Para Paulo Freire
(falecido em 02 de maio de 1997, aos 75 anos)
“Não preciso de pedra tumular, porém
Se vós precisais duma para mim
Desejaria que se lesse nela:
Este fez propostas.
Nós as aceitamos.
Com tal inscrição ficaríamos
Todos nós honrados”
– Bertold Brecht –
– A Educação precisava de Lula
Nesse espaço, destaco o que concerne a um professor (UFRGS), a Educação: o meu lugar de fala. Com Luís Inácio Lula da Silva na Presidência da República, as conquistas na área foram extraordinárias sendo de domínio público. A multiplicação de universidades pelo território nacional e o sistema de cotas afirmativas étnicas democratizaram o acesso ao ensino superior. Antes, escassos negros (ainda menos, indígenas) frequentavam as salas de aula. Abaixo, seguem dados que dão concretude às ideias que guiam a tese do artigo. A saber, que a Esquerda no governo zela pela Educação, ao passo que a Direita converte-a em mazela. Não se trata de uma convicção, senão de uma comprovação.
Entre 2003 ao Lula assumir e 2010 quando deixou o Palácio do Planalto foram criadas 14 novas universidades federais. Dilma Rousseff criou outras 4, alcançando a impressionante marca de 18. Os campus universitários saltaram de 101 para 274. Hoje, as universidades federais perfazem 230 municípios espalhadas nas unidades federativas. Os alunos somavam 109 mil em 2003. Em 2010 já eram 222 mil, tinham duplicado. As universidades, contavam com 41 mil professores e 85 mil técnicos, contam agora com 63 mil professores e 105 mil servidores. Para atender o contingente crescente de discentes, as instituições puderam contratar docentes e técnicos administrativos, coisa que não ocorreu nas gestões de Fernando Henrique Cardoso. Evidentemente os dados foram desapontadores para quem torcia pelo quanto pior, melhor para confirmar o seu antipetismo.
Aqui, vale mencionar: o Programa Universidade para Todos (ProUni, 2005), que concedeu bolsas parciais de 50% e integrais de 100% a estudantes de baixa renda, sem ressarcimento; a Reestruturação das Universidades Federais (Reuni, 2005) e a expansão da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RFEPCT, 2008). De 1909 a 2002 existiram 140 escolas técnicas federais no país. Em 2010, 342. Eram 140 mil aprendizes em 2003. Em 2010, 342 mil. A receita do Ministério da Educação para fomentar a Educação profissional cresceu de R$ 1 bilhão para R$ 5 bilhões, no mesmo período. Nunca dantes…
A Educação Básica recebeu creches e escolas de tempo integral, aumentando as taxas de escolarização. Nas crianças de 0 a 3 anos os índices elevaram-se de 15% em 2002 para 30% em 2015. As taxas de 4 a 5 anos foram de 67% para 90%. De 6 a 14 anos de 96% para 98%. De 15 a 17, de 68% para 75%. Vagas ocupadas por infantes do Bolsa Família eram suplementadas com 50% dos recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) ao município. As iniciativas não decorriam do afã pela quantidade. Atesta-o o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB, 2007) para medir a qualidade do aprendizado nacional e planejar melhorias do ensino. A partir de 2011, o país foi contemplado com o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec). Inútil lembrar que a explanação é indicativa, ao invés de exaustiva.Ademais, nessa caminhada civilizacional a Educação não andou sozinha. “O Orçamento da Cultura cresceu de R$ 276,4% em 2002 para R$ 3,27 bilhões em 2014. Foram lançados Vale-Cultura, Programa Cultura Viva, Programa Mais Cultura nas Escolas”, reitera o economista Fernando Nogueira da Costa em Por um Programa de Governo Social-Desenvolvimentista (Democracia Socialista, 27/03/2021).
