Para deter o genocídio em curso – o maior da história do povo brasileiro desde o fim da escravidão -, é preciso constituir já uma autoridade nacional sanitária democrática
Se com o ex-Ministro Mandetta havia uma autoridade sanitária apenas muito parcial, a todo momento desestabilizada e deslegitimada por Bolsonaro, com Nelson Teich criou-se um vácuo inoperante e agora, com o general Pazuello, houve um verdadeiro sequestro do Ministério da Saúde. O principal ato do general de plantão foi o de tentar criar um sistema de fake news institucional, mascarando o número de mortos, e pretendendo formar os novos desaparecidos políticos do coronavírus. Como afirmou com precisa indignação a histórica referência do SUS, Sonia Fleury, na saúde houve já um golpe (Ver artigo “Golpe na saúde”).
A necessidade de criar uma autoridade sanitária democrática nacional, um fórum permanente dotado de legitimidade política e capacidade de coordenação é, neste contexto da maior pandemia da história do país, um imperativo incontornável.
Ela teria três funções interligadas. Em primeiro lugar, construir um canal direto de comunicação com a população brasileira, como referência científica, de coordenação de informações e de iniciativas gerais para o enfrentamento da pandemia e da transição para uma nova situação de normalidade. O seu sentido democrático ficaria realçado com a sua relação direta com as capacidades de organização e mobilização da sociedade civil brasileira, de cidadania ativa e dos movimentos sociais, necessárias para o enfrentamento da pandemia.
Em segundo lugar, servir de referência e de orientação para a ação dos diversos poderes institucionais, do legislativo e do judiciário, além do ministério público, para as autoridades municipais e estaduais que, por sua vez, conferem a legitimidade deste fórum. Estas ações, hoje gravemente descentradas e fragmentadas, precisam adquirir uma crescente convergência, de orientação e de sentido. Sem uma coordenação, não se consegue vencer o avanço fatal da pandemia!
Em terceiro lugar, esta autoridade sanitária democrática nacional interditaria, na prática, através da obstrução congressual, da interdição judicial, de atos administrativos de governos estaduais e municipais, de atitudes de desobediência civil todos os atos do governo Bolsonaro que reforçam o caminho do genocídio do povo brasileiro.
Na verdade, esta dinâmica de formação de uma autoridade sanitária alternativa ao governo Bolsonaro, de forma pontual e descontínua, têm se avolumado desde o início da pandemia. Seja através das orientações gerais da OMS e dos consensos da comunidade científica internacional, seja através da resistência de governadores e prefeitos, seja através de decisões do Congresso Nacional, em particular da Câmara Federal, seja através de ação dos procuradores ou mesmo por decisão do STF. Particularmente importantes, foram as iniciativas de movimentos de favelas, de movimentos sociais de solidariedade, produzindo uma auto-organização sanitária de proteção diante da ausência de governo.
Assumindo esse sentido político, duas iniciativas mais estruturadas se destacaram. Em primeiro lugar, com o Consórcio de governadores do Nordeste, que formou logo no início da pandemia, sob a coordenação do cientista Miguel Nicolelis, um notável esforço de coordenação de iniciativas, protocolos e experiências. Mas este consórcio enfrentou sempre a hostilidade e o agressivo boicote do governo federal, limitando o seu potencial de atuação, por falta de verbas, de instrumentos e insumos básicos fundamentais. A segunda medida de maior alcance, deve ser reconhecida no “Painel CONASS COVID-19” do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, que desde o dia 07 de julho atualiza diariamente os indicadores gerais da pandemia. Essa extraordinária iniciativa, que materializa o compromisso constitutivo da tradição sanitarista com a vida dos brasileiros, eleva o entendimento de que a construção de uma autoridade sanitária democrática nacional é, não apenas, uma necessidade, como um ideal possível.
A marcha do genocídio
Mas é preciso constatar que todas estas iniciativas proto-formadoras de uma autoridade sanitária alternativa diante de um governo negacionista, se retardaram, suavizaram e em alguns locais por um período, achataram a curva de expansão da pandemia, foram e são ainda basicamente insuficientes para deter o genocídio em curso.
Chamamos de genocídio a resultante do encontro do governo Bolsonaro com a pandemia, que se expressaria exatamente pelo número de mortes evitáveis caso o governo brasileiro tivesse seguido minimamente as orientações científicas e sanitárias que formam um robusto consenso na comunidade internacional. Se o governo Bolsonaro é hoje reconhecido internacionalmente como o principal governo negacionista do mundo, seria preciso desnaturalizar, pela raiz, os efeitos mortais da pandemia.
O Brasil tornou-se, de fato, o epicentro da pandemia no mundo. Já é o segundo país em número de infectados e em número de mortes, só atrás dos EUA, assolado pelo governo Trump. O que, decerto, é uma medida que diz também sobre o tamanho de sua população, em comparação com outros países como Itália, Espanha e Grã-Bretanha.
Mas a informação fundamental é a que revela que o Brasil tem hoje a maior taxa de expansão e o maior aumento do número de mortes em média, nos últimos sete dias. E exatamente no momento, em que governos estaduais e municipais, que vinham adotando posturas de isolamento social com algum rigor e, em alguns casos extremos, lock-downs, optam por iniciar o retorno à “normalidade”.
O resultado disso é um genocídio, cujo tamanho do número de mortos não pode ser de antemão configurado mas cuja grandeza certamente somará mais de uma centena, senão centenas de milhares, de mortos, se uma medida forte e nacional de lockdown, pelo menos por duas semanas, ou de forte isolamento social não for tomada, principalmente nos grandes centros urbanos. Esta proposta foi feita em live do jornal Valor Econômico, pelo coordenador da maior pesquisa nacional sobre o coronavírus, Pedro Hallall.
