitário de inserção internacional.

Na realidade, o Mercosul deve ser, fundamentalmente, tal como já estava desenhado nos acordos bilaterais Brasil/Argentina, um projeto político com estratégia comum de inserção internacional dos Estados Parte.

Pois bem, como resultado desses “pecados originais”, o Mercosul perdeu, durante muito tempo, iniciativa política no cenário mundial e seu sentido estratégico inicial, tendo se mantido, às vezes precariamente, apenas pelos interesses específicos vinculados ao notável incremento do comércio intrabloco.

Portanto, o fortalecimento e a consolidação do Mercosul pressupõem enfrentamento permanente desses problemas e inconsistências e crescente recuperação do seu sentido estratégico inicial.

Mas como fazê-lo? Acima de tudo, como fazê-lo em caráter efetivamente permanente e não precariamente fundamentados em idiossincrasias de governos específicos?

Com efeito, embora o Mercosul tenha conhecido, nos últimos anos, avanços muito significativos, tais como a criação do FOCEM, instrumento fundamental de combate às assimetrias, e a incorporação de vários países andinos como membros associados, que agregou peso econômico e político ao bloco e pavimentou a criação da UNASUL, assim como a implementação do seu parlamento, principal conquista do bloco, é preciso consolidar e ampliar tais progressos, fundamentando-os nos interesses das populações dos Estados Parte.

Porém, para que isso aconteça é imprescindível que o Mercosul enfrente e corrija o que talvez seja o seu “pecado original” mais sério: o déficit democrático.

Em relação a este ponto crucial, é fácil constatar que o processo de integração vinha sendo conduzido, até período recente, quase que exclusivamente pelos poderes executivos dos quatro países signatários do Tratado de Assunção, com participação bastante restrita das sociedades civis e dos poderes legislativos.

Assim sendo, concomitantemente à perda de sentido estratégico do processo de integração, acumulou-se um considerável déficit democrático no Mercado Comum do Sul, que precisa ser resgatado com urgência.
A combinação desse déficit democrático com a perda de sentido estratégico do Mercosul criou, por sua vez, um notável círculo vicioso: a ausência de discussão mais profunda dos destinos do bloco aprofundou a inconsistência estratégica e a ênfase conservadora nos aspectos puramente comerciais da integração, que, por sua vez, ampliaram e cristalizaram o déficit democrático do Mercado Comum do Sul.

Tal situação é, obviamente, incompatível com a consolidação do bloco, já que processos consistentes de integração de países em verdadeiros mercados comuns não podem existir em espaços políticos vazios de cidadania.

A ruptura desse círculo passa, portanto, por um novo papel do Parlamento, instância máxima de representação da cidadania de todos os Estados Parte no Mercosul.

O Parlamento do bloco terá como desafio principal aprofundar o compromisso democrático do Mercosul, ameaçado pelo autoritarismo histórico da região e pelo longo período de acúmulo desse déficit democrático do bloco.

Como presidente dessa notável e única instituição me empenharei para que ela, de fato, cumpra seu imprescindível papel histórico.

Dito isto, deve-se constatar que, nos seus primeiros dezoito meses de funcionamento, ainda em fase de afirmação institucional, o Parlamento do Mercosul não explorou a contento suas novas funções e não discutiu, junto com a sociedade civil do bloco, temas de grande interesse para a cidadania dos Estados Parte.

Temo que, a continuar nesse diapasão, o Parlamento do Mercosul corra o sério risco de se converter novamente numa mera Comissão Parlamentar Conjunta, que fazia apenas recomendações ao Conselho Mercado Comum e não tinha grande impacto e relevância no processo de integração.

Precisamos, assim, ultrapassar com urgência essa fase inicial do Parlamento e começar a explorar suas novas funções, sob pena de desperdiçarmos o potencial deste órgão parlamentar e convertê-lo em instituição de pouca relevância.

Com esse propósito, é necessário construir uma agenda de temas importantes a ser discutida em profundidade com as sociedades do bloco e transformá-la em propostas concretas de normas e de harmonização de legislações para os Estados Parte.

De fato, temos de começar a fazer aquilo para o qual os parlamentos são criados: legislar ou, no caso deste parlamento específico, propor legislações e harmonizá-las.

Sem desmerecer o papel de declarações, recomendações e pareceres, nosso trabalho principal deve ser concretizado em projetos e anteprojetos de norma que digam respeito a temas de grande relevância e interesse público.

Meio ambiente, educação, questões aduaneiras, livre circulação de trabalhadores, agilização da solução de controvérsias, coordenação de políticas macroeconômicas, integração das cadeias produtivas, etc, são todos temas que precisam do empenho deste parlamento para encontrar a necessária ressonância na cidadania do Mercosul.

