Apresentação do livro PT 40 anos – a história aberta de Juarez Guimarães e Raul Pont. Disponível aqui.
Estes textos têm como objetivo contribuir com a análise dos resultados eleitorais de 2020 numa retrospectiva dos 40 anos de existência do PT. A avaliação procura ir além de dados quantitativos como quantas cidades ganhamos ou perdemos, onde avançamos ou diminuímos nossos votos em relação a pleitos anteriores e número de vereadores eleitos.
Queremos retomar o debate interno, que sempre foi rico e plural, sobre o caráter do Partido, sua estratégia de longo prazo, ou seja, o sentido histórico anticapitalista da sua origem e fundação.
Em números, simplesmente, voltamos ao patamar das eleições municipais de 2000: 187 prefeituras e 2.485 vereadores. Agora, em 2020, vencemos em 183 municípios e elegemos 2.665 vereadores. Durante o período dos governos federais de Lula e Dilma alcançamos um pico em 2012, 636 municípios e 5.067 vereadores eleitos.
É óbvio que as vitórias de quatro mandatos presidenciais e as políticas públicas desenvolvidas em favor da maioria da população, pelo seu caráter distributivista e de inclusão social de milhões de brasileiros explicam, em grande medida, esse rápido crescimento nos resultados eleitorais municipais. Mas, não nos respondem outras indagações.
Não tivemos, por exemplo, a mesma correspondência por estar na Presidência do país, nos resultados da Câmara Federal. Após o ápice de 2002, concomitante com a primeira vitória de Lula à Presidência, quando elegemos 91 deputados federais, os resultados posteriores foram declinantes apesar de estarmos no governo até o golpe parlamentar-midiático-judicial de 2016 que cassou a presidenta Dilma através de um impedimento sem razões ou provas criminais que o sustentassem. Em 2014, elegemos 69 deputados federais e, em 2018, 56 deputados.
Mesmo tendo consciência de todo o massacre exercido pelo monopólio da mídia contra o PT e a esquerda, com a absurda condenação e prisão de Lula impedindo sua candidatura e com o uso massivo, empresarial, pago ilegalmente por caixa 2, das fake news via redes sociais em 2016 e 2018, precisamos nos debruçar sobre outros elementos que compõem o conjunto mais amplo desses processos eleitorais. Ou seja, analisar outros condicionantes mais profundos que também influenciaram e pesaram nos resultados eleitorais e que, na maioria das vezes, não são tratados como deveriam.
No caso concreto do PT é inegável a perda de identidade política do Partido, um de seus mais fortes atrativos no surgimento e primeiras décadas. Um Partido de trabalhadores, um partido classista, “um partido sem patrões”, “trabalhador vota em trabalhador”, dizíamos em nossas publicações e nas primeiras disputas eleitorais. Algo um pouco doutrinário, obreirista mas que fazia questão de afirmar uma diferença clara com a experiência histórica anterior, de alianças subordinadas e políticas de conciliação de classes. Isso era uma novidade na política brasileira em um momento de consolidação de uma sociedade que se urbanizava e industrializava rapidamente.
Um Partido democrático, sem caudilhos, que decidiu por voto dos filiados não ir ao Colégio Eleitoral do Congresso, em 1984, e não trair a vontade das ruas nas lutas pelas “Diretas Já”. Um Partido que ousou defender a Constituinte exclusiva e soberana e teve a coragem de votar contra o texto final da Constituição de 1988, justificando por escrito as razões desse comportamento.
Nos seus primeiros anos, o PT balizou seu conceito de socialismo, posicionando-se claramente crítico ao processo autoritário e burocrático da experiência da União Soviética e com a mesma convicção repelia a domesticação da socialdemocracia ao capitalismo predominante nos países da Europa Ocidental.
Assumíamos em nossas definições programáticas, claramente, a defesa do socialismo, da necessidade de construção de uma outra sociedade. Nos texto fundantes do Partido, repetíamos que “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. Um Partido que, apesar do longo período ditatorial, tinha a coragem de recuperar conceitos de soberania nacional, de um projeto de integração voltado para a América Latina e de identidade com as nações oprimidas.
Certamente, essas definições não respondiam a todos os desafios que se colocavam, crescentemente, a cada vitória eleitoral, a cada município ou Estado que alcançávamos a responsabilidade de governar. Mas, possuíamos uma identidade política, significávamos um sentido de futuro, uma esperança para parcelas crescentes da população.
