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Trabalhadores franceses e a Direita – um caso de amor? | Reginaldo Moraes

Gabriel Goodlife  – professor e pesquisador mexicano – publicou um livro que reconstitui a história da direita radical francesa desde o século XIX, suas raízes sociais, formas de atuação, influência, etc. Leitura oportuna.  E não apenas para entender o rebu francês, mas para estimular a ‘imaginação sociológica” em outras direções. A ficha do livro é esta:

Gabriel Goodlife – The Resurgence of the Radical Right in France – From Boulangisme to the Front National, Cambridge University Press, New York, 2012.

Um dos capítulos me interessou mais fortemente, por conta dos eventos presentes e também pelos ensinamentos que pode trazer para analisar situações parecidas em outros países. É o capítulo em que se analisa a alegada migração dos trabalhadores franceses, do apoio aos socialistas e comunistas ao voto em Le Pen e seu Front National. [Capítulo 8: French Workers in Crisis and the Entrenchment of the Front National]

Uma das impressões que recolhemos do livro é que a direita tem história na França. A extrema direita. E que a ascensão da FN representa, como diz o autor, o reestabelecimento da direita radical no seu papel tradicional de influencia na politica francesa.

O autor aponta que se tem dado pouca atenção para as condições de “demanda política” que determinaram o sucesso da direita radical. E tenta mostrar como, em um padrão de modernização social e política, o país desenvolveu uma peculiar estrutura de classes em que certos grupos se tornaram fontes significativas de apoio para a direita radical. Indica, assim, que o crescimento da FN vai além de um reflexo da “crise de representação” em geral.

O capitulo oito é o que mais me chamou atenção. Fico nele, resumindo seus temas – traduzo algumas de suas passagens, livremente. As ilações e comparações vão por minha conta e risco. O tema é a adesão da classe trabalhadora ao chamado da ultradireita.  Goodlife lembra que já no começo dos anos 1990, a principal fonte dos eleitores da FN passava a ser um (surpreendente?) segmento social: os trabalhadores industriais.  E tenta explicar esse fenômeno a partir da “profunda crise social crise que atingiu a classe trabalhadora como um resultado da transformação na economia francesa desde o fim dos anos 1970s.” A crise teria se traduzido em ampliação da vulnerabilidade e na erosão da identidade de classe.

No final dos anos 1990, o desemprego entre trabalhadores industrial era maior do que em qualquer outro grupo ocupacional. Em especial o desemprego de longo prazo, aquele que vem, permanece, arrasta-se e corrói. Isto tudo parecia (e era) resultado de múltiplos fatores inter-relacionados – aumento da competição internacional, liberalização e desregulamentação, outsourcing (terceirização, subcontratação, desmembramento de empresas), liberalização de mercados financeiros. Esse conjunto de reformas – macro e micro econômicas – cobrou preço pesado dos trabalhadores industriais – declínio no padrão de vida, insegurança de emprego. Com consequências pesadas em outros aspectos de sua existência.

No plano macro, alguns fatos merecem destaque.  Desde 1983 (governo socialista de Mitterrand!),  o “dirigismo” e o  “planejamento indicativo” dão lugar á “desplanificação”  e à desregulamentação. Some-se a isso a privatização das empresas estatais e serviços públicos. E os que ficaram sob a direção do governo, foram submetidos a “critérios de mercado”, gestão de mercado. O foco da politica econômica tinha mudado: estabilidade monetária e competitividade internacional era o eixo, não desenvolvimento e pleno emprego.

No plano micro, o estado também impulsionou reformas para melhorar a competitividade das firmas, sua “flexibilização”. Desmantelam-se os controles de preços e salários, do crédito. São afrouxadas as leis que restringiam demissões, admite-se cada vez mais o emprego precário e temporário. São aceleradas, assim, as práticas de outsourcing, com desmembramentos de empresas e subcontratação, terceirização, etc. Somemos a isso a “deslocalização” e/ou offshore. A empresa fecha uma unidade produtiva francesa e desloca sua produção para uma unidade na Ásia ou em uma ex-colônia, onde são mais baixos os impostos, mais frouxas as regras trabalhistas. No território francês ela deixa um buraco social – cheio de gente sem emprego nem esperança, pendurada no salário-desemprego.  Essa coisa que devasta a França  assim como o meio-oeste americano que desistiu de votar em Hillary Clinton (e parcialmente votou Trump), as zonas operárias inglesas que romperam com o Partido Trabalhista e votaram no Brexit. E os exemplos poderiam ser estendidos.