Esses números resultaram da práxis de uma vontade política de Esquerda que zelou pela Educação. Não foram publicizados porque a mídia tem lado na luta de classes, e não é o do Brasil. Em toda a espinha dorsal da Educação brasileira houve investimentos na era PT. Por razões antinacionais, os meios de comunicação ocultaram programa educacional alavancado pelo metalúrgico formado nas greves operárias, sob o regime ditatorial. A mídia comercial continuou a propagandear as proezas educacionais da Coreia do Sul, da Malásia, das Filipinas. O complexo de vira-lata das elites, que Nelson Rodrigues depreendeu da derrota da Seleção Brasileira para a Uruguaia, em 1950, no Maracanã, mantém-se ativo.
O silêncio sobre as façanhas do lulopetismo na Educação, que teve por ministro o professor de Ciência Política (USP) tornado candidato em 2018, permite compreender a vergonhosa dubiedade de um jornal de São Paulo no segundo turno das eleições, ao afiançar que a escolha seria difícil (ops): “De um lado, o direitista Jair Bolsonaro (PSL), o truculento apologista da ditadura militar; de outro, o esquerdista Fernando Haddad (PT), o preposto de um presidiário. Não será fácil para o eleitor decidir-se” (Estadão, 08/10/2018).
Essa fatia, cortada da totalidade dos feitos das administrações sob comando petista, basta para realçar a diferença entre o projeto político educacional inclusivo (orientado para a libertação do ser humano) e o projeto político excludente (centrado na obediência à cartilha neoliberal). Um cuida das novas gerações, outro contempla apenas a submissão à ganância das finanças. O que importa não é a escolaridade formal, como pretende a tradição bacharelesca, mas os vetores com os quais os governantes se identificam na condição de porta-vozes no âmbito do Executivo. Paulo Freire, o paradigmático educador, ficaria orgulhoso. Lula portou-se na Educação como um autêntico libertador.
– Desastre anunciado de Bolsonaro
Com o impeachment em 2016, Inês é morta. A ascensão de Temer/Bolsonaro instalou o descalabro. Sem protagonismo, o MEC virou uma casamata de ideologias exóticas. Professores, entidades sindicais e estudantis, pesquisadores e reitores foram transformados em inimigos da Educação, tratada como uma pasta menor. A consequência foi a nomeação de reitores pró-tempore ou ilegítimos no interior das universidades e institutos federais. As intervenções foram realizadas sob a bandeira deletéria de uma cruzada anticivilizatória e anticientífica, que violou a autonomia das instituições de ensino.
Quixotes da santa ignorância, os agraciados com os cargos por indicação palaciana desencadearam ataques aos moinhos fictícios do Marxismo Cultural, da Ideologia de Gênero, da Educação Sexual e da Doutrinação Política dos estudantes. Ecoaram, assim, as invectivas do movimento olavista Escola Sem Partido (sem senso crítico e sem medo do ridículo), deflagrado em 2004 para revigorar o princípio da escola limitada à formação de mão de obra dócil ao mercado e imune às reflexões filosóficas e sociológicas. Antídoto contra os progressos prenunciados na administração da Esquerda.
Na proa do Ministério da Educação (MEC) sucederam-se Vélez Rodrígues, Abraham Weintraub, Carlos Decotelli, Milton Ribeiro. O primeiro prometeu mudar os livros didáticos para revisar a maneira como abordavam o golpe verde-oliva de 1964. O segundo destruiu as políticas alcançadas, divulgou fake news sobre plantações de maconha em sítios universitários e refugiou-se nos Estados Unidos depois de injuriar membros do Supremo Tribunal Federal (STF), com a pecha afrontosa de “vagabundos”. O terceiro sequer tomou posse, com as denúncias que implicaram seu currículo. O quarto, pastor prebisteriano, declarou que assumia um “cargo espiritual”, confundindo o papel de gestor no Estado laico.
Apesar da dança das cadeiras, as mudanças não suscitaram avanços. Minguaram os gastos em políticas públicas para a compra de equipamentos e insumos para laboratórios e obras. Os cortes de verbas minaram a autodefesa da comunidade acadêmica, no entanto, não extinguiram-na. Como a ADUFRGS, na esteira da Central Única dos trabalhadores (CUT), outras associações estão em estado de mobilização atentas à sucessão de arrojos para o desmonte da prestação de serviços públicos. As retaliações e os desmandos esbarram na generosa resistência dos educadores, que tentam sanar os prejuízos provocados.
