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Reforma do ensino médio e fascismo | Luís Fernando Vitagliano

O MEC está insensível a qualquer mudança na Reforma do Ensino Médio do governo Temer de viés neoliberal

Foram necessários quarenta e seis dias de governo para que o atual Ministro da Educação de Lula, o ex-governador do Ceará, Camilo Santana, abrisse sua agenda para conversar com a diretoria do CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores de Educação), principal entidade que representa educadores do ensino básico brasileiro. Apenas em 15 de fevereiro o ministro abril conversou com os trabalhadores da educação e ouviu suas demandas.

Foto: Cottonbro

Entre elas, críticas à reforma do ensino médio iniciada no governo de Michel Temer. Mesmo com esse gesto, depois de algumas cotoveladas para atender aos sindicatos, o MEC parece pouco sensível a qualquer mudança de rumos em relação a Reforma do Ensino Médio implementada pelo governo Temer e que foi validada pelos petistas na equipe de transição ainda antes do início do governo.

Sinais claros na equipe de transição de 2022 já demonstravam que a educação do governo de frente ampla de Lula entraria na cota dos neoliberais. A política para o ensino básico foi parar em Sobral, terra da produtividade do IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) e do modelo para a educação brasileira neoliberal pautada em medida de indicadores de produtividade. As consultorias e as ONGs ligadas aos magnatas das finanças tomaram de assalto a equipe de transição e colocaram os seus. A partir daí, o acesso dos trabalhadores e dos formuladores de educação mais qualificados do país ao MEC do governo Lula é diferente da prioridade dada ao neoliberalismo. Melhor dizendo: o tempo dos trabalhadores é pautado pelos neoliberais já desde o ensino básico.

Em um primeiro momento, dadas as escolhas de Lula III (2023-2026) parece conceder ao neoliberalismo a cota de participação no seu governo a educação como serviço social. O resultado é que a educação no Brasil – tradicional espaço de construção de cidadania com nomes de peso como Mário Pedrosa, Anísio Teixeira, Paulo Freire e Darcy Ribeiro e tantos que hoje tem plenas condições de formulação privilegiada – tem cedido aos consultores do Banco Mundial a prioridade de formulação da política educacional.

Foi o Banco Mundial o autor intelectual e a instituição que financiou a reforma do ensino médio brasileiro de 2017.  Nela, dois pontos se destacam: primeiro, saiu de 4 para 5 horas diárias o mínimo de permanência do estudante nas escolas – com indicação para o ensino de tempo integral; e a segunda e, principal mudança, a apresentação de “itinerários formativos” com “metodologias ativas” para “temas transversais”, três neologismos para idiotas gostarem, todos com o mesmo conteúdo de “flexibilização”; termo caro apregoado pelo neoliberalismo na sua faceta econômica.

Não vamos entrar no mérito do tempo de aula, do aumento das horas. Tempo na escola não significa necessariamente melhora na educação. Mas, no Brasil, de outro lado, as mazelas são tão gritantes que, ao alterar o tempo na escola, temos como consequências positivas resultados que não tem relação direta com a educação: são medidas sociais que melhoram a alimentação dos jovens, permitem retirar estudantes da violência das ruas e ter atividades monitoradas que pode incluir serviços sociais que acompanham a saúde e a cultura.

Já o segundo destaque da reforma é um ponto nevrálgico que está diretamente relacionado ao impacto da política neoliberal no Ensino Médio. Porque, mesmo com mais tempo nas escolas, a reforma tira tempo das principais disciplinas de formação cidadã. Ou seja, é uma reforma para ficar mais tempo na escola com menos compromisso com a educação.

Educação neoliberal

Mas para entender o argumento desta análise, cabe a pergunta: o que quer dizer uma educação neoliberal? Significa que a formação ganha um viés utilitarista voltada para a formação técnica e instrumental. Ou seja, a preocupação é quase que exclusivamente com o aprendizado que tem função na produtividade. Ler, escrever, fazer contas básicas. Responder automaticamente com um aprendizado que é funcional. Concentrar a educação nesses aspectos quer dizer que a produtividade para o trabalho é entendida como educação e não há lugar significativo para a reflexão e a crítica.

Na educação neoliberal, os índices de avaliação de desempenho norteiam as decisões e determinam a alocação de recursos. Essa política é acompanhada com uma série de avaliações quantitativas de desempenho. Os índices do SAEB (Sistema de Avaliação de Educação Básica) privilegiam o qualitativo, torna-se apenas norteador de distribuição de recursos no sentido econômico do termo.

Quem entrega um índice em português e matemática melhor é premiado com bonificações e recursos; quem não entrega bons indicadores, deixa de ganhar – parece um critério isento e justo, mas na pratica amplia as desigualdades e força as escolas a se concentrarem em um ensino conteudístico, que valorizam as provas de desempenho quantitativas, desvinculados dos problemas e questões locais e foca nas disciplinas de português e matemática. Na reforma neoliberal do Banco Mundial para a educação brasileira privilegia-se o conhecimento instrumental acrítico e se diz claramente que seu foco é matemática e português.