Com esses desmanches, temos o fim do chamado “compromisso fordista”, aquele período de “amortecimento” dos conflitos de classe que garantira a “paz social” tensa do pós-guerra – em que o capital abria mão de alguns anéis e a classe trabalhadora (sindicatos) aceitavam o sistema e arrancavam melhoramentos.  As relações capital e trabalho eram mediadas sobretudo pelo PCF e “sua” central sindical, a  CGT, revolucionários no discurso, pragmáticos no dia a dia. Bem ou mal, essas duas instituições sustentavam a identidade de classe dos trabalhadores. Junto com a central socialista, a CFTDT, em menor escala.

A transformação estrutural da economia erodiu essas “instituições socializadoras”, suportes essenciais da identidade de classe.

O autor recolhe dados que evidenciam o declínio da sindicalização, representado no gráfico abaixo:

 

Outro dado significativo é o declínio do voto no PCF:

 

Goodlife aponta um primeiro nível explicativo desses dois movimentos: declínio da sindicalização e do voto PCF refletem redução no peso demográfico do operariado industrial. Principalmente do operariado de grandes empresas. Esse declínio privaria os sindicatos e o PCF de uma fração importante de sua base social.

O autor acentua a importância de uma transformação  no nível micro-econômico, a reestruturação das empresas com a flexibilização e a subcontratação. Com emprego mais contingente e inseguro.

“Com efeito, a reorganização da produção e o recurso a formas mais flexíveis de emprego tem causado uma nova divisão do trabalho na indústria francesa. Em um primeiro nível, grandes fábricas foram transformadas nos principais lugares em que estão concentradas tarefas produtivas complexas, do ponto de vista técnico e conceitual. Elas formam o coração das cadeias de uma produção cada vez mais hierárquica e difusa, empregando um núcleo de técnicos altamente qualificados e adaptáveis. Em um segundo nível, juntamente com estas unidades nucleares altamente automatizadas e orientadas por processos, unidades menores de subcontratantes e filiais surgiram para complementar as principais funções produtivas da unidade mais antiga. Especializando-se em um número único ou limitado de funções, tais como o fornecimento de peças ou manutenção e reparo, estas empresas subordinadas dependem esmagadoramente de trabalhadores jovens, trabalhadores não qualificados que recebem o mínimo dos mínimos, suportam condições de trabalho estafantes e experimentam as tênues condições de contrato detalhadas anteriormente. Em suma, surgiu na França uma economia industrial de dois níveis. Uma camada superior administra os principais processos de concepção e montagem e é preenchida por uma nova aristocracia de trabalhadores qualificados, tecnicamente eficientes. Por sua vez, emergiu uma segunda camada, subordinada, de subcontratantes e afiliadas, a fim de servir às empresas do núcleo com o menor custo de serviço, submetem seus trabalhadores não qualificados a trabalho incerto e super-explorado.”

Para tudo isso, políticos e empresários providenciaram o necessário suporte jurídico, as reformas que as ruas constantemente rejeitavam…

Mas vai além disso: fazendo isso, eles aceleraram o deslocamento de instituições que historicamente modelavam a identidade social e politica dos trabalhadores:

“Em suma, revolucionando a produção e a montando um quadro jurídico para aumentar a flexibilidade do mercado de trabalho, os empresários franceses e as elites políticas enfraqueceram consideravelmente a posição social e profissional dos trabalhadores industriais na sociedade francesa. Ao fazê-lo, eles aceleraram o deslocamento das instituições que historicamente formaram a identidade social e política dos trabalhadores.

Por sua vez, a transformação da produção no nível da empresa fragmentou a força de trabalho industrial em vários estratos caracterizados por interesses divergentes, até mesmo contraditórios, erodindo assim as solidariedades que ligavam os trabalhadores em uma identidade coletiva compartilhada e programática. Estes estratos podem ser divididos em três grupos. Um primeiro nível é o segmento cada vez menor dos trabalhadores que, por razões legais ou econômicas – funcionários e assalariados em setores competitivos ou protegidos – deixaram de ser afetados pela implosão do modelo fordista produtiva e social.”

….

Eles representam um núcleo cada vez menor de trabalhadores cujo emprego permanece seguro e que têm garantido um salário garantido relativamente elevado e estável. O segundo nível é a fração crescente de trabalhadores sujeitos a cada vez maior instabilidade ocupacional e insegurança material. Cada vez mais vulnerável às flutuações econômicas e sujeitos à degradação da mão de obra e condições salariais, a maioria destes trabalhadores é envolvida em formas atípicas, contingentes ou provisórias de trabalho. Eles incluem os empregados das empresas subcontratadas que suportam o peso dos cortes de custo exigidos pelos grandes produtores primários; trabalhadores de tempo parcial a quem se negam os benefícios e proteções oferecidos aos trabalhadores de turno integral; e trabalhadores temporários ou de curto prazo que, na falta de segurança de emprego regular, são particularmente vulneráveis à exploração.  Em função da sua fraqueza econômica e organizacional perante os empregadores, estes trabalhadores atípicos encontram-se expostos a condições de trabalho cada vez mais onerosas e perigosas, um fato refletido no aumento significativo do número de acidentes de trabalho e em níveis mais elevados de stress do trabalho. Em terceiro lugar, finalmente, surgiu um novo lumpen-proletariado resultante da transformação da desregulamentação do mercado de trabalho no setor produtivo e de serviços e da remoção de proteções ao trabalhador. Redundantes funcional e materialmente empobrecidos, os membros deste novo Lumpen-proletariado enfrentam uma exploração extrema na economia paralela ou “subterrânea” quando não caem na criminalidade e penúria.”

