Este é um caso exemplar de quando os governos estão a serviço do capital e não das pessoas e de suas obrigações constitucionais.
Na rua Álvaro Alvim, no bairro Rio Branco, durante décadas existiu um hospital que a população de Porto Alegre conheceu. Primeiro, um hospital privado, que atuava na área da traumatologia. Depois, assumido pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) ampliou serviços e cumpria também parte da formação acadêmica.
Com a crise administrativa da Ulbra, o patrimônio do Hospital, assim como outros imóveis, passaram para a União em pagamento de dívidas fiscais e previdenciárias.
Em 2010, o prédio foi assumido pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre que ali instalou serviços especializados para pacientes dependentes químicos. Durante uma década, o hospital funcionou como um anexo do HCPA e, inclusive, recebendo investimentos pesados de reforma, melhorias e adequação do Hospital. Recursos públicos foram utilizados para garantir um atendimento qualificado e seguro à população.
Milhões foram gastos para reformar telhado e coberturas, equipamentos, mobiliário. O Hospital cobria uma área construída de 10 mil metros quadrados. Um equipamento de saúde importante para a capital e para o Sistema Único de Saúde (SUS).
Com a grande obra realizada no HCPA nos governos Lula e Dilma Roussef, ampliando significativamente os serviços hospitalares no Campus Médico da av. Ramiro Barcelos, para lá retornaram os serviços da unidade da Álvaro Alvim.
Devolvido ao Patrimônio da União em 2020, em plena pandemia da Covid-19, começou o jogo de empurra entre os entes federados sobre a destinação do prédio hospitalar e o início de seu irresponsável sucateamento.
Mesmo com a carência de equipamentos hospitalares, o governo Bolsonaro gastou milhões nos malfadados “hospitais de campanha”, muitos dos quais não chegaram a operar apesar de gastos vultuosos para suas construções emergenciais.
Enquanto o governo Eduardo Leite (PSDB) fazia de conta que o problema não era com ele, o prefeito Melo chamou a imprensa, tirou fotos na frente do hospital e dizia que ia municipalizá-lo. Um mês depois, desistiu da ideia alegando problemas técnicos incontornáveis no prédio que um ano antes funcionava, plenamente, como um hospital.
Não adiantaram os apelos e encaminhamentos dos Conselhos de Saúde, estadual e municipal, no sentido de equipar a capital e região metropolitana com um serviço especializado para o atendimento da pandemia no momento da crise e mesmo para o atendimento posterior dos atingidos pelo vírus.
Abandonada, a estrutura do hospital viveu o calvário da irresponsabilidade do Patrimônio da União, seção RS, que mantinha um ou dois vigilantes temporários no portão da rua Álvaro Alvim nº 400, quando o prédio é lindeiro também à rua Comendador Vieira Pires e protegido por cerca vulnerável. As invasões e roubos de fios, esquadrias, portas, alumínio sucederam-se por meses. Diariamente, vizinhos chamavam a Brigada Militar, a Guarda Municipal e cobravam dos vigilantes na entrada principal providências na defesa do patrimônio público.
Os vigilantes argumentavam que estavam orientados a não enfrentar os invasores, que era perigoso e que o prédio seria vendido em leilão. A BM realizou inúmeras batidas, algumas com prisões de catadores, desempregados, que no roubo de fios, alumínio e esquadrias buscavam algum sustento.
Nova rodada de reuniões e audiências públicas na Câmara Municipal, no Ministério Público Federal sobre o abandono de um equipamento público de saúde, agravado por uma pandemia mundial onde o Brasil foi um dos mais atingidos.
As denúncias junto à imprensa levaram o governo municipal a enviar uma equipe para reforçar a cerca, num momento em que até as persianas de PVC já haviam sido levadas.
Tanto na Câmara como no Ministério Público, além de vizinhos e parlamentares estaduais e federais, estiveram presentes conselheiros (as) da Saúde, do Estado e do Município registrando a posição e o apelo para que o prédio tivesse a função de atender aqueles com sequelas pela Covid-19 ou fosse utilizado para atendimento ambulatorial para as enormes filas represadas de atendimento especializado que Estado e Município não dão conta.
A consequência foi a pior possível. A ausência de uma política de defesa da saúde pública pelo governo Bolsonaro e seu inoperante Ministério determinou que o Patrimônio da União agilizasse um grande negócio de especulação imobiliária levando a leilão a preço vil o terreno de 9,6 mil metros quadrados e o hospital construído de 10 mil metros quadrados. Pelos preços praticados no mercado o valor da área não seria menor do que R$ 50 milhões. Foi arrematado por R$ 17 milhões, um terço do valor de mercado, com base em nova legislação licitatória que permite a diminuição drástica dos valores após cada rodada deserta de interessados. Um grande negócio diante do oligopólio de compradores da especulação imobiliária de Porto Alegre.
Ou seja, o poder público vende por R$ 17 milhões, o que vale no mercado capitalista R$ 50 milhões, e o especulador destrói um equipamento público de saúde que poderia estar a serviço da população – a demolição do prédio está em curso – e que para ser construído outro o poder público municipal, estadual ou federal, teria que investir entre R$ 25 milhões a R$ 30 milhões, considerando o CUB atual para os 10 mil metros quadrados do hospital que está sendo demolido.
Este é o mais fiel retrato do que é a barbárie desse capitalismo neoliberal em que vivemos. Destroem-se ativos de milhões de reais de equipamentos de serviços públicos com a total omissão e cumplicidade dos governos municipal e estadual.
O bairro Rio Branco, assim como o Bela Vista – este já com índices construtivos regionais esgotados pelo PDDUA há anos – vive hoje uma verdadeira corrida especulativa com dezenas de casas e pequenos prédios sendo demolidos para novas construções contempladas com exceções no índices construtivos pela permissividade do governo municipal frente ao Plano Diretor da cidade.
Essa realidade é o oposto da demagogia exposta na campanha eleitoral onde o discurso é a “defesa da saúde” e a prioridade no “cuidado às pessoas”. No final dos anos 90, diante da decisão do governo FHC (PSDB) de fechar ou privatizar o hospital materno-infantil Presidente Vargas, a Administração Popular não vacilou um momento e batalhou recursos para garantir a manutenção daquele hospital público e gratuito integrado na política de municipalização da saúde da capital. Era a política apontada pelo Conselho Municipal de Saúde e reivindicada pela participação popular no orçamento público. Hoje, a vasta rede de equipamentos públicos organizada e construída naquele período encontra-se quase toda precarizada pelas terceirizações dos serviços, pelos contratos temporários que liquidam com o atendimento preventivo da saúde da família e sucedem-se os escândalos de privatização de serviços que competem ao setor público.
Esperamos que essa trágica experiência vivida pela destruição infundada e desnecessária de mais um hospital público de Porto Alegre, para satisfazer a especulação imobiliária, sirva de exemplo e lição para desmascarar a distância entre o discurso e a prática dos governantes e partidos que os sustentam, na capital e no Estado.
Raul Pont é professor, fundador do PT e ex-prefeito de Porto Alegre.
Via Sul 21
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