Um tema, em especial, merece dedicação maior: a correção das assimetrias, em todos os níveis. O Mercosul pode incluir países pequenos, mas, se quiser ter êxito, jamais poderá ter sócios minoritários. Todos os Estados têm de ter seus interesses contemplados e se beneficiar da integração. Todos, sem exceção, devem ser grandes dentro do Mercosul.

Isso não implica, entretanto, que não deva ser discutida a questão da proporcionalidade da representação cidadã. Pelo contrário, essa discussão é fundamental para que o Parlamento do Mercosul seja, de fato e de direito, autêntico porta-voz dos habitantes de todos os seus membros. O Parlamento do Mercosul, assim como o Parlamento Europeu, não é uma espécie de senado multinacional, no qual são representados, em condições de igualdade numérica, os interesses de Estados, mas sim uma câmara baixa em que os cidadãos comuns, em condições de proporcionalidade regressiva, se devem fazer ouvir. Na condição de Presidente, pretendo levar adiante esse importantíssimo debate e, tenho certeza, chegaremos a um denominador comum amplamente satisfatório, antes das eleições de 2010.

Tal debate não pode estar desvinculado, porém, da discussão relativa à criação das famílias políticas neste parlamento, pois são justamente esses grupos que terão o fundamental papel de articular transnacionalmente os anseios e interesses dos cidadãos de todos os Estados Parte. Com famílias políticas estruturadas, a representação deixa de ser apenas nacional e se torna efetivamente constituidora de uma cidadania do Mercosul. Nesse contexto, a proporcionalidade assume dimensão política inteiramente diversa.

Estou convencido que o Mercosul deve conduzir-se com a mesma tolerância e flexibilidade políticas que caracterizam a União Européia que, desde seu início, soube incorporar em seu seio países com governos de diferentes matizes ideológicos. Por isso, defendo uma decisão expedita sobre a incorporação da Venezuela ao Mercosul, que leve principalmente em consideração os interesses maiores e de longo prazo dos Estados, e não as idiossincrasias políticas de curto prazo de governos específicos.

Temos de nos esforçar também para regulamentar, de forma célere, as competências estipuladas no artigo 4º do Protocolo Constitutivo deste parlamento, em especial o que está determinado no inciso 12 do referido artigo, que prevê a aceleração dos procedimentos internos para a entrada em vigor das normativas nos Estados Parte, mediante a elaboração de pareceres sobre projetos de normas do Mercosul neste parlamento. Tal regulamentação permitirá que o Parlamento do Mercosul se fortaleça e funcione de maneira ágil.

A elaboração do nosso Código de Ética, imprescindível em qualquer poder legislativo, e do Estatuto de Funcionários, vital para respaldar as atividades desses que são o esteio da nossa instituição, bem como a revisão do Regimento Interno, que já apresenta lacunas e inconsistências, e a criação das Unidades de Enlace, fator de integração deste parlamento, são ações que precisam ser concluídas com rapidez, de modo a permitir o funcionamento em bases sólidas do Parlamento do Mercosul.

Assim sendo, as tarefas à frente são imensas. Mas devemos enfrentá-las com a mesma determinação e coragem com que Belgrano lutou uma aparentemente impossível batalha contra as forças espanholas em campos não longe daqui. Precisamos também conduzi-las com o mesmo espírito visionário de Tiradentes, mártir da luta brasileira contra a metrópole portuguesa e profeta da esperança que buscou incansavelmente a liberdade, “ainda que tardia”.

Quase dois séculos após a fragmentação da América do Sul, temos a responsabilidade de uni-la no projeto do Mercosul, retomando os ideais de San Martín, Bolívar e tantos outros. Para cumprir tal finalidade, este parlamento é o instrumento fundamental, pois a fragmentação do nosso continente somente será superada e o Mercosul só se integrará de fato quando os cidadãos de todos os Estados Parte também se integrarem, ainda que tardiamente.

E isso só é possível com liberdade e democracia. Liberdade para que os povos possam falar e democracia para que os governos possam ouvir. Temos de ser a voz desses cidadãos que estão inexoravelmente se integrando.

Se quisermos que o Mercosul tenha a grandeza política e o significado estratégico que a história lhe reserva, devemos cumprir nosso papel de fundamentá-lo democraticamente nos interesses dos seus cidadãos comuns.
E, desde esta casa plena de história, significado e grandeza, temos de proclamar ao nosso futuro comum que não há, e nunca houve, nada maior e mais estratégico que a democracia.

Muito Obrigado!

Muchas Gracias!

Deputado DR. ROSINHA

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