“O controle do céu e do mar e a violência como parteira e coveira da História”
A Rússia está isolada. Os EUA e seu parceiro menor, a União Européia, determinaram sanções terríveis contra o país.
Porém, China, Índia, África do Sul, Argentina, Brasil, México (e a maioria dos países da América Latina), Arábia Saudita, Turquia (que pertence à OTAN) condenam e/ou não praticam as medidas de sanção ditadas pelos EUA contra a Rússia.
A Índia anuncia que vai comprar petróleo russo com rublos e rúpias. A Turquia também sinaliza que manterá relações comerciais com Rússia e, além disso, pretende instalar uma rede de fast food na Rússia, aproveitando o vácuo deixado pela saída do pais do McDonald’s e Starbucks (a Burger King, alegando disposições contratuais não deixou a Rússia ainda). A Arábia Saudita, quieta sobre a Rússia, vai vender petróleo para a China, recebendo em yuans. A China e os países da União Econômica da Eurásia (Rússia, Bielorrússia, Cazaquistão, Armênia) projetam a criação de uma nova moeda de circulação internacional, propósito que era cogitado pelos BRICS e que pode voltar à agenda da articulação entre a Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
Como pontuei em outro artigo publicado aqui no site da DS, Adam Smith entendia ser a trajetória chinesa de desenvolvimento o “caminho natural”, em que a projeção externa decorre da saturação interna das relações de troca entre agricultura e manufatura, a partir da irradiação de redes de comércio que têm seu ponto de partida em pequenas vilas.
No Ocidente, a projeção externa foi precipitada, a partir do século XV, em meio à obstrução do comércio com o Oriente. Depois da “Descoberta da América”, em 1492, foi potencializada por sua ocupação e pela expansão européia ao Oriente pelo Atlântico Sul, nos séculos XVI e XVII. Finalmente, foi definitivamente impulsionada pela Revolução Industrial, nos séculos XVIII e XIX.
Até o século XIX, a expansão européia não havia provocado grandes problemas para a China, mas no século XIX, essa viu interrompido seu “caminho natural”, com iniciativas do Ocidente, como a Guerra do Ópio (um exemplo pioneiro de “guerra química”) e a pressão para a adoção da política de “portas abertas”, em que cidades litorâneas da China se submetiam a disposições do Ocidente, especialmente da Inglaterra, para entrada de produtos europeus no território chinês.
Foi assim, pois, com a dominação colonial da Índia, a guerra química através da venda de ópio, a humilhação da China (a “Era da Grande Vergonha”, segundo os chineses) além de outras ações militares, que minavam redes de proteção locais em diversos pontos do planeta que o “livre mercado se impôs”.
No século XX, os EUA, que atravessaram todos os conflitos em que se envolveram ou provocaram sem qualquer arranhão ao seu território (à exceção de Pearl Harbor), lograram substituir a Inglaterra como nação hegemônica no comércio mundial, condição que resultou, evidentemente da pujança de sua economia, mas, também, do controle sobre a principal moeda de referência nas transações internacionais, dos sistemas operacionais de pagamentos e do domínio sobre os céus e os mares, proporcionado pela sua enorme capacidade bélica e suas alianças militares como a OTAN, o Aukus e o Quad.
A OTAN, sobejamente conhecida, reúne os EUA, o Canadá e a maior parte dos países europeus, tendo se ampliado até as fronteiras com a Rússia, desde o declínio da URSS. Se viesse a incluir a Ucrânia, certamente seria um fator a complicar o acesso da Rússia ao Atlântico Sul através do Mar Negro, Mar Mediterrâneo e Egeu, e os estreitos de Bósforo, Dardanelos e Kerch. Ao Norte, o caminho pelo mar, da Rússia, é inóspito dada a natureza do Oceano Ártico. Ao leste, o acesso ao Pacífico (que não é exatamente um caminho “curto” para alcance dos principais mercados do mundo) envolve transitar por um longo trecho de terra, atravessando a Sibéria.
O Aukus foi criado em 2021. Reúne Estados Unidos, Reino Unido e Austrália. É voltado contra a China. Uma aliança militar para monitorar os movimentos da China em seu caminho pelo Oceano Índico e o Atlântico Sul. Por conta dele a Austrália rompeu um acordo de cooperação com a França para modernização de sua frota de submarinos nucleares, em favor de um acerto com os EUA e o Reino Unido. Business e armas. E a União Européia acha que os EUA são parceiros e protetores de sua segurança.
Complementa o Aukus o tratado Quad, que envolve Estados Unidos, Índia, Japão e Austrália. Este é de 2007, estava meio esquecido, mas os EUA têm estimulado sua retomada. Sob a capa de um acordo de cooperação regional, constituído após o tsunami no Japão, mira, também, a contenção da China.
Por fim, existe ainda a rede de espionagem Five Eyes, criada em 1941, no contexto da Segunda Guerra, mas que hoje serve, principalmente, para monitorar a China. É constituído da Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Reino Unido e Estados Unidos. Há sinais de que pode ser ampliada, mas, hoje, envolve apenas países de língua inglesa.
Nenhum dos arranjos na Ásia, liderados pelos EUA inclui, até o momento, a União Européia.
O Aukus, o Quad e a rede Five Eyes são ameaças reais à China e seu caminho pelo mar, que tem como espaço principal o Oceano Índico e o Atlântico Sul. Tal como a Rússia, a opção do Pacífico não é uma alternativa razoável para o alcance, pelo mar, dos principais mercados do mundo.
A OTAN e os arranjos militares liderados pelos EUA na Ásia para contenção da China fazem as vezes da Marinha Real Britânica no partejar da nova ordem capitalista no século XIX, só que em sentido inverso. Naquele momento, a violência, que Marx disse ser a “parteira da Historia”, era utilizada para abrir os mercados para as economias mais dinâmicas do Ocidente Europeu.
Hoje, contudo, é parte de um esforço agônico de impedir que a História siga seu “caminho natural”.
A hegemonia chinesa na economia, na ciência e tecnologia é um processo sem volta, que ocorre sem um único tiro disparado para abrir novos mercados. Ao contrário, tem sido acompanhada de reciprocidade na área comercial, cooperação tecnológica e investimentos em infraestrutura, rumo a uma economia global efetivamente integrada. A violência materializada na presença da OTAN e dos acertos dos EUA para contenção da China na Ásia é, pois, uma orquestração a operar com a pretensão de ser a “coveira da Historia”.
O isolamento dos países da OTAN (não todos) nas sanções à Rússia, mostra, todavia, que tais propósitos mortificantes podem não ter êxito.
- Ignacio José Godinho Delgado é professor titular aposentado da Universidade Federal de Juiz de Fora nas áreas de História e Ciência Política.
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