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Reconstruir as bases da interpretação marxista-revolucionária a partir de Lênin | João Pedro Thimotheo

Há cem anos, a classe trabalhadora mundial perdia uma de suas principais lideranças. Refletir acerca do legado de Lenin significa revisitar discussões acaloradas que dividiram distintas tradições da esquerda socialista ao longo do século XX. Permite-nos, sobretudo, compreender melhor o que a janela histórica aberta pela revolução russa — o mais importante acontecimento da história da humanidade até os dias de hoje — significou para o movimento dos trabalhadores em geral e para os marxistas revolucionários em particular.

Lenin foi uma figura detratada por muitos de seus oponentes políticos: para o pensamento burguês-liberal, é um sádico totalitário que deu concretude histórica ao terror coletivista; para o burguês-fascista, é um oportunista que explorou a luta de classes para destruir a homogeneidade do corpo social. Nenhuma dessas mentiras é mais perigosa, no entanto, do que a ficção estalinista, que, crendo ser coerente com o seu pensamento, utiliza seu legado para justificar a derrocada burocrática da mais importante experiência histórica da classe trabalhadora mundial. É preciso retomar a originalidade de Lenin em detrimento destas falsificações históricas, recuperando aquilo que ele tem de mais original: a necessidade histórica de (re)abrir o ciclo das revoluções sociais. Em tempos de “fim da história” e de hegemonia do pensamento neoliberal, nada poderia ser mais importante.

“O estágio superior do capitalismo” – Lenin e a crítica ao imperialismo

A primeira grande contribuição de Lenin à compreensão do mundo capitalista que eu gostaria de destacar é a sua crítica ao imperialismo. Cabe destacar que, no pensamento de Lenin, o imperialismo é um estágio histórico particular do capitalismo, o seu “estágio superior”, cuja particularidade consiste em três características principais: a de ser um capitalismo monopolista; parasitária (ou em decomposição) e moribundo. Isto quer dizer que a livre concorrência — traço fundamental do laissez faire — foi substituída pelos monopólios, que, segundo Lenin, são a essência do imperialismo.
Outra importante diferença da caracterização de Lenin acerca do imperialismo, quando comparada com a de outros autores, é a ênfase que o capital financeiro ocupa em sua teoria. Enquanto para teóricos sociais-democratas como Karl Kautsky o imperialismo nada mais seria do que uma “política” aplicada por países industrializados para anexar países agrários, Lenin compreende que o estágio imperialista do capitalismo é justamente aquele em que o capital industrial e o bancário fundem-se, dando prevalência ao capital financeiro, que

expande-se em direção não apenas aos países agrários, mas avança sobre todos os poros do globo, incorporando toda a humanidade à lógica capitalista de valorização do valor e de mercantilização da vida. Lenin não reduzia o imperialismo a um único aspecto, fosse ele econômico, militar ou político, pois sabia que apenas remetendo-se ao conjunto da vida social, posto que estava falando de uma nova dimensão da própria dinâmica expansionista do capitalismo, era possível explicar o novo fenômeno.
Não por acaso, foi um dos primeiros a perceber que nos países centrais do capitalismo, como consequência das transformações que seguiram a ascensão do capital monopolista, as burguesias foram agraciadas com superlucros, dos quais podiam entregar uma pequena fração aos trabalhadores. Lembremos que o imperialismo traz consigo a emergência da era das catástrofes e das guerras totais e que, portanto, setores burgueses estavam interessados em fomentar o nacionalismo no interior da classe trabalhadora, fomentando o patriotismo. Lenin foi um dos primeiros a denunciar esta modalidade de “social-chauvinismo”, conclamando a social-democracia europeia a romper com a aliança imperialista e a integrar a luta internacional contra este estágio do capitalismo.

Destruir a ditadura burguesa: Lenin e a crítica do Estado

Lenin também nos legou uma intensa contribuição no campo da teoria marxista da política. Recuperando os escritos de Engels, para quem o Estado burguês é uma força especial de repressão erguida contra o proletariado. O Estado, portanto, é um organismo de dominação de uma classe dominante sobre as demais classes dominadas. Lenin é assertivo ao afirmar que embora o Estado burguês apareça sob várias “formas” — poderíamos dizer, portanto, que embora a dominação burguesa possa ser realizada a partir de diversos regimes políticos —, a sua natureza fundamental é invariável: todos os regimes políticos são formas de consolidar a ditadura da burguesia.
Nisto consiste sua insígnia da ditadura do proletariado como alternativa da classe trabalhadora antes da destruição completa do Estado: não se trata da ditadura como regime político, mas da percepção de que, uma vez tendo conquistado o poder político, a classe trabalhadora usará os aparatos de Estado para auxiliá-la em sua luta contra a burguesia — luta esta que, como tem por finalidade o fim do capitalismo, levaria também ao fim das classes sociais, e portanto do próprio Estado

Construir o partido revolucionário! Lenin e a teoria da organização política.

