O Brasil atravessa uma das maiores crises da sua história. Uma crise civilizatória. Uma crise que coloca em cena o nosso destino de nação soberana, democrática e socialmente justa.
O descalabro sanitário, a destruição economia, social, cultural e ambiental e o isolamento internacional passam a percepção que não há saída.
O governo do capitão, produto de um golpe, de uma eleição manipulada e de uma prisão injusta e arbitrária promove a destruição aniquiladora da democracia, dos direitos, da soberania e das conquistas elementares do Estado Democrático de Direito.
Não há cerimonia nem liturgia! É tudo as claras. A normalidade autoritária, o negacionismo do senso comum, a apologia da violência e das armas e o conservadorismo religioso. É a barbárie sendo legitimada!
As forças que participaram da trama golpista revelam o seu descaso pela democracia e pelas instituições. A crise do lavajatismo, as declarações do General Villas Boas – na época Comandante do Exercício – e as denúncias publicadas diariamente na mídia corporativa completam o cenário de horrores.
A crise é prolongada e os caminhos à vista tende a agravá-la. A disputa entre a direita não-bolsonarista e a extrema-direita revela contradições políticas, mas preservam afinidades no programa econômico.
No momento, o governo federal, com o apoio do chamado Centrão e sob a tutela militar, firma compromissos com grupos monopolistas e financeiros, mantém organizada sua base proto-fascista e vai impondo um caminho de controle das instituições de Estado. Ganhou fôlego nas eleições municipais de 2020. Continua com apoio de 1/3 da população, conforme pesquisas. E apesar de alguns desgastes e divisões, mantém as condições mínimas de governabilidade e a iniciativa política. Alicia e divide a oposição de direita. Firma compromisso com a mídia tradicional em torno das privatizações e teto de gastos.
Estes resultados políticos são parciais. A crise estrutural e sistêmica é grave! A crise tende ser prolongada e inexiste uma hegemonia clara e definida.
Portanto, poderemos ter momentos de grande tensão em 2021 e 2022. As condições políticas são favoráveis para a resistência ativa e à iniciativa tática. É imperativo colocar na agenda a luta contra governo e suas políticas; pela vacina já e para todos; pela continuidade do auxilio emergencial; pela defesa do SUS e pela revogação da PEC 95; em defesa do emprego e contra a fome; pela restituição dos direitos políticos do Lula e o apoio às pautas específicas e às bandeiras do movimentos sociais.
É necessário superar a divisão e a dispersão e por fim às ilusões na chamada Frente Ampla. A esquerda e a centro-esquerda têm um papel decisivo nesta conjuntura de oportunidades.
Sou de opinião que é necessário revisar o caminho e as políticas adotadas neste último período, principalmente nas eleições de 2020 e na composição das mesas da Câmara e do Senado. Além disso, estes momentos, evidenciaram que alguns setores da centro-esquerda vivem o dilema de aliança pela esquerda ou pela direita.
A direita não-bolsonarista tenta construir uma alternativa para 2022 mas terá que enfrentar a crise profunda que virá em 2021. Apesar da última derrota mantém laços com o programa do Guedes, mantem fidelidade à ruptura autoritária e conservadora de 2016 e dá sinais constantes de que não quer aliança com a esquerda. O enredo politico das disputas politicas compõe e tece um processo de criação de um outro regime politico, substituindo o estado liberal da gerado pela Constituinte de 1988. É um regime autoritário, constitucionalmente legalizado, que busca se legitimar através da ideia da lei e da ordem, das leis infra-constitucionais e de uma política ideologicamente conservadora e reacionária no terreno dos costumes, da religião, dos preconceitos e do fundamentalismo.