Vale a pena repetir o comentário do autor: esta fragmentação enfraqueceu significativamente as instituições tradicionais de socialização do movimento operário:

“Enfim, o fracionamento da classe trabalhadora em estratos divergentes do ponto de vista funcional e socioeconômico tornou extremamente difícil organizá-los. As identidades e enquadramentos profissionais efêmeros destes trabalhadores, para não mencionar sua vulnerabilidade profissional e material geral, cada vez mais se opõe a sua identificação com um outro, para não falar do risco de perder o emprego se se juntarem a um sindicato.

Assim, em função das novas modalidades estruturais e tecnológicas que regem a produção industrial e a flexibilidade do trabalho e dos salários que foi alcançada pelos empregadores com a bênção do estado, a mudança de paisagem do capitalismo francês colocou uma crescente massa de trabalhadores fora das condições que permitam a sua organização. “

Ora, deduz Goodlife, desmanteladas as instituições socializadoras antigas, os trabalhadores procuraram novas fontes de identificação para substitui-las.

Mas o autor menciona também um fator que podemos chamar de “lado “subjetivo” da coisa, a política do PCF – sua dificuldade de se adaptar ás mudanças e ás tempestades (como o desmonte da URSS. Mais ainda, o partido acomodou-se á politica de integração europeia do PS, com todas as suas “reformas”. Simplificando, pode-se dizer que para muitos trabalhadores o PS traiu e PCF não se opôs (ou não se opôs suficientemente)

Do lado dos sindicatos não foi muito melhor. Eles trocaram o ativismo chão de fabrica pela negociação por cima, que garantia verba governamental e preservação dos quadros de direção. Agravaram a crise de representação.

Daí aparece a FN oferecendo uma nova identidade, um novo “sentimento de comunhão nacional.

Um sinal desse descolamento dos trabalhadores frente á políticas dos comunistas e socialistas foi a resistência operária à integração europeia. O que, como sabemos, guardadas as diferenças, tem similaridade com o que ocorre na Inglaterra (Brexit) ou nos Estados Unidos (descolamento dos trabalhadores diante do Partido Democrata).  Na França quase 80% dos trabalhadores industriais votaram contra a ratificação da constituição europeia – a média nacional foi de 54,7%.

A FN capitalizou isso tudo. Como uma nova “Eclésia”, ofereceu uma nova “identidade” e uma nova tribuna. De certo modo, uma nova fé (crenças), uma nova igreja (rituais, conclaves, ambientes compartilhados) e uma nova sacerdotisa geral.

É claro que o leitor poderia fazer uma pergunta é: mas porque a esquerda não capitalizou? O PCF foi tragado pelo tsunami pós-perestroika. Mas a “antiga” extrema esquerda, aquela que fermentara depois de 1968, também naufragou – a Lutte Ouvrière virou nicho estagnado, a Liga Comunista Internacionalista desapareceu em um também evanescente Partido Anticapitalista, os maoístas, nem sinal. Aparentemente, apenas um grupo, congregando antigos socialistas e comunistas, procura se situar no novo cenário – a candidatura Melenchon é seu traço mais visível. Mas ainda é pouco, diante da FN. Terá chance de mudar o quadro, confrontar a FN em seu campo e aparecer como a alternativa aos globalistas macronianos e ao PS degradado? Haveria espaço para uma nova socialdemocracia “neopopulista”, á esquerda, como o Podemos espanhol? Ou para uma nova composição à esquerda como em Portugal?

O processo francês está longe de ser único. Só de memória posso fazer várias analogias com Espanha, Estados Unidos, Inglaterra, Brasil… Reformas econômicas e legislativas “macro”, no micro,  reengenharia das empresas e cadeias produtivas, reconfiguração do proletariado, impacto em suas formas associativas e políticas, na cultura política popular e nos comportamentos políticos. Daí, “novas” lideranças e “identidades” tentadoras – um partido, um pulha midiático, uma igreja. Ás vezes, várias dessas coisas ao mesmo tempo. Enquanto isso, nós, à esquerda, demoramos a entender e demoramos para implementar saídas progressistas.

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