Educação emancipatória

Mas, o que seria então uma educação alternativa a isso? Voltada para a cidadania, progressista e crítica? Em primeiro lugar, a valorização de conhecimentos analíticos e críticos que orientam o conteúdo instrumental. Áreas do conhecimento como história, geografia, biologia, química e física podem valorizar os saberes locais e vinculados a explicações da realidade dos estudantes para estimular a autonomia e a formação do sujeito circunscrito em uma realidade concreta. Uma coisa seria exigir que um aluno responda à pergunta: “quem descobriu o Brasil?”; de forma acrítica: Pedro Alvares Cabral. Outra coisa é apresentar ao estudante as nações indígenas e a diversidade que existia no território antes da chegada dos colonizadores e os efeitos que a chegada europeia provocou; aí então questioná-los e os provocar a refletir se isso foi uma invasão ou uma descoberta?

O ensino bancário torna o estudante um repositório de respostas prontas, o ensino emancipatório os torna cidadãos que questionam sua situação geral e os contextualiza como sujeitos históricos.

Ler, escrever e calcular e não sinônimo de boa educação. Embora seja condição mínima de formação educacional, não é condição plena de formação de cidadania. Calcular o indicador de 10% de juros compostos sobre R$ 1.000,00 em 24 meses é um conhecimento técnico necessário fundamental para o ensino médio. Considerar que uma instituição financeira cobra 9.99% ao mês de juros por um empréstimo bancário é um absurdo sem nenhuma justificativa ética e social plausível e a legalização da expropriação da usura que deveria caber na analise de qualquer estudante de ensino médio – que pode suscitar a capacidade de indignação cabível de denuncia a (ou da) autoridade monetária nacional.

Mas, nenhum educador que defende a reforma Temer do Ensino Médio vai reconhecer a proposta formulada pelo Banco Mundial para o ensino médio brasileiro vai à contramão do ensino emancipatório. Basta ler as lindas entrevistas de Maria Helena Guimarães de Castro – ex-secretária executiva do MEC de Paulo Renato de Souza nos tempos de FHC e que voltou ao MEC com Michel Temer e propôs esta reforma.

Os defensores do neoliberalismo justificam que o conteúdo analítico e critico pode ser discutido nos “itinerários formativos”. O que eles não nos dizem é que os chamados “itinerários formativos” são uma estratégia para usar métodos de educação pouco efetivas que empacotam as questões críticas na formação “técnica” (para o capital), tendo como resultado a diluição das disciplinas de história, de geografia, de sociologia, de filosofia, como da física, da química e da biologia para concentrar o tempo de sala de aula em matemática e português clássicos e trabalhar questões técnicas gerais voltadas a necessidade do mercado.

Com isso se permite maior flexibilidade e manipulação dos conteúdos nas áreas que interessam menos aprofundamento crítico e mais assuntos deslocados. Na pratica, temos uma redução de conteúdo que permitem a formação reflexiva, analítica e critica, com o nome falso de metodologias ativas.

A educação com os “itinerários formativos” através das metodologias ativas precariza o sistema e subverte a capacidade analítica dos estudantes. Esta afinação se choca com discurso educadores do mainstream político, mas explica a realidade que se tornará a reforma no caso concreto. Para sustentar meu argumento, proponho testar se o que estou dizendo com um experimento: porque não fazer uma tentativa prática de formação e invertemos o padrão? Vamos colocar português e matemática em formato de metodologias ativas, através de itinerários formativos; e fazemos com que as disciplinas como história e geografia um desenho com material didático-pedagógico bem estruturado com tempo suficiente de aulas, professores estimulados e vemos o resultado desse esforço com provas que testem o valor significativo da formação do sujeito?

Como as escolas estão desenhadas hoje para a reforma do ensino médio, os itinerários formativos, na pratica, tornam o Ensino Médio Brasileiro um grande ensino técnico. Porque permite (ou é de fato isso que se quer) que os currículos sejam desenhados para caber o ensino técnico e abre espaço para que se foque no ensino médio profissionalizante. Por isso os neoliberais logo correram para ocupar o espaço da equipe de transição em educação do governo Lula.

As diversas ONGs e Fundações benevolentes da burguesia agora vão financiar startups da educação. Todas supostamente preocupadas na ascensão social do trabalhador. Vão criar e financiar escolas técnicas voltadas a novos itinerários formativos para formatar o trabalhador de acordo com seus interesses e de modo absolutamente acrítico. Operários perfeitos: capazes de executar funções de trabalho, dóceis, gratos por tira-los da miséria e sem capacidade cognitiva para reflexões críticas que o colocam como sujeitos da sua história.

