Parrudo e sempre com um sorriso luminoso no rosto, o vice-presidente salvadorenho Salvador Sánchez Cerén não aparenta os 69 anos completados em junho. Professor público desde os 19 anos, primeiro na cidade de Quezaltepeque, onde nasceu, e depois na zona rural de Huizúcar, ele logo se insurgiria contra as péssimas condições de trabalho dos professores no seu país, El Salvador.
Professor, sindicalista, comandante guerrilheiro das forças da FMLN (Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional), Sánchez Cerén foi um dos artífices dos Acordos de Paz que puseram fim a dez anos de guerra civil em El Salvador.
Apontado pelas pesquisas como o favorito às eleições presidenciais de fevereiro de 2014, Sánchez Cerén deverá suceder o mais bem avaliado presidente da América Latina, o jornalista Maurício Funes, de quem é vice-presidente.
Um dos fundadores do Foro de São Paulo, Sánchez Cerén esteve na capital paulista na primeira semana de agosto para o XIX Encontro daquela instituição. Em um dos intervalos dos debates ele recebeu o jornalista e escritor Fernando Morais, autor de “Os Últimos Solados da Guerra Fria”, “Olga”, entre outros, para esta entrevista exclusiva a Opera Mundi.
Fernando Morais – O Foro de São Paulo contribuiu para que muitos grupos guerrilheiros deixassem as armas e se incorporassem à vida política. O exemplo mais eloquente é o de El Salvador, de vocês, da FMLN. Como se explica que um país com uma tradição tão conservadora como El Salvador, depois de 20 anos de governos neoliberais, tenha escolhido o presidente Maurício Funes como presidente e o senhor como vice, candidatos da FMLN?
Salvador Sánchez Cerén – Primeiro talvez seja bom explicar nossa relação com o Foro de São Paulo. Nós fomos fundadores do Foro, junto com a Frente Sandinista, com o Partido dos Trabalhadores, o Partido Comunista de Cuba, a Frente Ampla do Uruguai, entre outros. Era fundamental unir a esquerda latino-americana para encerrar uma etapa que entrava em um momento difícil. O que acontecia na velha Europa, com o fim do socialismo real, simbolizado pela derrubada do Muro de Berlim, gerava em muitos lugares a impressão de que já não havia mais nenhuma possibilidade de luta.
FM – Havia um sentimento de orfandade na esquerda…
SSC – Sim, sim… Nós havíamos pegado em armas porque todos os espaços tinham sido fechados em El Salvador. Nosso projeto era levar a democracia a El Salvador, criar uma sociedade em que todos os cidadãos pudessem ter oportunidades. Oportunidades para os camponeses, para os trabalhadores…
FM – O senhor pessoalmente atuou como comandante na guerrilha por quanto tempo?
SSC – Eu estive à frente da guerrilha desde 1983. Quando chegaram os anos 90, já estávamos em um processo de busca da conclusão do conflito. Tínhamos onze anos de luta quando, no Foro de São Paulo, levantamos a necessidade de uma solução política, de diálogo e negociação. Embora tivéssemos juntado todas as forças de esquerda, a solução política negociada era difícil, porque o processo democrático havia sido fechado. Havia um governo ditatorial que impedia que a democracia em El Salvador pudesse ser construída, pudesse se desenvolver.
FM – Qual era a proposta do governo?
SSC – A primeira proposta feita pelo Exército era para depormos as armas e nos integrarmos à vida política . Mas isso não resolvia os problemas de fundo. Era preciso reformar a Constituição da República, transformar as Forças Armadas, melhorar o sistema eleitoral, fazer uma reforma também no Judiciário. O primeiro que conseguimos foi trabalhar para que fossem implementados os Acordos de Paz. Nós sabíamos que havia um grave risco na proposta oficial: temíamos que, se deixássemos as armas, os Acordos não seriam aplicados.
FM – Desarmados, vocês não teriam como cobrar a aplicação dos Acordos, é isso?
SSC – Sim, não haveria mais como cobrar. Então fizemos um processo paralelo. Criamos um calendário de cumprimento dos Acordos de Paz segundo o qual as armas seriam depostas pelas forças insurgentes à medida que os Acordos fossem sendo cumpridos. Continuamos negociando e nesse processo foram implementadas as transformações que deram um novo papel às Forças Armadas, fortaleceram os mecanismos democráticos e o equilíbrio entre os poderes. Isto durou mais de três anos, foi de 1992 até quase 1996. Nossa plataforma política eram os Acordos de Paz. Nós já estávamos, então, nos convertendo em uma força politica. Deixávamos, paulatinamente, de ser apenas uma força militar e passávamos a ser um partido político. Em 1994 participamos pela primeira vez nas eleições no país.