Prejuízos ampliados pela pandemia nas faixas etárias menores. Especialistas consideram que o impacto da quarentena supera o ano perdido, já que os primeiros seis anos de vida são fundamentais para o desenvolvimento de habilidades sociocognitivas e emocionais das crianças. Aquelas que interrompem a aprendizagem nessa idade têm maior probabilidade de evasão e experimentam problemas para se inserirem no mercado de trabalho. Custará recuperar o aprendizado volatizado. Essa é a herança maldita da doença pandêmica no campo da Educação e da Saúde Infantil, com sequelas duradouras em especial entre os mais pobres, carentes de uma boa estrutura familiar e de acesso à internet. Ver o livro coordenado pela economista Laura Muller Machado (Legado de uma Pandemia, 2021).
A inação do MEC abrangeu o Fundeb, que só não perdeu o Orçamento pela ação do Congresso Nacional. Frise-se: enquanto o futuro da Educação esteve por um fio, a vontade política da Direita no Executivo não tugiu nem mugiu. Coube ao Projeto de Emenda Constitucional (PEC, 26/08/2020), da Câmara Federal, subir a complementação do fundo de 10% para 23% de forma gradual e permanente durante seis anos. Ao Senado tocou corrigir as distorções (15/12/2020) que destinavam aportes públicos para o pagamento da folha de terceirizados e para as escolas confessionais e comunitárias, rejeitando o uso do dinheiro na iniciativa privada e preservando os recursos para as escolas públicas.
Bolsonaro, o ignaro, foi derrotado na tentativa de esvaziar a Educação pública. O mandatário-mor, premido pelos prazos, obrigou-se sancionar sem vetos a regulamentação do Fundeb (26/12/2020). Vitória dos trabalhadores em Educação e das entidades parceiras que lutaram para que os fundos públicos não fossem pulverizados no caminho à sanção final. Os recursos começariam a chegar aos estados e municípios em janeiro de 2021, exceto pela trapalhada milionária do governo que errou na transferência de R$ 766 milhões do Fundeb. Três estados e respectivos municípios receberam dinheiro a mais do que o devido e, seis, a menos. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) constatou o erro, determinou as restituições, mas os municípios já haviam utilizado a pecúnia quando o Banco do Brasil procurou fazer o estorno. O prejuízo causado à União pela lambança bateu em R$ 1,3 milhão (UOL, 22/03/2021). Dê-lhe mazela. Dê-lhe incompetência.
A inação governamental descuidou também da Fundação de Apoio à Tecnologia (FAT), da Educação de Jovens e Adultos (EJA), do apoio às faculdades particulares e da abertura de novos cursos, ameaçando demissões em massa nas instituições privadas. Escaparam do extermínio, por óbvio, as escolas cívico-militares, com previsão de mais meia centena para o corrente. Onde debruça-se o olhar, o cenário é de uma brutal destruição orquestrada.
– Decifra-me ou te devoro
Alguns analistas buscam explicações na psicopatologia para entender as motivações de comportamento do mentor desse parque de horrores da Direita. Os diagnósticos sobre a psique do homem “que não é coveiro” revelam a personalidade de uma criatura asquerosa. Um psicopata, um condutopata para empregar um linguajar sem abstrações, sustentado no poder por um arranjo que vai do rentismo à legião de militares, passando pela toga e o empresariado predatório. “O fetichismo político exigia manipansos de farda. Escolheram-no para novo ídolo”, nas palavras de Euclides da Cunha (Os Sertões, 1902). O pseudo-ídolo, em alusão, é o execrável pária da Educação brasileira. Da pátria, o malfadado traidor.
- Luiz Marques é professor universitário, UFRGS e ex-Secretário de Cultura do Governo do RS