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Transições transadas e retorno do que nunca se foi. O exemplo espanhol

 

Em fevereiro de 1982 eu estava em Madrid e colhia informações e depoimentos para um livrinho-reportagem sobre a transição espanhola – isto é, o processo através do qual aquele país saía de uma ditadura policial-militar e entrava numa monarquia parlamentar, em que a chefia do governo é escolhida a partir do sufrágio universal e do “balanço” entre os partidos. O interessado pode ler neste endereço: https://reginaldomoraes.files.wordpress.com/2011/06/escritos_espanha.pdf.

Não era apenas um inverno que esfriava a cidade. Era fácil de sentir no ar como o medo volta às almas quando as suas razões profundas seguem vivendo nos subterrâneos da rotina, em seus símbolos aparentes, nos nomes das ruas e praças, naquilo que se abafa ao invés de lembrar e, sim, eliminar pela lembrança. O falso esquecimento é algo que aparentemente ajuda a “virar a página” da história – apenas para deixar que o vento, mais tarde, a revire. O retorno do reprimido.

O evento que operou como gatilho para esse retorno do não-resolvido foi um julgamento. O julgamento do chamado 23-F, a tentativa de golpe militar operado por oficiais do exército e da polícia saudosos do franquismo. Exatamente um ano antes, os fardados e armados haviam invadido o parlamento com pompa e circunstância. Deram tiros ao alto, fizeram um escarcéu. Horas depois foram dominados pela segurança, quando já estava claro que os quartéis não seguiriam sua convocatória.

Assim como a tentativa de golpe, o julgamento tinha seus mistérios. Os golpistas se insurgiram e tiveram o topete de “exigir” do juiz que expulsasse da sala um jornalista, do qual “não gostavam”. Sintomático é que o juiz aceitou a demanda. Juízes, pensei. Alguns talvez quisessem apenas “fazer correr o processo”. Outros, quem sabe, simpatizassem com os milicos e também tivessem saudade do “caudillo de España por la gracia de Diós”. Sabe-se lá. Deus tem seus segredos, os juízes, também. Porém, mesmo de parte da mídia os protestos me pareceram tênues.

Daí, botei a mão no bolso para pagar o bilhete do metrô e me dei conta de que sempre olhara para algo estranho sem reconhecer a estranheza. As moedas espanholas ainda estavam, elas também, em transição. Havia aquelas em que a “cara” tinha a imagem do rei D. Juan, a criatura. Circulavam lado a lado com as que exibiam o perfil de Franco, o criador e eterno fantasma. Uma espécie de retrato atualizado das duas Espanhas do fantástico poeta Antonio Machado. Ainda guardo estas moedas (imagens abaixo).

Imagem: Reprodução

Foram-se formando na minha mente outras percepções do antes natural, agora estranho. Naquela semana eu tinha ido à exposição de Guernica, o famoso quadro de Picasso que, finalmente, voltava à Espanha. Esse registro da violência fascista retornava, agora, como um símbolo da “redemocratização”? Sim, mas, sintomaticamente, o quadro não estava exposto no famoso Museu do Prado. Estava exposto em um espaço menor ali perto… o Museu do Exército. Nada mais ambíguo. Só faltava ser o Museu da Aeronáutica.

Lembro-me de outro clarão revelador, daquela viagem. Numa livraria, um livro anunciava o milagre. O título era algo assim: … Y al tercer año, resucitó” (imagem abaixo). Em 2014 se publicou um “Ele está de volta” que virou filme, o retorno de Hitler. Em 2018 se fez um remake com a figura de Mussolini – “Eu estou de volta”. Mas Franco foi o ensaio geral da praga. Assim como os bombardeiros fascistas na guerra civil espanhola eram o ensaio geral do novo formato de guerra, plenamente desenvolvido poucos anos depois.

Imagem: Reprodução

A ambiguidade da moeda de duas caras durou até a adoção do euro. Ou seja, apenas a plena integração na Europa cumpriu o papel de “aposentar” Franco, cadáver adiado que seguia procriando, para imitar a frase de Fernando Pessoa. Aliás, cadáver que agora se tenta exumar, retirando-o do mausoléu em que repousa como homenageado. Ainda há boa parte da Espanha que “comemora” a ditadura. E reza pelo seu retorno. Reza mesmo. As sacristias estão cheias de saudosos e conspiradores.

Hoje não sei se o apagamento dessa imagem de Franco, na moeda e nas almas, foi bom ou mau. E para quem teria sido bom. Por um lado, ia embora a imagem ameaçadora. Por outro, ela era um chamado a lembrar da ditadura – e não esquecê-la. Faca de dois gumes.

Para as novas gerações, o franquismo é remota lembrança, talvez apenas um capítulo da história que estudam na escola. Não é mais experiência vivida. Desse ponto de vista, é esquecida.

Quanto temos que esquecer para seguir vivendo? Quanto lembrar, para que o passado não se repita? Como superar o medo mantendo a memória? Como manter alerta a mente para saber que fantasmas nem sempre se contentam em ser fantasmas?

Transições, mudanças “negociadas” têm esse dilema. Afinal, dia seguinte, os que vieram e os que se foram acabam cruzando na mesma rua, quem sabe no mesmo bar e nas mesmas igrejas.

E, fundamentalmente, os grandes homens de negócios, que antes sustentavam o ditador fardado, estão hoje a homenagear os seus sucessores civis, eleitos em um novo regime. Continuam no posto de comando e no topo da cadeia alimentar.

Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

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