A extrema direita tem por missão minar o funcionamento das instituições democráticas, tipo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e a prática do voto para escolher representantes majoritários e proporcionais. Daí questionar sem provas a suposta facciosidade dos ministros do TSE e a lisura das urnas eletrônicas. O objetivo é desacreditar os mecanismos de funcionamento das regras do jogo, para reforçar a alternativa de um regime iliberal. A audiência interna às investidas sobre a institucionalidade da República é possível na medida em que, aquela, está associada ao “sistema”, avalia Marcos Nobre, em A Guerra de Bolsonaro Contra a Democracia (Todavia). O ogro foi ao cúmulo de reunir embaixadores estrangeiros para execrar a redemocratização pós-ditadura.
Afora a tentativa de se apropriar dos símbolos da nacionalidade (a bandeira, “meu partido é o Brasil”), a extrema direita ataca o alicerce do Estado de Direito – o Supremo Tribunal Federal (STF), guardião da Constituição. Para o inominável, o órgão é composto por pessoas de formação jurídica débil e desvio de caráter (“canalha”), excetuando os “terrivelmente evangélicos”. Como disse o compositor baiano: “Narciso acha feio o que não vê no espelho”. Contudo, as memoráveis falhas do STF beneficiaram o atual inquilino do Palácio do Planalto, que deseja ser o proprietário.
Primeiro, quando a Alta Corte aceitou o argumento das “pedaladas fiscais” contábeis como “crime de responsabilidade” constitucional para, em 2016, afastar das funções uma presidenta honesta ungida pela soberania popular. Segundo, quando permitiu ao juizeco “incompetente” jurisdicional e “parcial” no processo legal que prendesse o favorito, conforme as intenções de voto, às eleições de 2018. O Tribunal Regional Federal (TRF-4) confirmou o conluio midiático-judicial-militar, enquanto o prócer de toga elogiava a sentença, que sequer lera. Nela, constava a obscurantista figura condenatória “por crimes indeterminados”. Post festum, o Supremo corrigiu os graves e profundos equívocos que acarretaram tantas consequências calamitosas ao conjunto da nação.
A fraude antidemocrática e antirrepublicana contra a soberania popular permitiu a implementação do programa rejeitado em 2002, 2006, 2010 e 2014. O golpe alçou o vice traidor à titularidade e colocou o destino do Brasil no ninho do neoliberalismo internacional, com a aprovação da reforma trabalhista e previdenciária, do teto de gastos públicos e do festival de privatizações do patrimônio estatal. Minguou a capacidade de condução do desenvolvimento econômico para gerar empregos e distribuir renda. Rompeu-se o elo da Petrobrás e do Pré-Sal com a cadeia produtiva da indústria naval, de plataformas marítimas para extração de petróleo em profundidade, refinarias para agregar valor ao produto de exportação, navios e estaleiros. Prejuízos que significaram uma regressão de lesa-pátria na construção do Estado de Bem-Estar Social, pelo povo para o povo. Não espanta, que o país tenha voltado ao vergonhoso mapa da fome, da Organização das Nações Unidas (ONU).
Sem o clima de “fim de feira”, não ocorreria no Rio Grande do Sul o sequestro de atividades essenciais pela privatização da SulGás, da CEEE e da Corsan (em curso), empresas superavitárias entregues de mão beijada à iniciativa privada sem a devida discussão. Não foram analisadas as experiências do quadrante europeu (Inglaterra) e latino-americano (Bolívia), que voltaram atrás na sanha privatizante. O RS sentiu o tranco em tempestades que deixaram sem luz milhares de lares, por semanas, pela piora na prestação de serviços. A imprensa calou diante dos despautérios do governante que sacrificou o controle de áreas estratégicas, em troca de obras eleitoreiras de curto prazo. Por pura ideologia “modernizante”, na fala de Fernando Henrique Cardoso, se abdicou do planejamento de médio e longo prazos. Quem tem a caneta, mas não criatividade, rifa a casa.