Nesse sentido, queremos recuperar para a juventude, para os novos filiados, às centenas de milhares de militantes que assumiram o partido neste século, um pouco dessa história. Das primeiras definições, da construção de um Partido político profundamente democrático, das nossas primeiras divergências e o
aprendizado comum, das relações Partido-Sindicato, do direito de tendência interna, dos imensos desafios de assumir governos e gerir estruturas seculares montadas para a reprodução do capitalismo.
Um dos primeiros partidos no Brasil a assumir a luta das mulheres, do antirracismo e da defesa do meio ambiente, organizando seus filiados em grupos setoriais e núcleos de atuação onde a política passava a ser “o ano inteiro” e não apenas em episódios eleitorais. O Partido das cotas e do estímulo à participação das mulheres, dos jovens e dos negros em suas direções. No 1º Congresso (1991), a aprovação de um mínimo de 30% de mulheres nas instâncias de direção abriu espaço para a atual igualdade de gênero em todas as instâncias partidárias. O Partido que assumia seus mandatos contestando os privilégios da burocratização do sistema político-eleitoral, recusando altos salários, previdências especiais e estruturas de mandato incompatíveis com a realidade de vida da cidadania.
O primeiro texto “Breve História do PT – Das Origens ao 1º Congresso 1979/1991” é a reedição na íntegra, de uma publicação do então deputado federal Raul Pont pelo Centro de Documentação e Informação da Câmara Federal, em 1992, no exercício de seu mandato na Câmara Federal.
Mais do que uma homenagem aos 40 anos do PT, a reedição da separata busca informar nossas origens, nossas lutas, nossa história e, principalmente, socializar essa experiência da necessidade de uma identidade política, sem a qual um Partido não sobrevive. Não resolvemos, nem enfrentamos várias questões programáticas na definição de um partido socialista – muitas persistem até hoje – mas o Partido tinha identidade de lutas e de futuro, uma forte marca pública que servia de referência para milhões de brasileiros e brasileiras. No VII Encontro Nacional, em 1990, o Partido consolidou e aprovou a resolução, que vinha sendo debatida desde os primeiros anos, sobre o “Socialismo Petista”, estratégia nunca contestada em nenhum de nossos Encontros e Congressos futuros.
Essa debilidade em avançar programaticamente, no entanto, não é um problema apenas do PT no campo da esquerda. Isso ficou mais evidente após a crise do “socialismo realmente existente” na União Soviética nos anos 90 e a derrocada das experiências do leste europeu. Mesmo crítico a esse modelo, o
PT mantinha relações fraternas com os partidos de esquerda europeia e, inclusive, com os partidos comunistas dirigentes dos países do leste, preservando sua autonomia e sua visão crítica. Em nenhum dos nossos Encontros e Congressos, antes ou depois da crise, aprovou-se uma filiação do PT aos organismos internacionais dessas experiências.
A crise do “socialismo real” dos anos 90 pôs a nu não só os partidos dirigentes desses países, mas também os partidos da Europa Ocidental e do resto do mundo que se identificavam com
o modelo da URSS. A crise desnudada era a crise da burocratização autoritária do Estado, do Partido único, de um planejamento centralista e não democrático, mas, também, revelava a estagnação, a paralisia do pensamento socialista para se renovar e se contrapor ao crescimento do “pensamento único” neoliberal no capitalismo mundial.
No entanto, o PT no Brasil crescia, paradoxalmente, na contramão da ofensiva capitalista que abandonava suas teses do pós 2ª Guerra Mundial, o “estado de bem-estar social”, capitaneados por Reagan (EUA) e Thatcher (RU) rumo ao neoliberalismo pregado pelo Fórum Econômico Mundial. A conquista de grandes cidades e capitais, a vitória em alguns Estados nos anos 80 e 90 e a resistência crescente a era FHC, dificultaram a compreensão do que ocorria no mundo e a fragilidade do referencial teórico-programático da esquerda para fazer frente à conjuntura.
Apesar disso, nossas conquistas avançaram, inclusive, com a chegada à Presidência da República. O sistema eleitoral brasileiro e o presidencialismo de coalizão, onde nenhum chefe de governo tem governabilidade saída das urnas e tem que construí-la no Congresso, não é o melhor espaço para Governo e Partido dedicarem-se à reflexão teórica-programática.
Não priorizamos uma reforma política alicerçada na legitimidade da vitória eleitoral nem ousamos buscar a governabilidade na participação popular através da democracia participativa que fizemos com sucesso em experiências municipais. Fomos sendo, crescentemente, reféns de uma estrutura secular
montada para reproduzir o sistema, a ordem capitalista. Apesar das políticas distributivistas e de inclusão social terem alcançado milhões de brasileiros e termos inaugurado e ampliado grandes programas nas áreas sociais, a estrutura do Estado capitalista permaneceu intocável e, sob alguns aspectos, até se fortaleceu.