Porém, é preciso debater o “Novo Ensino Médio” sem hipocrisia. Porque a proposta parece vender um grande avanço social quando se quer apenas um avanço de classe. Independentemente da concordância ou discordância que temos a respeito do papel que a escola deve exercer é importante deixar claro o viés da reforma. A reforma vai ao sentido da educação bancaria, onde o aluno é repositório de conteúdos e funções específicas predeterminadas na sociedade; o estudante é formado para ser um operário, seja um operário industrial do chão de fábrica, seja um trabalhador contemporâneo da produção de dados a partir dos computadores.

Muita gente acha que isso é mais importante que formar cidadanias e que tira muita gente da miséria dando a pessoas sem perspectiva um trabalho e/ou uma função social. É uma visão de mundo que tem elementos concretos na realidade brasileira para advogar nesse sentido; dada a miséria da condição educacional brasileira. Esta visão também se fundamenta no suposto de que as desigualdades existem e que não é papel primordial da educação tentar alterá-las, mas oferecer uma formação que permite a pessoa trabalhar. Que esteja límpido como água: são os fundamentos educacionais do neoliberalismo e, se diz algo a mais, é adereço retórico.

Portanto, não é possível dizer que a reforma no ensino médio, tal qual está sendo implementada, prepara o trabalhador e trabalhe os estudantes como sujeitos do conhecimento dando a eles instrumentos para a critica – porque é dizer algo que ela não é capaz de entregar. Os itinerários formativos são apenas um subterfúgio para embelezar o foco da reforma e permitem que a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) retire o compromisso com a melhora didática do material de ensino, tiram concentração dos conteúdos críticos, além de retirar dos parâmetros curriculares questões fundamentais para focar no ensino instrumental jogando a responsabilidade nas instituições de ensino, que cada vez mais são municipais ou filantrópicas.

É possível entender que o neoliberalismo está interessado nos resultados da acumulação do capital. É uma reinvindicação burguesa da sociedade atual. Sem novidade, é um movimento do capital como tantos outros. Sem ler, fazer conta, digitar e usar um periférico computacional, a produtividade do trabalhador é baixa – isso quer dize que reformar a educação para melhores resultados é importante para o capital numa sociedade de serviços baseada na acumulação de dados e na produção digital.

Diante dos fatos apresentados, não é loucura dizer que a porção dos neoliberais que defendem o ensino instrumental é uma parcela progressista para os padrões burgueses brasileiros e tem negociado com esse governo. Obviamente que não compactuam com a educação emancipatória por interesse de classe ou miopia social. Mesmo assim, é preciso dizer a eles que, dada a atual configuração das forças políticas, estão chocando o ovo da serpente e entregado os trabalhadores ao fascismo.

Propor uma escola acrítica e vinculada ao ensino técnico e profissionalizante, sem que conteúdos críticos, históricos e sociais recebam especial atenção vai se tornar um convite ao canto fascista que circula nas redes sociais. Um estudante mal formado em história não tem a real dimensão do que é um genocídio ou do que foram os campos de concentração é um alvo fácil para aqueles que dizem que o holocausto não existiu, pois nem saberão o que foi o holocausto. Um estudante mal formado em biologia não tem noção da importância de uma vacina. Ou seja, um cidadão que não recebe uma formação social e critica está sujeito a todo tipo de enganação que o senso comum difunde nas redes sociais com o objetivo cooptar pessoas sem senso critico. Se você forma um trabalhador sem senso critico para o mundo do trabalho, vai formar também um cidadão sem senso critico para o fascismo. Sem uma boa escola, não podemos esperar uma sociedade democrática, por mais que os neoliberais queiram resolver seus problemas de classe.

Portanto, não importa se você acha que a educação deva formar meros trabalhadores ou cidadãos plenos. Também não adianta ficar fazendo campanha pelo bom senso em rede social. Tudo isso é inócuo diante dos riscos do momento. No atual contexto político, não é possível supor que a educação seja bancaria, é urgente que recorramos a uma escola engajada para enfrentar os desafios antidemocráticos.

Isso significa que, enquanto frente ampla, mesmo os neoliberais deste governo devem reconhecer que a educação deve caminhar no sentido oposto da reforma atual e permitir que se criem parâmetros para a formação do sujeito, com uma educação crítica que busca a emancipação do estudante para dar a ele elementos de analise da realidade com autonomia para que possam olhar para as redes sociais e não se seduzirem com as fakenews e suas armadilhas. Com as ameaças vigentes, uma formação acrítica torna o futuro trabalhador alvo fácil do fascismo porque, na vida prática, a exploração do seu trabalho vai ocorrer, assim como as injustiças e as seduções fáceis da compreensão de mundo que o extremismo mostra nas redes sociais. Se o estudante não aprendeu na escola nenhum mecanismo social para lidar com isso, inevitavelmente é alvo fácil para aderir ao primeiro discurso nas redes e se render ao fascismo.

Luís Fernando Vitagliano é cientista político e professor universitário.

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