Assim se reproduz a destruição do futuro. Entre os postulantes ao Palácio Piratini, os dois até o momento à frente da corrida eleitoral rezam, juntos, pela cartilha predatória do neoliberalismo. Além dos dez mandamentos do famigerado Consenso de Washington (1989), a bíblia dos “vendilhões do templo”, Leite (PSDB) e Lorenzoni (PL) possuem em comum três problemas:
1) A tradição autoritária que se exprime na visão utilitária do voto, desacompanhado do reconhecimento da maioridade dos eleitores para intervir nas decisões importantes do Estado. O resto fica na conta do narcisismo das pequenas diferenças, entre os competidores do campo da direita. “O drama histórico da sociedade brasileira desde o início de seu processo de modernização foi a continuação da escravidão sob novas máscaras, reproduzindo uma sociedade que ‘naturaliza’ a desigualdade e aceita produzir ‘gente’ de um lado e ‘sub-gente’ de outro”, sublinha Jessé Souza, em A Ralé Brasileira (Contracorrente). O passo para reinventar a história é estimular a participação da coletividade como sujeito, no plano político. A participação abre as portas para a igualdade.
2) O método autocrático de governança tem ouvidos para os interesses do grande capital e, nunca, os interesses do trabalho. Ambas as candidaturas têm opção de classe pelos privilegiados. Em detrimento da população, priorizam as exigências do livre mercado, que é livre só no nome porque dominado por megacorporações empresariais. Leite concebe o mandato como passatempo à espera de voos para Brasília, e não como um compromisso. Lorenzoni inspira-se nas realizações de mentirinha do “mito”, ao ameaçar “assim como fizemos”. A dupla compartilha o déficit de senso crítico sobre o que aconteceu no último quadriênio, aqui e lá. Se andassem na periferia descobririam a penúria e desesperança que atinge os habitantes, seguidamente, com balas perdidas. Mas alterar o método de governabilidade implica prioridades em franca contradição com sua lealdade classista.
3) A escolha do inimigo a combater para ressaltar a sua identidade, por igual, aproxima os rivais de opereta. Nas prévias que disputou e perdeu para a indicação tucana às eleições presidenciais, Leite teve de principal apoiador Aécio Neves. Não bastasse, votou no “homem sem qualidades” contra o professor Fernando Haddad, no episódio que trouxe do esgoto do Centrão, para o centro do poder, o ovo da serpente do neofascismo. Lorenzoni não disfarça o orgulho em servir no batalhão do negacionismo cognitivo, afetivo e político. Como lembra Umberto Eco em Construir o Inimigo (Record): “Ter um inimigo é importante não somente para definir a nossa identidade, mas também para encontrar o obstáculo em relação ao qual medir nosso sistema de valores e mostrar, no confronto, o nosso próprio valor”. O “contra ego” temido por eles é o PT, Lula, Olívio e Edegar.
O somatório da tradição autoritária, mais o método autocrático de governança e a escolha do inimigo a combater está condensado em versões hard e soft. O petista Edegar Pretto, com um crescimento vertiginoso na reta final de campanha que pode chegar ao segundo turno, está certo ao afirmar que “o projeto de Leite (não se arrependeu de votar em Bolsonaro, apesar de tudo de errado) e Lorenzoni (cujo filho integrou o secretariado do oponente de fachada, agora Eduardo) é o mesmo” (Debate RBS, 27/09). Desconhecido na largada, Edegar ganhou bastante musculatura na chegada.
Seria pedagógico o confronto com o projeto inaugurado em 1994, data em que FHC pôs a faixa presidencial. Então se deflagrou a contenção de gastos sociais, arrocho salarial, desemprego, enfrentamento para debilitar os sindicatos e sucateamento das universidades, da ciência, da pesquisa tecnológica e o alinhamento subordinado à globalização. Houve um lapso nos governos populares (2003-2016). Trata-se de uma oportunidade para saber se o conceito de “estado de exceção” se aplica ao egoísmo da sociedade para 1% ou à esperança na luta por mais justiça social para 99%.
Em 2 de outubro, todas, todos e todes saberemos se a estrada está liberada para a felicidade.
Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul.