As mulheres, principalmente as mulheres negras, que representam a base da pirâmide social, são as maiores vítimas de múltiplas violências e da precarização da vida.
O Rio de Janeiro vive hoje uma sobreposição de crises econômicas, políticas, securitárias, sociais e sanitárias. Neste processo, as mulheres – e principalmente as mulheres negras, que representam a base da pirâmide social e a maior parte das chefas de família deste país e deste estado -, são as maiores vítimas de múltiplas violências e da precarização da vida. De violência física à violência pelo Estado; de violência doméstica à violência psicológica ou obstétrica: as mulheres ficam com as cargas, os traumas, as dores e os lutos.
Na pandemia, este processo se intensificou. Apenas para ficar em um exemplo, de acordo com a pesquisa “Sem Parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, 91% das mulheres ouvidas acreditam que a violência doméstica aumentou durante o isolamento social, ao mesmo tempo que 55% das mulheres negras entrevistadas afirmaram que a pandemia trouxe riscos à sustentação econômica de suas casas. Nossos corpos, historicamente violentados e violados, passam ainda por mais dores em meio à crise global de Covid. O que precisamos é de apoio, reparação e possibilidade de reconstrução das nossas vidas.
De acordo com os dados do Ministério do Trabalho de 2021, das pessoas que perderam emprego na pandemia, 96% foram mulheres. O boletim especial 8 de março complementa esse dado, apontando que, destas, 83% são mulheres negras. Além de uma drástica redução na qualidade de vida e de acentuar a feminilização da pobreza, é sabido que a dependência econômica é muitas vezes responsável por mulheres continuarem no ciclo de violência.
Certamente a violência não é o único aspecto de nossas vidas que queremos falar, mas sabemos que é uma realidade urgente e crescente. Só no estado do Rio de Janeiro, nos últimos cinco anos houve um aumento de 73% nos casos de feminicídio. Este número é fruto de muitas coisas, a mais importante delas é o completo desmonte de políticas públicas para as mulheres, sobretudo as de combate e prevenção da violência.
Diversas Casas da Mulher Brasileira foram fechadas no país por falta de orçamento e o programa Mulher Viver Sem Violência foi completamente desmontado. Nos deparamos com uma secretaria de Políticas para as Mulheres que perde força dentro de um grande guarda-chuva de desigualdades, ministras que jogam contra as mulheres (com destaque para a figura da Damares) e um orçamento que respira por aparelhos, sem qualquer transversalidade para dar conta da realidade de nossa diversidade.
Frente a isto, apresento três propostas para mulheres em situação de violência.
1-Em caso de violência, o primeiro atendimento tem que ser feito por uma mulher
Quando uma mulher é violentada e busca ajuda, seja em uma delegacia, em um hospital ou posto de saúde ou em qualquer outro espaço, ela está vivendo um momento delicado. Provavelmente o seu agressor foi um homem, e o momento de denúncia ou de busca por acolhimento é muito delicado. No entanto, o Estado não está preparado para recebê-la: ao chegar em espaço que deveria ser de escuta, a mulher muitas vezes é desacreditada, ridicularizada ou mesmo coagida a não denunciar. Ou seja: violentada. Chamamos este processo de revitimização.
Por isso, é obrigação que todo espaço público do Rio de Janeiro e do Brasil que receba, atenda ou escute uma mulher vítima de violência tenha uma mulher qualificada, treinada e remunerada para acolhê-la. Este treinamento deve ser garantido e qualificado pelo estado. Isto não apenas daria condição de amparo às vítimas que estão passando por traumas e por situações de vulnerabilidade como também amplia as chances de a vítima leve a denúncia adiante, quebrando o ciclo de violência. As delegacias de atendimento à mulher são apenas um dos exemplos que devem ser mantidos e aperfeiçoados: este tipo de prática deve ser estendido a qualquer instituição que acolha mulheres.
2-As mulheres vítimas de violência devem ser prioridade nos benefícios e políticas sociais
Mulheres vítimas de violência muitas vezes ficam presas nos ciclos, sem conseguir sair. Muitas delas não denunciam ou, se denunciam, não levam o processo adiante. As que denunciam muitas vezes se veem sozinhas: nem sempre podem contar com redes de apoio; muitas vezes perdem seus empregos ou fontes de subsistência; muitas vezes estão com dificuldades físicas e emocionais de ir adiante ou dar a volta por cima. Por isto, é necessário que as políticas sociais não sejam apenas pensadas para elas, mas que elas tenham prioridade no acesso aos recursos. Isto inclusive estimula mais mulheres a denunciarem e rompe com ciclos de dependência financeira que as aprisiona numa realidade de violência.
3-Políticas de reparação em territórios
Mesmo quando as mulheres não são as vítimas diretas da violência, elas também sofrem indiretamente as consequências. Afinal, as nossas comunidades e territórios são marcados por traumas profundos. Além da pobreza estrutural, as ocupações e intervenções pela polícia e pelo Exército só trazem mais dor e insegurança. Neste processo, nossa juventude é exterminada e ficam para trás mães enlutadas, solitárias, vulneráveis e sobrecarregadas. Muitas vezes, seus filhos e/ou companheiros são assassinados e, além do luto, estas mães têm que garantir fontes de subsistência para substituir a renda que seus entes assassinados garantiam.
Fica, também, o clima de pânico. Apenas para ficarmos em um exemplo, depois da chacina do Jacarezinho, de 2021, ficou ali operando normalmente a Cidade da Polícia, com seus treinamentos e barulhos de tiro de fuzil. Isto em uma região marcada pelo trauma da perda de 21 de seus jovens. Como garantir a segurança para sair de casa se os sons da rua só lembram de morte e chacina?
É preciso de políticas sérias de reparação. Um CAPS ativo e especializado em violência e segurança pública que acolha mães, tias, esposas, irmãs que ficaram para trás e seguem no cenário de guerra, nas mesmas ruas onde seus queridos foram assassinados. O CAPS não pode estar longe: tem que garantir acesso, acolhimento e tratamento contínuo e humanizado para as mulheres traumatizadas, vulneráveis e precarizadas.
Dara Sant’Anna é militante da Marcha Mundial das Mulheres e do Movimento Negro
Via Revista Fórum