Talvez o aspecto da obra de Lenin mais lembrado até hoje seja, precisamente, a sua reflexão acerca da necessidade de construir um partido revolucionário, capaz de estabelecer estratégias plausíveis para a atuação na luta de classes, que seja capaz, portanto, de, nas lutas do dia a dia, estabelecer os pontos de conexão entre os conflitos cotidianos gerados pelas contradições do capitalismo e a meta estratégica de superar este modo de produção.
As reflexões de Lenin tem o seguinte ponto de partida: não é que sem partido revolucionário não haja luta social e/ou política. Ao contrário, há fartas demonstrações históricas que comprovam que a classe trabalhadora tende a, de uma forma ou de outra, levantar-se contra a exploração cotidiana. No entanto, é justamente a resposta da burguesia a estas manifestações populares — a presença sempre vigilante das forças contrarrevolucionárias, que dispõe de todo um aparato militar, sendo capaz de reprimir violentamente as lutas espontâneas — que leva à necessidade de construção de um instrumento político organizado, que seja capaz de formular planos de luta, de planejar estratégias não espontâneas, não improvisadas, capazes de fazer frente ao arsenal de armas à disposição da classe dominante.
Mais do que isso, a reflexão de Lenin acerca da organização política está umbilicalmente vinculado à sua concepção de consciência: é verdade, como vimos, que uma consciência corporativa esteja sempre presente na história das classes trabalhadoras. Basta pensarmos nas diversas revoltas populares que surgem espontaneamente, seja em busca de melhores remunerações laborais, seja levantando-se contra um súbito aumento do custo de vida, etc… No entanto, esta consciência espontânea tem a tendência a não evoluir em direção a uma consciência política revolucionária: uma coisa é querer melhores salários para si, outra coisa é compreender como o capitalismo transforma a força de trabalho em mercadoria, reduzindo todo trabalho humano concreto a trabalho humano abstrato, e, portanto, voltado apenas à valorização de capital — e, consequentemente, pleiteando não apenas uma mudança conjuntural, mas uma transformação revolucionária: a abolição do sistema de assalariamento.
Em Lenin, a consciência revolucionária não ergue-se espontaneamente das experiências de luta, mas são elaboradas pela vanguarda da classe, justamente aquela fração da classe que está permanentemente exercendo a sua prática política: daí a necessidade do partido, um espaço que, mesmo nos momentos de recuo da luta de classes, pode manter a sua atividade política. O partido é capaz, sobretudo, de unir diversas lutas, de manter acesa a memória coletiva das lutas da classe, é capaz portanto, de acumular consciência(s). A partir desta consciência — que não nega a experiência, mas eleva-se ao campo da teoria — o partido passa a ter capacidade de intervir no campo político: tendo construído uma

consciência política que não é puramente espontânea, pode voltar ao terreno da prática política sem “sofrer passivamente” as consequências das turbulências gerada pela luta de classes, pode, portanto, planejar estratégias, pode estar preparado para o momento — que nunca é previamente marcado em calendário — em que as contradições irão levar a uma explosão social. O partido, em Lenin, deve estar sempre preparado para o momento de crise revolucionária, deve saber o que fazer quando chegar o momento, transformando a crise em vitória da classe.

Um legado revolucionário: Lenin e nós.

Tendo realizado este breve preâmbulo, não poderíamos deixar de comentar, mesmo que rapidamente, a principal contribuição de Lenin: sua participação fundamental na vitória da primeira revolução socialista da história da humanidade. É interessante percebermos, no entanto, que a trajetória de Lenin no interior da experiência história da revolução russa é indissociável da sua trajetória como teórico marxista: basta lembrarmos do papel fundamental que teve na construção de uma política contra a guerra imperialista — como chamava a Primeira Guerra Mundial —; contra a acomodação do partido social-democrata russo e em defesa da transformação do Estado revolucionário em uma república dos sovietes. Em cada um desses pontos, Lenin transformou em ação política coerente aquilo que, anteriormente, havia teorizado. Não por acaso, boa parte de sua formulação está vinculada com as disputas que viveu no interior do movimento dos trabalhadores, e está organizada não em formato acadêmico ou universitário, mas em formato de discussão pública, de polêmica interna no interior do partidoLenin não foi um diletante, não buscou imprimir ao movimento dos trabalhadores um rumo que lhe fosse alienígena, criado na cabeça de um catedrático. Ao contrário, foi, até o final da vida, um ativo dirigente comunista, imprimindo todas as suas forças na construção do socialismo sovietíco. Cem anos após a sua morte, decerto o mundo que vivemos não é exatamente o mesmo daquele em que Lenin viveu: a experiência socialista que seguiu a revolução russa colapsou após décadas de prevalência de uma casta burocrática que nada tinha a ver com uma república organizada em torno dos conselhos dos trabalhadores; o ciclo das revoluções sociais foi profundamente derrotada, com a imposição da hegemonia conservadora do pensamento neoliberal, que postula a impossibilidade de subverter o mundo do capital; a tradição do marxismo revolucionário não é mais aquela que mais inspira os lutadores sociais.

No entanto, quando percebemos a emergência de guerras e mais guerras imperialistas
— vejamos o leste europeu ou a faixa de Gaza — e a incapacidade dos mais diferentes partidos de esquerda, diante desse momento de crise, de formular uma alternativa revolucionária capaz de alterar os rumos da luta de classes em favor dos trabalhadores, percebemos que, mais do que nunca, é hora de aprendermos com Lenin.

João Pedro Thimotheo é Historiador, Diretor de Movimentos Sociais pela JPT/RJ e Militante do Movimento Kizomba.

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