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Sujeitas de nossa própria história

Mulheres… nem pra comprar, nem pra bater, nem pra tomar à força.

MELAYNE MACEDO SILVA

Era uma vez, em um bairro da periferia de Curitiba, uma mulher chamada Rosa. Tinha por volta de trinta anos. Adorava flores, gostava de dançar e de sonhar com uma vida cheia de alegria e conquistas. Era muito vaidosa e adorava trançar seus cabelos “pichaim”. E todas as manhãs, ao acordar, cantava lindas canções que pareciam não só despertar o seu corpo, mas um ritual para acordar sua alma.

Rosa era educadora e trabalhava em uma creche chamada “Despertar”, onde cuidava de crianças do Jardim II que tinham entre quatro e cinco anos. Tinha muitas colegas, com quem todas as sextas-feiras tinham o sagrado ritual de tomar uma cerveja no bar de dona Lility. Lá, além de falarem da difícil jornada da semana, partilhavam um pouco de suas vidas.

Em uma quinta-feira ensolarada, Rosa, após o ritual de despertar, foi para a jornada de todos os dias. Quando chegou à creche Despertar, ao receber Sofia —uma de suas alunas—, percebeu que os olhos de sua mãe estavam inchados e que haviam hematomas no seu corpo e braços. Em sua testa, havia um corte muito feio que tentava esconder com os longos cabelos soltos na face, algo bem incomum para Joana, que sempre usava suas saias longas e cabelos presos.

Não era só a aparência da mãe que estava diferente. O brilho de seus olhos e sua alegria também tinham sido roubados.

Quando lhe perguntou o que havia acontecido, a resposta foi a mais simples e encabulada possível:

— Foi um armário que não vi e acabei trombando — falou, timidamente.

Após uma breve pausa, começou a se justificar:

— Ai, tenho tanto trabalho que acabei me distraindo e me acidentando. Sou uma burra mesmo e estou ficando velha… Bem que o Lázaro diz.

Joana foi embora com os olhos cheios de lágrimas, com o passo apertado e arrumando seu cabelo negro já com fios brancos em frente ao corte da testa.

Aquela cena marcou muito Rosa, que recordou de que, quando mais jovem, via seu pai constantemente agredir e ofender sua mãe. No início, com palavras. Depois, com empurrões. Com o passar do tempo, com tapas e murros. Não precisava de motivos ou justificativas. Um dia era porque sua roupa não estava bem passada. Outro, porque não tinha preparado o frango como ele queria que tivesse.

Seu pai trabalhava o dia todo, e quando chegava em casa, geralmente, já estava dormindo. No dia seguinte, perguntava à mãe o que havia acontecido. E ela sempre a dizia que aquilo não lhe dizia respeito. Que era assunto dela e do pai, coisas de marido e mulher.

No início, ela acordava e ficava, chorando sem saber o que fazer. Com o passar do tempo, foi crescendo. Quando fez 15 anos, veio para Curitiba e sua mãe a fez jurar que, durante toda a sua vida, ela mesma iria cuidar de seus passos e desenhar seu próprio caminho e nunca, nunca, jamais deixaria alguém dominar sua vida e seus sonhos.

Joana poderia ser só mais uma mulher que leva e busca sua filha todos os dias na creche. Mas fez com que Rosa voltasse no tempo e lembrasse de algo que marcou seu caminho e norteou muitas de suas opções de vida.

Hoje, no Brasil, a cada 15 segundos uma mulher é espancada. Em cada dez mulheres, oito já sofreram algum tipo de violência de um homem. Cerca de 88% dos crimes de violência física são cometidos por pessoas do vínculo familiar, sendo 81% cometidas por maridos ou ex maridos, 7% por namorados ou ex-namorados e 4% por pais ou irmãos.

Menos de 30% das mulheres vítimas de violência denunciam seus agressores. A violência contra a mulher atinge todas as classes sociais e raças. Acontece principalmente por uma cultura machista e capitalista, onde as mulheres são concebidas como propriedade de alguém. Primeiro, são filhas de Pedros, irmãs de Carlos, primas de Augustos. Depois se tornam mulheres de Joões, amantes de Franciscos, sogras de Thiagos.

Enfim, são eternas partes de alguém. Tornam-se peças coadjuvantes de uma história. Isso acaba construindo mulheres impotentes, fazendo com que sintam se incapazes, sem coragem de perceber quando e como estão sendo violentadas. Acabam aceitando sua condição de coadjuvantes e vítimas, não por sua culpa, ou por gostar de tal condição, mas por não terem descoberto outra forma de ser.

Você, caro(a) leitor(a), deve estar pensando “realmente isso já aconteceu, mas ficou no passado, hoje os tempos são outros, as mulheres trabalham, moram sozinhas, tem suas próprias vidas…”

Mas se  os tempos realmente tivessem mudado, porque tantas mulheres continuam apanhando? Porque Rosa continua a encontrar Joanas em seu trabalho? Porque todos os dias escutamos histórias de amigas, vizinhas, tias, cunhadas, colegas e conhecidas que apanham —isso quando ficamos sabendo. Na grande maioria dos casos, a violência doméstica é tratada como algo só entre quatro paredes. Afinal, “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”.

Abrir mão do cuidado consigo mesma. Alimentar e construir seus próprios sonhos. Perceber nossas próprias qualidades e habilidades. Gostar de si e de seu corpo como ele é, sem se preocupar em emagrecer 12 quilos, em fazer um alisamento progressivo, ou comprar o novo renew. Conseguir encontrar o seu próprio modelo, deixar de seguir a moda que só serve pra vender produtos. Tudo isso é uma conquista, uma conquista que nos torna sujeitas de nossa própria história.

A violência está permeada em todos os espaços e não podemos aceitá-la como algo natural de nossas vidas, nem tampouco ser indiferentes ao que acontece ao nosso redor. Todas somos sujeitas de transformação. Estamos em constante mutação e temos a responsabilidade coletiva de construir um mundo melhor para nós mesmas e para todos e todas. Não somente por sermos mulheres, mas por sermos donas de nossos caminhos.

O desafio de Rosa, hoje, para além de não ser indiferente nem conivente com a violência, é buscar como provocar outras pessoas a se sentir no mundo como sujeitas e donas de seu próprio caminho. E você, como se sente?

Melayne Macedo Silva, ativista da Marcha Mundial das Mulheres

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