No ambiente atual configuram-se três cenários: o aguçamento da crise econômica e social em 2021 e protagonismo da esquerda, a radicalização da extrema- direta bolsonarista e o acordão com o sistema de “puder” para encabrestar e tutelar o capitão. Há um ambiente de fragmentação política e de um enfraquecimento político do governo. Portanto, há uma crise de hegemonia, a maioria de votos ainda não se transformou num bloco hegemônico com iniciativa e com força capaz de enfrentar e dirigir o processo em 2021 e, principalmente, em 2022. Isto, no meu entender, está aberto. O pano de fundo das movimentações eleitorais e institucionais são os interesses que presidem a nova ordem econômica monopolista, financeirizada e subalterna internacionalmente. É preciso que seus protagonistas eliminem os direitos sociais, o estado do bem-estar social, realizar o programa de privatizações, manter a regra de ouro do teto de gastos. Isto é, executar o programa neoliberal e aprofundar a dependência. A democracia, para estes senhores, é disfuncional, é uma mera engenharia de resultados previsíveis para que se possa administrar o país como este fosse uma grande empresa ou um grande banco. É o destino de fazer um ajuste fiscal pelo alto para transformar a vida das pessoas em coisas, apoiados por um sistema de justiça garantidor da segurança, da acumulação de riqueza, da farda e da ordem estabelecida e pelos telejornais e seus comentaristas que selam o senso comum: o capital e a propriedade são intocáveis e devem ter segurança eterna. Já as catástrofes, risco de vidas, milhares de mortes, crise sanitária são consequências naturais da ação do Covid-19. A embalagem de tudo isso, é a religião da prosperidade, o sexismo, o racismo, a mentira e a fantasia que se apoia na negação da verdade, a chamada “pós-verdade” que se fundamenta em relações violentas, agressivas, totalmente manipuladas pela ideia do inimigo, do conflito, pela ideia de transformar a liberdade e a igualdade em valores privados. Os direitos humanos são direitos de pessoas privadas e é um mal que deve ser eliminado. Este é o monstro que ganhou as eleições de 2020, a de 2018 e que sustentou o golpe de 2016. Ora aparece com a face bruta ora veste roupas novas e bem cheirosas. É uma direita que procura recuperar a tradição mais “jeitosa”, com as liturgias institucionais, que tenta recuperar a política, mas a política dirigida por estes senhores.
Em relação ao PT, temos revisar nossa orientação política que orientou as eleições de 2020, a luta pelo Fora Bolsonaro e as disputas para a mesa da Câmara e do Senado. É necessário deixar claro a nossa indignação, o caminho do enfrentamento político, as articulações com os movimentos sociais e partidos de esquerda produzindo iniciativas para deter o descalabro e a aventura desastrosa do governo do capitão para o país e para o povo. O caminho que nós adotamos merece revisão profunda, também, na tática defensiva frente ao anti-petismo, na despolitização em relação aos temas nacionais.
A burguesia está vencendo! Deseja domesticar o PT nas brejas da ordem autoritária e oferecer, como vitória, migalhas e a diminuição de danos.
O PT ao longo dos 41 anos de existência quebrou a tradição histórica da classe dominante em relação à esquerda: ou, por bem, se enquadra ou é eliminada.
Recusamos este papel e protagonizamos uma alternativa democrática e popular. A classe dominante, a partir de 2005, trabalhou para combater esta alternativa.
Com as lições da nossa experiência de governo, dos êxitos e dos erros, das insuficiências e inexperiências podemos recolocar o PT no centro da disputa da atual ordem política.
Não queremos apenas a absolvição da história, queremos um futuro democrático, civilizado, igualitário, livre de todo tipo de preconceito. Queremos o socialismo. Esta palavra “maldita” deve ser recolocada no debate político. Pois temos que discutir, nesta crise civilizatória, qual a alternativa para enfrentar a super-exploração, o abandono, a desesperança e o individualismo. Temos que englobar e nos relacionar, nesta luta central que é a radicalização da democracia, com a pauta ecológica, com a luta feminista e anti-racista, com a causa da comunidade LGBTQ+, das populações originárias e com aquelas em situação de risco. Queremos nos unir a outras forcas de esquerda com base numa plataforma em defesa da vida, dos direitos, da democracia, da negação radical deste governo e de suas políticas. Queremos enfrentar o modelo econômico neoliberal e suas exigências de reformas privatizantes e concentradoras de renda e riqueza. Algo que poderia ter um acúmulo maior na disputa eleitoral de 2020.
