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Saúde tem Cura”: a luz democrática socialista de Silvio Tendler chega ao SUS | Ronaldo Teodoro

É preciso compreender o valor da memória coletiva, do curso da história e das dinâmicas do poder a partir da presença popular na política. Esses fundamentos enredam o sopro que deu vida ao recente filme de Silvio Tendler: Saúde tem Cura! Nesse momento de balanço histórico da Reforma Sanitária Brasileira, pavimentado pelo golpe contra a democracia brasileira desde 2016 e a tragédia da pandemia que teve início em 2020, o trabalho de Silvio Tendler nos remete ao centro da soberania popular.

No seu enredo comparece a plena diversidade que faz do SUS o maior sistema público e universal de saúde do planeta: no que diz respeito à assistência, apresenta desde a complexa infraestrutura necessária ao transplante de órgãos e transfusão de sangue ao singular planejamento estatal dos serviços fluviais que levam a assistência de saúde às comunidades indígenas, além do enraizamento territorial dos Agentes Comunitários de Saúde nas periferias urbanas. Em termos políticos, o documentário recupera como a construção do sentido público da saúde esteve no centro da deslegitimação dos governos militares e embalou a esperança de uma geração inteira por um Estado amplamente democrático no momento constituinte dos anos 1980. Há no filme de Silvio Tendler uma apresentação refinada da estrutura institucional do SUS, sua magnitude, escala e sofisticação, mas também o apontamento dos poderes que o desafiam.

De 1988 para cá, nas pouco mais de três décadas em que a inspiração sanitarista desafiou as experiências naturalizadas de exclusão, o SUS foi recepcionado em uma estação historicamente regressiva – nacional e internacionalmente. O dogmatismo da austeridade fiscal permanente se voltou contra o princípio universal da saúde, desorganizando suas fontes de financiamento. Atuando contra a viabilidade de um Estado de Bem-Estar Social no Brasil, a agenda do capital financeiro organizou uma ininterrupta propaganda de guerra contra a capacidade administrativa estatal, colocando no coração do SUS a tese do hibridismo público-privado na gestão pública. Com o orçamento público da saúde ao alcance das iniciativas de mercado, a reação conservadora emparedou as carreiras públicas com Lei de Responsabilidade Fiscal, impactando, decisivamente, a expansão territorial e a estabilidade da assistência prestada pelo SUS.

Situados esses movimentos de força mercantil, a obra de Silvio Tendler capta uma dimensão central da resistência democrática sanitarista: a presença popular na construção da política de saúde pública. Os diversificados depoimentos que compõem o documentário apresentam a síntese e balanço da consciência de uma época. Lideranças comunitárias, trabalhadoras e trabalhadores da saúde, a cidadania insurgente dos movimentos negro, LGBTQIA+, das populações ribeirinhas, de sindicalistas e da população de rua, indicam, ao lado de gestores, pesquisadores e militantes históricos, o valor de se enraizar o SUS na identidade nacional.

Como apontam algumas pesquisas, o sentimento público de identificação e confiança com o SUS alcançou uma condição histórica sem precedentes com o trauma da pandemia.[1] Essa condição é uma evidência de que a experiência recente quebrou o histórico bloqueio midiático empresarial que sempre definiu ostensivamente o sistema público de saúde como um caos consumado, irremediável. A interpretação desse ascenso da consciência pública sanitária a partir da tradição democrática do socialismo, esclarece que esse princípio de hegemonia é um importante ativo político. Por um lado, aponta para uma alternativa pública consistente à mercantilização da saúde enquanto ideal de modernização e civilidade; por outro, atualiza o entendimento de que a disputa da cultura política deve vir ao centro do programa da Reforma Sanitária. O ensinamento é que não há vitória econômica ou institucional consistente sem a identificação política e a adesão popular a projetos e programas. Parafraseando a poesia republicana de Milton Nascimento: Todo sanitarista deve ir aonde o povo está.

Como registra o filme de Silvio Tendler, a valorização política do SUS alavanca ainda a estima pública por diversas instituições e segmentos sociais do campo sanitário, como a Fiocruz, o Instituto Butantan, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), o CEBES entre outros. É nesse terreno que está sendo pensada e organizada a Conferência Livre, Democrática e Popular de Saúde, a ser realizada em 05 de agosto desse ano. As centenas de organizações sociais que estão organizadas em torno desse evento confirmam que a saúde pública se tornou central para os rumos da democracia brasileira.

Na melhor tradição democrática e popular do Movimento Cineclubista do Brasil, onde iniciou sua carreira nos anos 1960, o “cineasta dos sonhos interrompidos” declara: este é um “filme feito para todo brasileiro lutar pelo SUS”.

Ronaldo Teodoro é cientista político e professor no Instituto de Medicina Social da UERJ; pesquisador do CEE-Fiocruz e do CERBRAS-UFMG.

Confira Saúde tem Cura!

[1] Confiança no SUS tem crescimento recorde na pandemia (uol.com.br)

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