FM – Qual foi o ganho da FMLN naquelas eleições?
SSC – Ali começou nosso processo de acúmulo político. Não ganhamos a presidência, mas nos tornamos a segunda força política do país. E a partir de então começamos a ganhar municípios, governos locais e presença no parlamento.
FM – Nessa fase a FMLN lembra um pouco a trajetória do PT, aqui no Brasil. O PT perdeu várias eleições majoritárias, mas, como vocês, começou a crescer ganhando governos de municípios e estados.
SSC – Sim, também a nossa acumulação política se deu primeiro a nível local. Implantamos novas formas de governar nas municipalidades, com participação popular e transparência. Os orçamentos eram feitos com a participação da população. Fomos mudando a realidade das comunidades, se investiu mais em melhorar a qualidade da educação e da saúde. Na Assembleia Legislativa, o nosso Congresso Nacional, nos transformamos em uma força que incorporou as demandas dos setores excluídos. Foi através da ação da FMLN que os trabalhadores finalmente puderam ter oportunidades.
FM – E como foi o desempenho da FMLN nos pleitos seguintes?
SSC – Em 1994 havíamos nos coligado com a FDR (Frente Democrática Revolucionária), uma coalizão formada por forças de esquerda democrática. Nosso candidato era Rubén Zamora, da FDR, que vinha da Democracia Cristã. Perdemos as eleições, mas nos convertemos na segunda força política do país, acumulamos presença na Assembleia e em vários municípios. Em 1999 decidimos lançar candidato próprio, Facundo Guardado, que tinha como vice a deputada Nídia Díaz. Perdemos de novo. Até então, a votação obtida pelos nossos candidatos girava em torno dos 400 mil votos. Nas eleições de 2004 nosso candidato foi o comandante Schafik Handal. Duplicamos nossa votação para 800 mil votos, mas ainda não havia chegado nossa vez. A diferença foi mínima, mas o eleito foi Antonio Saca.
FM – De novo o caminho trilhado pela FMLN se assemelha ao do PT. Lula perdeu uma eleição para governador e três para presidente da República antes de chegar ao Palácio do Planalto.
SSC – Essa semelhança se consolida na eleição seguinte, em 2009. Tínhamos chances visíveis de eleger o presidente, mas era evidente que precisávamos tentar construir uma coalizão mais ampla. E foi aí que tomamos a decisão de apresentar como candidato o jornalista Mauricio Funes, um dos nomes mais bem avaliados em todas as pesquisas, com um programa que continuava propondo mudanças na forma como o país vinha sendo governado.
FM – Na sua intervenção no Foro o senhor se dirigiu ao ex-presidente Lula e disse: “Você se lembra de 1996?”. O que significava essa pergunta?
SSC – É que em 1996 ele havia estado no encontro do Foro, que se realizava em San Salvador, cujo slogan era “Vamos construir a esperança”, que inspirou nossa marca nas eleições de 2009.
FM – No dia em que foi eleito, a primeira frase do presidente Maurício Funes foi “A esperança venceu o medo” – a mesma que havia sido pronunciada por Lula ao vencer as eleições de 2002.
SSC – Sim, e nosso slogan era “Vem a mudança, vem a esperança”. Além de ganhar a Presidência, fizemos a maioria na Assembleia Legislativa.
FM – Apenas dois anos depois de eleito, Mauricio Funes foi apontado por pesquisas como o presidente mais bem avaliado. A que se atribui a popularidade de Funes e do governo da FMLN?
SSC – Fixamos os objetivos do governo em dois eixos fundamentais: inclusão social e educação. A maioria dos ministros nomeados por nós tinha origem em movimentos sociais.
FM – Antes de se incorporar à guerrilha o senhor era professor, não?
SSC – Sim, eu sou professor. E isto talvez tenha contribuído para que o presidente Funes implantasse uma novidade. Ocorre que em El Salvador o vice-presidente tem a exclusiva função de substituir o presidente em suas ausências, nada mais. E o presidente decidiu que eu seria o ministro da Educação. Porque, além de professor, fui dirigente do Andes 21, um sindicato histórico de El Salvador, que representa o professorado nacional.
Não fizemos um Bolsa Família, como no Brasil, mas asseguramos às mães que, se frequentassem a escola, seus filhos teriam alimentação, uniformes, sapatos e material escolar. E, ao contrário do que sempre se fez antes, quando as reformas na educação só eram implantadas nas zonas urbanas, decidimos estender todos esses benefícios às populações residentes na zona rural, nos confins do país. Este foi o programa mais exitoso do governo. Concentramos os investimentos na área social, em direção oposta às políticas neoliberais dos governos anteriores, que só distribuíam aos pobres a água que transbordava do copo.
FM – E qual tem sido a reação da população a esses programas?
SSC – As pesquisas de opinião pública revelam que 70% da população não quer que os programas desapareçam. Querem que haja continuidade nos programas sociais como o Pacote Escolar, a Cidade Mulher, o Programa de Agricultura Familiar, a reforma da saúde… Nós contratamos mais de quatro mil trabalhadores da saúde, entre eles muitos médicos formados em Cuba, com formação em atenção primária, que é chegar à família, chegar às casas. Então começaram a chegar médicos a lugares onde nunca haviam chegado, onde nunca havia estado sequer uma enfermeira. Os investimentos na área social subiram de US$ 40 milhões para US$ 180 milhões.
FM – Em fevereiro de 2014 o senhor vai disputar a Presidência com o ex-presidente Antonio Saca, um candidato declaradamente comprometido com teses neoliberais. Vão se confrontar duas visões opostas de como deve ser governado o país. Qual é a sua expectativa para as eleições?
SSC – Nosso programa está assentado em dois conceitos: continuidade e aprofundamento da mudança. Por quê? Primeiro porque há uma clara percepção da população de que começou uma mudança, e segundo porque o povo espera essa mudança seja aprofundada. É com esses dois pontos que estamos comprometidos. E o reconhecimento da população beneficiária dessas mudanças não se fixa apenas na figura do presidente Funes. Embora o sistema presidencialista salvadorenho leve o povo a associar tudo o que acontece no país – de bom e de mau – à pessoa do presidente da República, a maioria das pessoas tem clareza de que as mudanças foram implantadas por um presidente que governou com a FMLN. A FMLN governou.
As respostas da população às perguntas feitas pelas pesquisas não deixam dúvidas quanto a isso. Quando perguntam: “Qual é o partido que cumpre o que promete?”, a resposta é “A FMLN”. “Qual é o partido que está mais preocupado com os pobres?”. “É a FMLN. “Qual é o partido que pode ajudar a levar o país adiante?”. “É a FMLN”.
FM – Não somente da figura do presidente…
SSC – Não somente da figura do presidente. Os programas implantados por ele passaram sem problemas na Assembleia Legislativa, com a unanimidade dos votos do FMLN e de todo o conjunto de forças que respalda Funes em suas iniciativas. Isso faz com que haja uma dupla percepção positiva: do partido e do governo.
FM – Como se deu o processo de escolha de seu nome para disputar a Presidência nas eleições do ano que vem?
SSC – Você sabe que na esquerda não é muito fácil definir uma candidatura. Mas achamos uma fórmula mágica: juntamos na mesma chapa o ministro mais bem avaliado do governo e a experiência com um administrador público bem-sucedido, Oscar Ortíz, há vários anos prefeito da cidade de Santa Tecla. O prestígio dele decorre do fato de ter conseguido transformar Santa Tecla em uma cidade-modelo.
FM – Uma vitrine da FMLN…
SSC – Sim, uma vitrine. Um modelo de convivência para a família, onde há recreação, esporte, cultura, e isso lhe deu prestígio. Então juntamos aí duas candidaturas que uniram o partido.
FM – Os opositores mais sectários e intransigentes dos governos progressistas da América Latina são os monopólios de comunicação. Isso é visível no Brasil com Lula e Dilma, na Argentina com os Kirchner, na Venezuela com Chávez e Maduro, na Bolívia com Evo Morales, no Equador com Rafael Correa, entre outros. Como são em El Salvador as relações de vocês, do governo e da FMLN, com os grandes meios de comunicação? É conflituosa? Como se administra esse problema lá?