O Instituto para Métricas de Saúde e Avaliação (IHME), ligado à Universidade de Washington previu em 26 de maio – antes, portanto, das medidas de flexibilização da quarentena recém tomadas – que o número de mortos no Brasil deve chegar em 125 mil já no início de agosto. O modelo de previsão trabalha com efeitos das regras de distanciamento social, tendências de mobilidade e capacidade de testes. E prevê que, na escalada atual, o Brasil passaria o número de mortes por coronavírus nos EUA no fim de julho próximo.
O epidemiologista e reitor da Universidade Federal de Pelotas, Pedro Hallall, coordena a maior pesquisa epidemiológica sobre o coronavírus feita no Brasil, contratada pelo Ministério da Saúde, e uma das maiores do mundo. Já por duas vezes testou amostras de 250 pessoas em 133 cidades das maiores sub-regiões do país, tal como formuladas pelo IBGE.
Além de constatar a desigualdade regional e social do avanço da pandemia – mais forte na região Norte do país, migrando das camadas mais ricas e médias para as camadas mais pobres da população, Pedro Hallall se surpreendeu com a velocidade de sua expansão. O caso da cidade do Rio de Janeiro seria o mais grave, evoluindo o grau de contaminação em duas semanas de 2,5 % para 7% da população. Apenas na cidade do Rio de Janeiro, haveria 500 mil pessoas já infectadas pelo coronavírus, revelando o grau de subnotificação da contaminação no país já que, em todo o Brasil, os números oficiais davam conta na data de 800 mil infectados.
A avaliação de Pedro Hallall é que a decisão de flexibilizar a quarentena neste momento equivale a “um kamikaze”, “um blefe contra a pandemia”, que terá resultados gravíssimos. Sanitários, econômicos e sociais, pois é claro que, quanto mais amplo e alongado o patamar de pico da pandemia, maiores serão os danos.
A questão é: por que está havendo uma tal dissintonia entre o juízo sanitário seguro – partilhado pelas lideranças das principais entidades de saúde pública e científicas do país – e as autoridades e governantes públicos em um momento decisivo de auge da expansão da pandemia e do número de mortos?
Formar agora a autoridade sanitária democrática nacional
A resposta é que não existe hoje no país uma autoridade sanitária nacional democrática, ficando as ações de governos da federação ao sabor de circunstâncias, pressões econômicas locais, juízos casuísticos. O governo Bolsonaro foi, na verdade, apenas de forma muito instável e parcial, um autoridade sanitária sob a gestão Mandetta. Mas Bolsonaro sempre operou na linha de uma contra-autoridade sanitária, negando as evidências da pandemia e atacando, por todos os meios, o distanciamento social necessário. Em um primeiro momento, a estrutura federativa do SUS, seu corpo técnico enraizado nas secretarias estaduais e municipais, garantiu uma certa diretriz básica de enfrentamento da pandemia. Mas esta estrutura federativa, sem um apoio sanitário nacional democrático, está agora cedendo às pressões sociais e econômicas da longa quarentena sem uma adequada e suficiente rede de apoio e proteção social, à ausência de uma testagem ampla, à ansiedade pelo retorno.
Desde o início da pandemia, foi se alterando a conjuntura política do país. Não se trata mais do desgoverno Bolsonaro e uma crise de governabilidade que atinge claramente várias áreas decisivas – meio-ambiente, educação, relações internacionais, direitos humanos, além do descrédito da área econômica -, mas de uma crise de legitimidade do próprio governo Bolsonaro.
Esta crise de legitimidade foi trazida à tona pelo protocolo na Câmara Federal de pedidos de impeachment de vários partidos de esquerda e centro-esquerda ( PT,PSOL, PC do B, PSB, PDT, Rede), pelo acúmulo de crimes de responsabilidade explicitamente cometidos pelo governo, pelo deslocamento para a oposição de vários setores neoliberais que antes faziam parte de sua base eleitoral, parlamentar e institucional, combinados com uma persistente queda de popularidade de Bolsonaro nas pesquisas e nas redes sociais. Está em curso no STF o início de um processo sobre fake News e seu disparo ilegal na campanha de 2018, que poderia levar, se consequente, à cassação da própria chapa Bolsonaro/ Mourão. As ruas começam a ser decisivamente ganhas para a luta anti-fascista.
A construção de uma autoridade sanitária nacional, neste contexto, além de um imperativo para salvar dezenas senão centenas de milhares de vidas, é uma possibilidade democrática que não se pode mais adiar.
O seu núcleo é exatamente o fórum que organizou no dia 11 de junho a “ Marcha pela Vida: Em defesa do SUS, da ciência e da democracia” que aglutina em sua formação o Conselho Nacional de Saúde do SUS, a Associação Brasileira de Saude Coletiva ( Abrasco), o Centro de Estudos Brasileiros em Saúde ( CEBS), a Sociedade Brasileira de Infectologia, a Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência ( SBPC), a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, a Andifes ( que reúne os reitores das universidades federais), a OAB, a ABI, a Associação Brasileira Rede Unida, a CNBB, Sociedade Brasileira de Bio-Ética.
Com a legitimação dos partidos e lideranças democráticas brasileiras, em oposição a Bolsonaro, em uma dinâmica supra-partidária, ela pode e deve se tornar uma autoridade pública sanitária, com decisões por consenso, tornando-se um referencial norteador das decisões e orientações fundamentais para bloquear o avanço da pandemia e para organizar uma transição, com medidas a serem postas em pratica pelas autoridades públicas. Ela deveria convidar uma representação do Congresso Nacional e do poder judiciário, além é claro de representações dos governos estaduais e municipais.
Sem esta autoridade sanitária nacional democrática, a marcha do genocídio continuará o seu curso fatal.