Reafirmamos a necessidade de transformar as instituições políticas estatais, novos parâmetros da soberba nacional e do estado do bem-estar social, recuperar as referências de uma ordem internacional democrática e pluralista. Como disseram William Nozaki e José Celso Cardoso no livro Constituição Golpeada, “o enfrentamento das destruições conservadoras e neoliberais deve se dar pela reconstrução de ideias e forças que formem o corpo de um novo poder constituinte. Para isto, é preciso alterar a correlação de forcas na sociedade e, então, convocar uma Assembleia Nacional Constituinte”.
Queremos ser um polo político antagônico e de negação da ordem em curso. Não queremos enfeitar o bolo nem acender as velas para a grande conciliação que busca manter as coisas como estão. Queremos transformações radicais e estruturais. Isto, também, poderia ter sido sinalizado na disputa de 2020.
Neste cenário, o papel da liderança do Lula é fundamental como articulador das forças de esquerda e populares e como protagonista de uma alternativa radicalmente democrática e que sinalize um questionamento do sistema capitalista e que não devemos ter cerimônia em indicar outro modelo que tem nome: é a luta por um socialismo que incorpore a radicalização da democracia e alternativas libertárias para o povo brasileiro.
Nestes 41 anos de PT, temos lições de polarização política pela esquerda e de institucionalização conciliadora. Prefiro a primeira alternativa, pois foi a que fez com que o PT afirmasse posições como defender a campanha Só Diretas, não ir ao Colégio Eleitoral e questionar alguns pontos da Constituinte de 1988, se diferenciando num voto simbólico.
A vida está nos ensinando que, governar sem mudar as estruturas do estado, faz com que a esquerda e, particularmente o PT, fique vulnerável a ataques golpistas e diante de tentativas de desligação, como a cruzada moralista que começou em 2005.
Estamos vivendo um novo período histórico e o PT tem que discuti-lo, a exemplo do que fizemos em 1988/89, quando nos posicionamos à esquerda e acertamos neste posicionamento. Hoje há uma disputa pela narrativa, pela memória e pelo futuro, de um lado, e a destruição aniquiladora, por outro. Neste sentido, devemos resgatar as experiencias, fazer um balanço e definir as estratégias programáticas e táticas para enfrentar este novo acúmulo de forças que passa, necessariamente, pelas mobilizações em 2021 e pela disputa em 2022. Interessa à classe dominante acabar com as memórias que representam projetos políticos como a Era Vargas, como acontece agora com o anti-petismo, como aconteceu com a interdição do Lula. Este debate deve ser na forma de encontros, plenárias e congressos para atualizar o seu programa e alguns aspectos da sua organização política, suas ligações com os movimentos sociais e as novas exigências na defesa dos interesses populares. Temos um ponto de partida, as resoluções do 6º Congresso, onde o PT, ao analisar a estratégia e o programa, fez indicações importantes para um balanço que indique um caminho de esperança para o futuro. O PT é um grande feito histórico: 41 anos de lutas, de conquistas, de derrotas e muitas lições. Temos condição de dar um salto, mas é necessário um debate franco e corajoso que indique uma nova perspectiva programática, estratégica e um novo modelo de organização.
O PT ter que ser protagonista de um futuro democrático, libertário, pluralista e socialista. Tem que ser um polo de esquerda que use as palavras certas na hora certa. Não à acomodação eleitoral, não às luzes palacianas e não ao cheiro das elites bem-comportadas. Temos que ser radical sem se isolar. Temos que ter lado e que possamos sinalizar mudanças profundas neste projeto que nega o neoliberalismo.
É necessário, também, reorganizar as maiorias internas do partido e do petismo, buscar construir consensos progressivos reelaborado a nossa estratégia e nosso programa tendo como referência os principais documentos dos 41 anos da nossa existência.
Este momento é decisivo para nosso partido se colocar como uma alternativa de esquerda que não pode ser nem a domesticação nem o isolamento. É uma disputa, onde devemos articular a luta institucional com a luta social e popular, propor uma frente de esquerda e realizar alianças pontuais quando as condições exigirem, como foi o caso do FUNDEB e na denúncia de casos de racismo.
