Como tradição na cultura afro-brasileira, inicio este artigo saudando a minha ancestralidade, mulheres e homens negros que abriram caminhos para que hoje fosse possível estar aqui; cumprimento, também, os mais jovens, uma nova geração que surge e se constrói, na sua diversidade tão linda, capaz de constituir espaços de resistência e resiliência retomando as tradições da cultura negra brasileira.
Após dias de reflexão sobre o conteúdo deste texto, a angústia venceu a batalha. Pensei inicialmente em abordar sobre a vitória histórica da eleição do presidente Lula, que somente foi possível pela contribuição da maioria da população do país: negros e negras. O assunto poderia ter sido sobre a constituição do governo com mais pessoas negras na história e a necessária agenda antirracista, com a criação do Ministério de Igualdade Racial (mesmo com um orçamento pequeno) ou sobre a recente aprovação da nova Lei de Cotas, com um avanço significativo, capaz de proporcionar a continuidade na transformação da vida de milhares de jovens negras, negros e pobres do Brasil. Enfim, uma infinidade de agendas políticas e símbolos importantes para nós, mas como relatei, estou aflito com a violência à população negra no país.
Segurança Pública, esse para mim, é um assunto central para a vida das pessoas pretas. Um tema complexo, que exige de nós, mais do que elaborações científicas, disputa de projetos distintos e mais do que vontade política, é necessário coragem!
Coragem, para que possamos enfrentar a violência, uma estrutura rigidamente sedimentada, que está incorporada abstratamente na ideia de Estado e, ao mesmo tempo, organiza, a partir da Constituição, a materialidade de sua aplicação nas relações entre pessoas. Não quero problematizar aqui a existência do uso da violência pelo Estado. O objetivo do artigo é, essencialmente, discutir sobre como ainda não temos um projeto de segurança pública (leia-se como controle do uso da violência pelo Estado), capaz de romper com a lógica racista e patrimonialista das forças de segurança. E no Brasil, na minha opinião, essa é uma responsabilidade do PT.
Sim, uma responsabilidade à altura da experiência de um partido de trabalhadores, representantes de uma parcela delimitada da sociedade brasileira, que se caracteriza como maioria de negros e negras, numa estrutura territorial e de renda extremamente desigual em relação às pessoas brancas. Experiência de um partido que governou diversos municípios, dentre eles capitais, vários estados da Federação e, inclusive, governou por 13 anos consecutivos o país.
Ter esse tema como central na agenda política não é um ponto de vista pessoal, qualquer consulta de opinião na sociedade nas últimas décadas aponta como um problema a ser resolvido. Todos sabem, essa foi a pauta que organizou a cultura bolsonarista, permitindo uma vitória eleitoral em 2018, que deu início a uma escalada fascista no país. Ou seja, um problema que deveria ser um dos principais elementos para um programa político do PT e da esquerda, está sendo deixado de lado. É um erro!
Uma falha na perspectiva eleitoral; da construção de hegemonia social; de diálogo com a classe que reivindicamos representar; de construção de uma sociedade sem privilégios; da superação do racismo e patrimonialismo; e, com o objetivo de superar o capitalismo.
Se hoje, dia 20 de novembro de 2023, eu pudesse me fazer ouvir pelas direções partidárias da esquerda brasileira, pelo presidente Lula e os ministros que ideologicamente são nossos aliados, diria exatamente isso:
Querem mudar o Brasil? Se dediquem ao tema da Segurança Pública.
Já afirmei anteriormente que é um tema complexo, porém, fundamental. Não há necessidade de explorar os lamentáveis dados estatísticos que impõe à nossa sociedade situações extremamente desumanas, seja do ponto de vista da violência policial ou em intensas disputas de comando de territórios para tráfico de drogas. Há, ainda, as milícias que, travestidas do “manto estatal”, cumprem igual ou pior papel de organizações de traficantes que conhecemos nas últimas décadas. Todos nós sabemos que não funciona o sistema de segurança pública no Brasil, uma organização – a polícia – estruturada para manter os negros segregados em territórios precarizados, nem que seja por meio do uso letal, impedindo a continuidade da vida de milhares de pessoas dessa parcela significativa da sociedade.
Não temos um programa estruturado, porque não queremos arriscar e constituir novas experiências que produzirão transformações significativas na estrutura das polícias que hoje têm uma cultura de guerra. Por isso, defendo que é necessário ter coragem.
Não temos diretrizes para apresentar aqui, mas todos conhecem as experiências fracassadas, inclusive, as dos governos petistas, seja na Bahia, no Ceará, ou nas intervenções federais no Rio de Janeiro, todas apresentam mortes sangrentas de pessoas, geralmente jovens negros, em territórios periféricos. Ou seja, sabemos como não devem ser organizadas as políticas de segurança.
O que precisamos – e é isso que quero defender neste artigo –, é de um passo adiante. Se a segurança pública é um problema nacional e suas instituições são organizadas como estruturas militares, culturalmente sedimentadas numa lógica de guerra, com requintes de racismo e patrimonialista, cabe à esquerda, ao PT e nosso governo federal, chamar para si a responsabilidade.
Ora, a militarização das polícias é incompatível material e conceitualmente com a nossa Constituição e o Estado Democrático de Direito. Afirmo isso, porque a Carta de 1988 não prevê guerras como regra, e sim, como exceção. Portanto, o papel das estruturas de seguranças deve ser de relações civis e não militares. Constituir alvos de guerras – pessoas negras e pobres – como ocorre hoje no Brasil, é extrapolar os níveis razoáveis de uso da violência estatal, sendo, consequentemente, inconstitucional.
O primeiro passo (não o único), é centralizar, no governo federal, a construção de uma política de segurança pública, reorganizando as competências e responsabilidades, retirando dos estados essas funções e modificando as estruturas policiais de militares para civis. Mesmo que tenha coparticipações dos demais entes da federação, a política deve ser nacionalizada, só assim será possível produzir mudanças significativas.
Um passo de cada vez. Têm outras políticas que se entrelaçam com a da segurança pública que devemos refletir e reorganizar. Poderíamos escrever livros e livros, ou mesmo acolher o que já tem elaborado. Mas, para o momento, resolvi defender a centralidade de um programa necessário e urgente para o povo negro: a transformação da política de segurança pública. Sem essa, nossas vidas continuarão sob a mira de um policial, pronto para atirar. Sim, atirar no primeiro negro que vê pela frente.
Aleff Fernando é Militante do Coletivo Enegrecer e Membro da Executiva Estadual do PTRS.