Queremos um campo com gente ou um campo sem gente? Queremos monocultura ou produção diversificada? Queremos alimentos saudáveis ou estamos dispostos a arriscar a saúde de todos? A conservação de nossa biodiversidade ou sua destruição? Terra para poucos ou terra para muitos? O artigo é de Guilherme Cassel, ministro do Desenvolvimento Agrário, e foi publicado pela Agência Carta Maior.
GUILHERME CASSEL
No dia cinco de dezembro, a Folha de S.Paulo publicou dois textos que deveriam se posicionar contra e a favor da Reforma Agrária. Se a boa intenção era jogar luz sobre um tema difícil e controverso, o resultado não poderia ter sido pior. Os dois autores desenvolveram seus textos a partir de um mesmo erro metodológico: abordaram a reforma agrária a partir de seu posicionamento sobre o MST. Confundiram reforma agrária com MST. Um, com devoção quase religiosa ao movimento e o outro, movido por um rancor incontido. Como sempre, “as aparências enganam aos que odeiam e aos que amam”. Esta postura só serve para interditar a possibilidade de um debate consequente e livre de sectarismos. Um debate que deveria nos auxiliar a compreender os desafios contemporâneos de um desenvolvimento rural sustentável, e sobre qual reforma agrária é boa para a nação e como viabilizá-la.
Por maior que seja a importância que se queira dar ao MST, a reforma agrária nem de longe se reduz a ele. Seja porque não é o único ator do tema fundiário (Contag, Fetraf, CNS e dezenas de movimentos também o são), seja porque seus erros ou acertos não dispensam a necessidade de um debate sobre a questão agrária brasileira do ponto de vista dos interesses da nação. É necessário ir além do rancor ou da devoção dos autores ao MST. A reforma agrária passa pelo julgamento da estrutura agrária e seus efeitos e não pelo julgamento do MST.
É preciso compreendermos e superarmos duas matrizes de pensamento que organizam os sentimentos e entendimentos de alguns setores, e ver como estas matrizes, por ultrapassadas e insuficientes, travam o desenvolvimento do debate sobre a Reforma Agrária no Brasil.
A primeira delas acreditou – e acredita! – que poderíamos nos desenvolver com um campo sem gente. A ilusão da chamada revolução verde e a intensidade da modernização conservadora levaram muita gente a considerar que o desenvolvimento científico e tecnológico seria capaz de garantir a produção suficiente para alimentar o planeta, a partir de uma combinação de latifúndios altamente mecanizados e utilização intensiva de insumos químicos. Daí, a conclusão evidente: o problema da produção estaria resolvido, a nação não precisaria de reforma agrária, a terra poderia estar concentrada nas mãos de poucos e lugar de gente seria na cidade. Este modelo, aplicado no Brasil a partir de década de sessenta, por mais de trinta anos, mostrou resultados desastrosos: milhões de famílias foram obrigadas a deixar o campo por falta de política agrícola, a violência urbana alcançou níveis impressionantes, tivemos alta na inflação de preços dos alimentos e provocamos danos quase irreversíveis ao meio-ambiente.
A segunda matriz de pensamento está associada às reflexões de setores da esquerda dos anos 50 e 60. Aí, a reforma agrária impunha-se como necessidade histórica, como pré-condição para o crescimento econômico capitalista. Este enfoque, muito economicista, descartou alternativas que poderiam levar à superação do subdesenvolvimento. Os movimentos sociais que a defendiam passaram a se ver como portadores de uma imposição econômica histórica incontornável e não de uma bandeira política objeto de disputas na sociedade.
A própria história recente do país demonstrou o engano desta visão. Hoje, sabemos que é possível, sim, crescermos sem Reforma Agrária e que esta não é nem será fruto de uma inevitabilidade histórica, mas, ao acontecer, acontece como fruto de uma escolha da sociedade, como parte das definições sobre que tipo de desenvolvimento nós queremos para nosso país.
Este é o ponto de partida: definir com clareza qual o meio rural que queremos para um Brasil que deixou para trás as sucessivas crises econômicas, que voltou a crescer, gerar empregos e, o que é mais importante, a diminuir as nossas históricas desigualdades. Queremos um campo com gente ou um campo sem gente? Queremos monocultura ou produção diversificada? Queremos alimentos saudáveis ou estamos dispostos a arriscar a saúde de todos? A conservação de nossa biodiversidade ou sua destruição? Terra para poucos ou terra para muitos?
A experiência brasileira recente está orientada por uma visão contemporânea de reforma agrária, que reconhece a importância do acesso à terra, mas não se restringe a ela. As políticas diferenciadas para a agricultura familiar abarcam o crédito para custeio e investimento, o seguro de preços e de renda, preços mínimos, canais de comercialização – como o programa de aquisição de alimentos e as compras da alimentação escolar -, ações de fortalecimento do associativismo e do cooperativismo, de promoção da autonomia econômica das mulheres rurais e garantia de acesso à assistência técnica. São políticas que produzem um claro fortalecimento econômico e social das populações rurais, criando melhores condições para ampliar os horizontes de seu protagonismo. Uma visão consagrada, por exemplo, na Conferência Internacional da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), realizada em Porto Alegre em 2006.