Neste novo período histórico que iniciou com o golpe contra o PT, este acabou se constituindo como o centro da confrontação política, para os que o amam e para os que o odeiam. A rica experiência dos 40 anos do PT reflete as virtudes, as limitações e os equívocos da nossa elaboração e da nossa “praxis”. É verdade que o PT aprende com o povo e este com o PT. Por isto, o partido deve projetar o novo como quando dirigimos um carro olhando o parabrisa e, ao mesmo tempo, o retrovisor. Esta constatação se reproduz em ocasiões, nos valores, na ideologia, no “modus operante” e nas influências variadas da formação política e cultural. É necessária uma avaliação crítica de certos pressupostos que influenciaram nossa relação com o povo, seja nas organizações populares, seja nas campanhas eleitorais, seja na nossa experiência de governo. Devemos revolucionar alguns procedimentos e posicionamentos programáticos e estratégicos sobre a realidade brasileira. Devemos nos livrar de certos preconceitos e mistificações.
Volto a repetir que, o mensalão de 2005, o levante popular de direita de 2013, o golpe de 2016, a prisão do Lula e a eleição ilegítima de 2018 geraram as possibilidades para a mudança do regime político de 1988, para o autoritarismo conservador com traços neo- fascistas. A defesa da ditadura militar, do racismo, da violência, do patriarcalismo, da misoginia, tornaram-se política de estado. A justificativa ideológica é a defesa da propriedade, da família, de deus e do mercado. É o senso-comum dos porões da sociedade que se identifica e é representada pelo “mito”. São valores que vão da negação da política ao autoritarismo, ao abstencionismo, ao individualismo e ao vale-tudo. A negação da solidariedade social é uma espécie de revanchismo do ódio, da mentira e do medo. O anti-petismo e a construção da cruzada moralista geraram a intolerância e a raiva pelo que os governos do PT proporcionaram ao povo brasileiro. Estas conquistas devem ser destruídas, aniquiladas. O Partido dos Trabalhadores e o Lula são adversários radicais e entidades políticas que devem ser queimadas na fogueira deste revanchismo. Como não disputamos a hegemonia dos corações e mentes e como erramos na relação com as instituições estatais, caímos em razão das nossas virtudes e nossas limitações facilitaram a nossa derrota. Não enfrentamos com argumentos nem atitudes o anti-petismo e só o combateremos com uma crítica radical ao lavajatismo, com uma auto-avaliação da nossa experiencia de governo e reafirmando nosso compromisso com o povo explorado e oprimido, com a sociedade dos deserdados. Para o PT e a esquerda é fundamental radicalizar a democracia e refundar novas instituições políticas fundamentadas na soberania popular e fundir com a luta ecológica, feminista, LGBTQ+, anti-racista. Devemos incentivar as formas de poder popular alternativo. Nossos movimentos e bandeiras táticas devem estar vinculadas ao objetivo estratégico por mudanças estruturais no estado oligárquico e burguês. A hegemonia dos trabalhadores no estado e na sociedade não dependem apenas de vitórias eleitorais nem de boas administrações. É necessário construir força política e social e alianças estratégicas. A defesa da vida, da saude, da vacina, do emprego, do auxilio emergencial, do SUS se realizam e se ampliam no combate ao capitalismo monopolista, financeirizado e subordinado aos interesses internacionais do mercado.
Considerando que sofremos uma derrota estratégica, mas a burguesia não nos liquidou. E que, além disso, temos condições de ter iniciativa política numa estratégia de acumulação de forças, resumo as seguintes sugestões que devem pautar nosso debate:
- Só recuperaremos o nosso legado se fizermos uma auto-avaliação da nossa experiencia de governo.
- Nas novas condições históricas da acumulação capitalista e financeira, temos que revisar nosso projeto estratégico e nosso programa.
- Construir uma Frente de Esquerda e realizar alianças pontuais com forças políticas de centro e combinar a atuação institucional com nossa militância social e popular.
- Mudar a estrutura organizativa do partido para favorecer nossa vinculação com o povo, oxigenar os organismos de formação e o debate interno e horizontalizar nossas estruturas partidárias
- Devemos realizar um Encontro Nacional para fazer o debate político sobre os novos desafios do PT.
- Proponho um movimento socialista, de esquerda, petista e anti-capitalista. (Fevereiro de 2021)
José Genoino foi deputado federal e presidente nacional do PT
Publicação original no blog manifestopetista.org.br
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