A host de Barcelona
por Roberto Nascimento, especial para o Viomundo
Escrevo aqui sobre a host, instituição da Barcelona medieval, pra tratar da perseguição judicial ao ex-presidente Lula e da resistência que lhe é contraposta. Para falar da host nos valemos do excepcional livro do catalão Ildefonso Falcones, chamado La Catedral del Mar.
La Catedral del Mar conta a história de Arnau Estanyol, filho de um camponês servo de um senhor feudal da Catalunha, no século XIV.
Arnau é levado ainda bebê por seu pai, pra fora do feudo e pra dentro de Barcelona. Depois de um ano sem serem reclamados por seu antigo senhor, eles se tornam cidadãos livres e se incorporam a uma corporação de ofício.
Arnau cresce em Barcelona enfrentando todo o tipo de dificuldades, até se tornar um membro da corporação dos estivadores do porto da cidade. Ao mesmo tempo, esses trabalhadores estão construindo a catedral de Santa Maria de la Mar. A história de Arnau e a história da catedral então se entrelaçam.
Ainda menino, correndo pelas ruas de Barcelona, Arnau vê pela primeira vez a convocação da host. Aos gritos de Via Fora! e com os repiques de todos os sinos de todas as igrejas, os cidadãos livres e os nobres da cidade entraram em formação para combater o senhor de Creixell, que impedia uma tropa de gado vacum de chegar à cidade.
A host era chamada pra isto: defender os direitos de Barcelona, e também de um ou mais cidadãos. Ela era chamada em nome da cidade ou em nome do rei da Catalunha.
Arnau depois adulto lutou na host. E também mais tarde foi salvo por ela. Por acontecimentos que quem ler o livro conhecerá, Arnau fez a vida na cidade e se tornou um cidadão rico e poderoso.
Por determinados conflitos sociais e econômicos, mesmo rico e poderoso Arnau foi capturado pela Inquisição. E só escapou da morte porque a host foi convocada para defender seus direitos e o libertou das garras do chefe inquisitorial. O poder da Inquisição foi quebrado pelo poder da host.
Poder se enfrenta com poder. E aqui entramos na perseguição a Lula.
A operação lava-jato, que congrega a polícia federal, o ministério público e a justiça federal sediadas em Curitiba, apesar de ter no seu caderno de denúncias centenas de homens e mulheres do setor empresarial e de agentes políticos, foca seu trabalho e gasta sua energia para condenar e prender Lula.
E faz isso não só no processo judicial, mas na esfera pública, mancomunando com o mainstream da imprensa nacional, para uma execração sem precedentes.
Assim como o toureiro se vale de muitos outros antes dele pra enfraquecer e debilitar o touro, a lava-jato se vale da grande imprensa pra enfraquecer e debilitar o ex-presidente Lula. O toureiro nunca enfrenta o touro inteiro; Sérgio Moro tenta fazer o mesmo com Lula. Ocorre que Lula permanece na arena, e apesar de tudo, está inteiro.
A Inquisição chegou a capturar Lula em março de 2016, mas não teve força suficiente pra mantê-lo no cativeiro. Muitas forças sociais impediram que o jatinho a serviço da lava-jato o levasse pra fora de casa e pra dentro da cela.
Em um ano muita coisa aconteceu. Deu-se o golpe contra a Dilma e o Palácio do Planalto foi tomado por grileiros do poder político. O neoliberalismo voltou a comandar os destinos do país, com perdas imensuráveis aos trabalhadores, à classe média e sobretudo aos pobres.
Mas as ruas voltaram a ser tomadas pelos apoiadores de Lula e Dilma, em São Paulo, em Monteiro, em Rio Grande, em Curitiba.
É o povo brasileiro na rua que impede a inquisição de jogar Lula na masmorra.
O poder da lava-jato, que se sente bem nas pequenas salas de audiência, nas pequenas celas e nos lugares fechados, está sendo confrontado pelo poder que se movimenta na amplidão, na multidão e nos lugares arejados pela democracia.
A literatura e a história mostram: poder se enfrenta com poder.
Roberto Nascimento é historiador.
Comente com o Facebook