Democracia Socialista

“Ser de esquerda hoje é ser antineoliberal”

Emir Sader analisa o cenário política no Brasil e na América Latina.

Cruzada antineoliberal

Entrevista Emir Sader

Atualmente à frente do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Emir Sader traz para os debates sobre conjuntura brasileira e latino-americana um olhar crítico e de esquerda, comprometido com as causas populares. Doutorado em ciência política pela Universidade de São Paulo, Emir ficou exilado no Chile durante a ditadura militar, e fez parte da direção do MIR, o Movimento de Esquerda Revolucionário de lá.

Nessa entrevista, Sader comenta o cenário dos movimentos sociais, a necessidade de se afirmar o perfil de esquerda do governo federal, e fala ainda do conflito entre as forças que apóiam e as que se opõem ao modelo neoliberal. No cenário latino-americano, ele analisa a situação da Venezuela e do Chile que, em cenários diferentes, assistiram a um crescimento da esquerda nos últimos meses.

O governo Hugo Chávez foi reafirmado pelo plebiscito popular, mas o movimento bolivariano ainda tem poucos quadros formados politicamente. Sader destaca essa dificuldade como um empecilho para a construção organizativa do movimento social naquele país, o que segundo ele é a principal tarefa da esquerda por lá. No Chile, a esquerda mostrou força nas eleições municipais, e tem chances nas eleições presidenciais ao final desse ano, em que o candidato deve ser o intelectual de maior prestígio no país.

O governo Lula chega à metade do mandato, e é possível observar várias contradições em suas políticas. Esse cenário nublado gera um quadro difícil para os movimentos sociais brasileiros. Como você vê o atual momento dos movimentos?

O segundo ano do governo Lula foi marcado pela assunção da política econômica como permanente, deixando de lado as justificações iniciais, que lhe atribuem um caráter transitório. Ficou mais clara a hegemonia liberal dentro do governo. A questão principal para todos os que criticam pela esquerda ao governo Lula por essas orientações é a de afirmar o perfil da esquerda, buscando melhor forma de construir e fortalecer espaços para a acumulação de forças nessa perspectiva.

Os movimentos sociais têm uma perspectiva específica, porque não pretendem se constituir em alternativa política mais geral. Lutam por temas específicos, por mais abrangentes que possam ser – como, por exemplo, a reforma agrária. Nenhum deles ficou satisfeito com o desempenho do governo, com razão. Do que se trata é de construir uma plataforma antineoliberal ou pós-neoliberal, que articule um conjunto de reivindicações em um projeto político e econômico geral.

Fica cada vez mais clara a necessidade de movimentos de países diversos promoverem lutas comuns em torno de objetivos comuns. No entanto, como observou Michael Löwy (Democracia Socialista nº8), existe hoje uma defasagem entre os movimentos sociais na América Latina e a representação política que eles têm. Como você analisa o grau de internacionalização das experiências dos movimentos sociais na América Latina?

A internacionalização é um processo social, mas também econômico, político e ideológico. A proposta do Mercosul que não se limite a acordos comerciais tem que incorporar temas como o Parlamento do Mercosul, a moeda comum e processos de integração da mídia pública, o Banco da Semente, a integração das empresas públicas de petróleo, entre outras. A Via Campesina e a Aliança Social Continental são bons exemplos disso, mas uma aliança forte supõe a incorporação de forças.

À luz de um crescimento econômico sem distribuição de renda e do resultado das últimas eleições, quais os grandes conflitos na sociedade brasileira hoje?

O maior conflito é entre as forças que apóiam o modelo neoliberal e aquelas que se opõem ou que têm interesses contrapostos a esse modelo. Em um pólo se situa o capital financeiro, o sistema bancário, as frações exportadoras da grande burguesia – com preponderância para o setor do agronegócio –, a grande mídia; do outro, as grandes massas trabalhadoras do campo e da cidade, todos os que vivem do seu trabalho, sem explorar o trabalho alheio, as pequenas e médias empresas, os profissionais da educação e da saúde pública, os estudantes, produtores democráticos de arte e cultura, os meios alternativos de comunicação.

 

A resistência pela esquerda tem o desafio da construção de um programa alternativo ao neoliberalismo no Brasil e na América Latina. Quais seriam pra você os pontos centrais desse programa?

A esquerda deve lutar sobretudo para afirmar sua identidade, seu perfil. Ser de esquerda hoje – na mais ampla acepção do termo – é ser antineoliberal. No sentido estratégico é quem luta por imprimir um caráter anticapitalista a essa luta.

Sobre a Venezuela. No momento do plebiscito, várias lideranças sociais diziam que o momento não era de explorar as diferenças, mas de apoiar Chávez. Nesse momento pós plebiscito, como fica esse quadro? Quais são os principais debates a serem feitos?

O governo de Hugo Chávez conquistou um novo oxigênio com o triunfo no referendo. Foi muito importante. Basta imaginar-nos o que teria significado uma vitória da direita, como fortalecimento da política de Bush e de Uribe para toda a região.A vitória do governo representa um espaço maior para o fortalecimento das políticas sociais e do novo movimento social.

As maiores dificuldades vêm da inexistência de uma direção política do movimento, que depende praticamente de forma exclusiva de Hugo Chávez. O movimento bolivariano é muito frágil, com poucos quadros formados politicamente, com a presença de setores oportunistas, atrasando a formação ideológica e a construção organizativa do movimento social. Esta é a tarefa mais importante da esquerda no momento atual.

No caso do Chile, as últimas eleições indicaram um crescimento da esquerda. É possível identificar uma mudança na correlação de forças da política chilena?

A manifestação de abertura do Fórum Social Chileno foi a maior desde o fim da ditadura. Foi impressionante, tanto pela quantidade de gente – algo como 70 mil pessoas -, como pela diversidade e pela presença marcante de uma nova geração de militantes do movimento social. A presença de Bush ajudou a imprimir à manifestação um caráter frontalmente antimperialista. Isso se deu depois da coalizão de esquerda – hegemonizada pelo Partido Comunista – ter obtido quase 10% de votos nas eleições municipais, elegendo vários prefeitos e vereadores.

As eleições presidenciais de dezembro de 2005 terão como candidato da esquerda possivelmente o intelectual de maior prestígio no Chile – Tomas Moulian –, que tem boas possibilidades de construir um consistente programa antineoliberal e consolidar a presença da nova imagem da esquerda chilena.