As políticas de alianças eleitorais cada vez mais amplas estenderam-se para os Estados e municípios tornando cada vez menos nítidas as diferenças entre os partidos. As grandes iniciativas nas áreas da saúde, educação, moradia e assistência social, inclusive, só se viabilizaram na imensa teia de órgãos
estaduais e municipais sob controle, na maioria esmagadora dos casos, de partidos oposicionistas ao governo federal quando não críticos aos próprios programas realizados. Sem o protagonismo dos beneficiários na conquista de obras e serviços, estas foram capitalizadas ou secundarizadas pelos agentes finais do processo.
O tamanho do desafio e nossas limitações foram tornando o Partido e sua identidade, cada vez mais parecida as demais estruturas partidárias existentes. Se não, como explicar o grande número de portadores de mandato que trocam de Partido, aproveitam as “janelas” pré-eleitorais para buscar abrigo em legendas mais palatáveis ao eleitor e a procura de alianças completamente contraditória com os propósitos declarados dos partidos. Isso não pode ser debitado, exclusivamente, ao
oportunismo ou a falta de caráter dos indivíduos. Objetivamente, os Partidos também tem sua responsabilidade pela filiação frouxa e sem critérios, o não controle dos eleitos, a ausência de
formação política e uma falta de programa e identidade que vincule o filiado a uma visão de mundo, a uma identificação de vida e interesse social com o Partido que assume.
A importante contribuição do professor Juarez Guimarães, “PT 40 anos – A História Aberta”, alerta, exatamente, para a necessidade de que essa grande tarefa de repensar e atualizar um programa de esquerda com nitidez, só pode ser realizada à luz dessa etapa histórica de ascenso neoliberal e da consciência dos impasses não resolvidos pelo socialismo democrático. Sua contribuição trabalha exatamente a grandeza da tarefa que temos pela frente. Não há modelos de referência ou exemplos que possamos mirar. Essa tomada de consciência é basilar para que possamos dimensionar nossos enormes desafios.
Certamente, não partimos do zero ou diante de terra arrasada. A riquíssima experiência das lutas dos povos no século XX não pode ser negada ou desconhecida. Seus acertos e erros são uma sólida base para avançarmos na luta anticapitalista assim como a convicção de que esse sistema em sua etapa de financeirização nada tem a oferecer à humanidade além da brutal desigualdade social e de uma dominação cada vez mais obscurantista, intolerante, autoritária e irracional.
A terceira contribuição deste livro é para refletirmos sobre a necessidade da ação unitária da esquerda socialista. Na luta social objetiva e agora no recente processo eleitoral vimos que há uma relação de forças muito adversa no país. Com todos os limites de um processo eleitoral é inequívoca a constatação do predomínio das forças capitalistas apesar da diversidade com que se apresenta. Desde o canto da sereia dos nomes e identificações que não expressam seu conteúdo ou sua prática (democratas, socialdemocratas, progressistas, popular, etc…) até o apelo à pátria e à fé religiosa (republicanos, patriotas, social cristãos, etc…) que não combinam com a tolerância, a transparência e a racionalidade que deve reger a Política em nossa vida em sociedade. Mais do que isso, a crise social que vivemos pela inaceitável desigualdade do capitalismo faz brotar as saídas mais perigosas da xenofobia, do racismo, da intolerância política e do próprio crime organizado, facilmente absorvidos pelo Capital quando não mais consegue legitimidade democrática em sua dominação.
Nesse sentido, o texto “Em Defesa de uma Frente de Esquerda”, de Raul Pont, é uma proposta de debate e construção de unidade no campo da esquerda de caráter orgânica, permanente e com respeito à autonomia e à soberania de seus participantes, com a convicção de que essa unidade nos dá mais força e capacidade de luta em todos os aspectos. Além disso, pode se transformar numa força motriz para o necessário desafio de repensarmos nossa estratégia socialista.
As profundas alterações vividas pelas mudanças no modo de produção capitalista nos últimos 50 anos e os novos conflitos e contradições que afloraram nesse período tornam insuficientes as matrizes teóricas e programáticas que organizaram nossos partidos. Quanto mais plural, tolerante, sem preconceitos e sectarismos, o debate e a ação unitária nos permitirão mais acertos e avanços.
Por fim, para acompanhar essas avaliações com alguns dados do desempenho eleitoral do PT, de 1982 até as eleições de 2020, e um comparativo de desempenho de todos os partidos e suas representações na Câmara Federal, reproduzimos essas séries estatísticas como mais um indicador de apoio à análise
realizada no livro.
Os Autores