Artigo do Ministro Guilherme Cassel, publicado no jornal Folha de S. Paulo, defende o terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos, abordando, em especial, as suas nuances referentes ao combate à violência no meio rural. “Não tem sido um caminho fácil, pois se trata de confrontar a violência que sempre serviu para encobrir grilagem de terras públicas, trabalho escravo e desmatamento ilegal”, afirma.
Guilherme Cassel *
A violência sem limites, o coronelismo, a insegurança jurídica e a exclusão sempre foram marcas persistentes na história do meio rural brasileiro. Habituamo-nos a conviver com massacres, pistoleiros, grilagem e a existência absurda do trabalho escravo.
Essa história, porém, vem mudando. E mudando bastante. Nos últimos anos, ações articuladas dos governos federal e estaduais, do Judiciário e do Ministério Público têm conseguido reduzir o número de conflitos, minimizando suas consequências e criando outro ambiente no campo, com mais segurança jurídica e garantia de direitos. Uma agenda civilizatória que, aos poucos, substitui a violência por um ambiente de paz e produção.
De 2003 a 2009, o número de mortes no campo em decorrência de conflitos agrários diminuiu 80%. Várias iniciativas têm cooperado para isso.
1) Em 2003, o governo federal criou o Programa Paz no Campo e, em 2004, o Plano Nacional de Combate à Violência no Campo, com ações para estruturar instituições de prevenção e combate à violência e tornar mais eficiente a resolução de conflitos.
2) Em 2006, o governo federal criou a Comissão Nacional de Combate à Violência no Campo, incluindo os ministérios da Justiça, do Meio Ambiente e dos Direitos Humanos. Com a colaboração de procuradores-gerais da Justiça, do Ministério Público Federal e do Trabalho, entre outros, a comissão estimula o diálogo e a negociação para alcançar soluções pacíficas.
3) Em 2009, o Conselho Nacional de Justiça criou o Fórum Nacional para Monitoramento e Resolução dos Conflitos Fundiários Rurais e Urbanos. Composto por magistrados, atua para dar efetividade aos processos judiciais e prevenir conflitos.
4) Em 12 Estados, tribunais de Justiça baixaram atos recomendando aos magistrados ouvir o Ministério Público, o Incra e os institutos de terras antes de decidir sobre liminares em ações possessórias rurais coletivas.
5) Nos últimos anos foram criadas seis varas agrárias federais e dez estaduais. Em 11 Estados já existem promotorias agrárias, em oito funcionam delegacias agrárias e em quatro atuam defensorias públicas agrárias. Todas essas instituições vêm trabalhando com os movimentos sociais para substituir a cultura de violência e impunidade por um ambiente de respeito aos direitos constitucionais.
Uma união de esforços pautada pela compreensão comum de que mediação e negociação são procedimentos modernos e adequados ao tratamento democrático dos conflitos.
Não tem sido um caminho fácil, pois se trata de confrontar a violência que sempre serviu para encobrir grilagem de terras públicas, trabalho escravo e desmatamento ilegal. Não é por acaso que a exigência do cumprimento do dispositivo constitucional da função social da propriedade da terra ainda suscita tantas reações.
Não é razoável que há mais de dez anos tramite no Congresso Nacional, sem deliberação, o projeto que aplica sanções àqueles que forem flagrados patrocinando o trabalho escravo.
O terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos defende um ambiente de diálogo e negociação entre as partes para a solução de conflitos agrários, algo previsto pelo Código de Processo Civil como dever do juiz.
Reforça o que já vem sendo feito há um bom tempo no Brasil e com resultados positivos. Uma agenda contemporânea que não separa democracia, desenvolvimento e direitos humanos.
Os programas anteriores, de 1996 e 2002, já recomendavam ações conjuntas dos Poderes Executivo e Judiciário e do Ministério Público para evitar a realização de despejos forçados. Propunham, inclusive, mudanças na legislação, para tornar obrigatória a presença de juiz ou do Ministério Público no cumprimento de reintegração de posse, condicionar a concessão de medida liminar à comprovação da função social da propriedade e ouvir previamente o Incra.
Sobre esses dois programas não se registrou nenhuma reação como a que se vê agora. Achar que juízes, promotores e desembargadores comprometidos com os direitos humanos e que valorizam a mediação prévia estariam a serviço de causas autoritárias ou da construção de um ambiente de insegurança jurídica no campo beira o ridículo. Ao reconhecerem a legitimidade desses conflitos e a pluralidade de interesses, eles assumem o desafio da vida democrática e da superação das desigualdades sociais.
Governos federal e estaduais, ao lado do Poder Judiciário e do Ministério Público, têm conseguido, nos últimos anos, substituir a violência pelo diálogo e pelo bom senso. Ou melhor, a violência dos poderosos pela justiça da razão. Isso incomoda a uns poucos, mas abre um caminho de paz e produção para milhares de brasileiros que vivem e trabalham no meio rural.
* Guilherme Cassel é engenheiro civil e, atualmente, Ministro do Desenvolvimento Agrário.