Esta reforma agrária contemporânea reconhece acima de tudo, a diversidade do rural brasileiro que não é composto apenas por “com” e “sem” terra; somos mais ricos e diversos. Existem homens e mulheres “sem título” no norte e nordeste, ribeirinhos, quilombolas, indígenas, varzeteiros, extrativistas, pescadores, todos com uma história singular, demandando, com legitimidade, políticas públicas específicas que lhes garanta o direito à terra para viver e produzir com dignidade.
A diversidade de públicos exige uma diversidade de políticas fundiárias. Em sete anos mais de 170 mil famílias receberam título de propriedade por intermédio da regularização fundiária; 74 mil famílias tiveram acesso a terra via o programa de crédito fundiário; 4.300 famílias de quilombolas foram reconhecidas e tituladas. Na Amazônia, o Programa Terra Legal iniciou recentemente suas ações voltadas para recuperar terras griladas e para que 300 mil posseiros tenham direito à terra. Durante os últimos sete anos foram assentadas 550 mil famílias em mais de 44 milhões hectares em todo o país.
São números impressionantes. A publicação dos dados do Censo Agropecuário 2006 mostrou que a agricultura familiar responde com eficiência e rapidez às políticas públicas. Mostra, de forma clara, como ter uma agricultura familiar forte e produtiva é uma vantagem comparativa para o Brasil. É na agricultura familiar que encontramos diversificação produtiva, mais trabalho, mais produção e mais renda por hectare. Reverteu-se a tendência do esvaziamento do campo. Entre 1985 a 1995/1996 desapareceram 941 mil estabelecimentos agropecuários; de 1996 a 2006 houve um crescimento inédito: 315 mil novas unidades. E o melhor da história: enquanto entre 1985 a 1995/1996 o esvaziamento foi principalmente entre os pequenos estabelecimentos (perderam 9 milhões de hectares), em 2006 são os pequenos com até 100 ha que voltam a crescer em número (quase 130 mil novos estabelecimentos agropecuários) e em área ( mais 115 mil hectares), enquanto os grandes com mais de 1.000 ha são os que estão reduzindo em número e área (menos 12,9 milhões de hectares!). Ou seja, não só os grandes estão ficando menores, como estão perdendo terreno para a agricultura familiar.
Esta visão ampliada sobre a reforma agrária está sintonizada com uma visão de desenvolvimento rural que integra cidadania, segurança alimentar e sustentabilidade ambiental. Expressa uma percepção ampliada sobre o rural ao reconhecer que, na grande parte dos municípios brasileiros, a dinâmica econômica e social está vinculada a agricultura e que seu desenvolvimento envolve a articulação territorial de atividades agrícolas e não-agrícolas, processamento agroindustrial e serviços.
As questões não estão todas resolvidas. O reconhecimento destes avanços não exclui a necessidade de superarmos problemas, especialmente aqueles relativos a concentração excessiva de terras, a conservação da biodiversidade, a insistente existência de trabalho escravo, a ameaça da estrangeirização do nosso território, a dependência tecnológica imposta por algumas empresas transnacionais e a necessidade de definirmos estratégias permanentes de segurança e soberania alimentar.
A democratização da estrutura fundiária demanda uma ampla legitimidade social para exigir o cumprimento da função social da propriedade da terra, subordinando o direito de propriedade às exigências constitucionais nos quesitos trabalhista, econômico, social e ambiental. Legitimidade que precisa se traduzir em força social, inclusive, para aprovar a proposta de limite do tamanho da propriedade.
A construção de uma maioria social pró-reforma agrária passa pelo esforço político e pedagógico de convencimento de muitos sobre as vantagens para o país de uma estrutura fundiária desconcentrada e de uma agricultura familiar mais forte e ocupando de forma associativa parcelas importantes das cadeias produtivas. Um esforço para vincular a reforma agrária com o aprofundamento da democracia brasileira. E para isso dois erros podem ser evitados. O primeiro seria considerar que isso adviria simplesmente das proclamações de um movimento social e da cobrança de apoio às suas ações. O segundo erro seria renegar as desigualdades vigentes e desqualificar aqueles que seguem lutando por um Brasil mais justo.
Nesta virada da agenda política nacional a reforma agrária pode e deve estar no âmbito do debate do desenvolvimento como uma das expressões de um novo Brasil. O lugar da reforma agrária é o da boa disputa democrática de um projeto de futuro para o país
GUILHERME CASSEL é ministro do Desenvolvimento Agrário.