SSC – Em El Salvador estamos tentando usar todos os meios de comunicação para enfrentar esse problema. Lá existe um jornal que é mais vinculado à esquerda, ainda que tenha sua tiragem seja pequena. Eu e Óscar [o candidato à vice-presidência em 2014] nos reunimos com os donos dos meios de comunicação para falar sobre a necessidade de garantir que essas eleições sejam as mais transparentes e sobre o papel que devem ter os meios de comunicação. Mas sabemos que os grandes meios de comunicação são totalmente favoráveis ao partido que representa os interesses dos grandes setores neoliberais em El Salvador. Mas existe também um processo em movimento das redes sociais. Contamos com uma enorme rede de meios alternativos.
FM – O senhor é conhecido como o primeiro blogueiro candidato à presidência de El Salvador. Como ingressou nesse novo mundo?
SSC – Na campanha para a vice-presidência fui acompanhado por uma multidão de jovens, o tempo todo. Foi quando conheci um jovem hondurenho, simpatizante da FMLN, que era especialista nessa área. Ele montou para nós uma plataforma de comunicação com as redes sociais e, desde então, em 2009, comecei a usar a Internet com a minha página própria. Uso o Facebook e transmito pela Internet todas as minhas apresentações pelo país. E é a Internet que permite que eu esteja conectado, por exemplo, com os salvadorenhos que vivem no exterior. Não se esqueça de que temos 3 milhões de salvadorenhos vivendo fora do país – gente que não só manda remessas de dinheiro para suas família, mas que vota. Mais do que o acesso ao voto deles, a Internet permitiu que eu esteja em permanente conexão com eles. Já como vice-presidente comecei a perceber a importância das minhas próprias redes. Contratei um grupo jovens e eles começaram a usar o Twitter, o Facebook, e há um mês lançamos o primeiro blog da campanha (Clique para acessar ao blog de Sánchez Cerén). Mas o mais importante é o contato direto com a população. Nada substitui esse contato.
FM – Essa revolução cibernética já tem dois ícones: Julian Assange e Edward Snowden. Se o senhor fosse presidente hoje, como reagiria se batesse na porta da embaixada de El Salvador em Moscou um senhor chamado Edward Snowden, ou se um australiano chamado Julian Assange pedisse asilo na embaixada salvadorenha em Londres?
SSC – Como você sabe, somos um país que depende muito das relações com os Estados Unidos. Primeiro porque temos três milhões de salvadorenhos vivendo lá. Depois porque é o nosso primeiro mercado. E terceiro porque El Salvador tem uma economia dolarizada. Quando falamos da questão das relações diplomáticas, estamos falando que as relações devem estar postas em função dos interesses da população. Mas isso não quer dizer que você vá se submeter a uma política…
FM – Imperialista?
SSC – Sim, e que atinge a população. Aí se está exercendo o superpoder de um império que está observando todo o mundo, que está violando a intimidade das pessoas. E o fato de que alguém tenha denunciado isto me parece um direito legítimo. E dar hospitalidade, dar proteção a essas pessoas me parece uma decisão humanitária. E, além disso, está no direito internacional. Para nós, as relações com os Estados Unidos são prioritárias, mas isso não quer dizer que não vamos respeitar nossa soberania como povo, como país, porque senão deixaríamos de ser dignos como país.
FM – Hoje em dia o mundo inteiro discute a questão da tragédia das drogas. No centro da discussão está uma pergunta: legalizar ou continuar reprimindo? O Uruguai acaba de aprovar a legalização da maconha. Aqui no Brasil essa política é apoiada até pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um social-democrata de 82 anos. O senhor tem opinião formada sobre essa questão?
SSC – Há países produtores, países consumidores e os países que são trânsito. Os Estados Unidos são o grande consumidor e quem mais sofre somos nós – tanto El Salvador como o Brasil, por exemplo -, os que estão no meio do caminho. Na verdade, todos os países da América Central padecem com isso. É preciso dar uma resposta regional de enfrentamento, porque toda a América Central lida com a questão do trânsito.
FM – O México não produz cocaína e está tomado por cartéis de traficantes.
SSC – Em El Salvador acreditamos que todas as ações devem ir contra o crime organizado. Se não for combatido, o narcotráfico penetra até no aparelho de Estado. Penetra nas municipalidades, penetra na Assembleia Legislativa. E não apenas penetra no Estado, mas no mundo dos grandes empresários. Muitos empresários têm capital proveniente da lavagem de dinheiro cuja origem é a droga. O problema é como proteger a juventude que é, talvez, o principal alvo dos cartéis. Esta é uma população de risco. Para salvá-la das drogas, precisamos fazer maiores investimentos na educação, maiores investimentos na cultura.