Na política, parte da população interpreta como fraqueza, desculpa esfarrapada ou simplesmente falta de compromisso quando os governos prometem e ficam inertes.
Circulava no final de semana, em um grupo de Whatsapp, um vídeo um tanto bucólico do presidente Lula na Granja do Torto, no meio de uma horta, falando da preocupação com o aumento do preço dos alimentos. Disse que já tinha feito reuniões e que tomaria medidas para encontrar uma solução para garantir que a comida chegue mais barata na mesa do povo brasileiro.
Em resposta ao vídeo, uma pessoa que votou nele e estava no grupo deu a seguinte resposta: “Esse governo virou de falastrão. Não se pode mais confiar no que falam”. O governo Lula completou dois anos. De lá pra cá, a população desconhece medidas efetivas para, de fato, enfrentar o problema. Baixar o preço dos alimentos foi uma das promessas de campanha de Lula. Com essa bandeira, fez um contraponto ao encarecimento da comida no período anterior, que foi objeto da campanha “Bolsocaro”, que contribuiu para desgastar o governo de Jair Bolsonaro.
Muita gente se pergunta, diante da incredulidade da reeleição de Donald Trump e da ascensão de outras figuras autoritárias, o que leva milhares de pessoas a depositarem sua confiança nessas figuras.
É possível observar uma distância menor entre o que se propõe e as ações tomadas para efetivá-lo. Trump foi eleito com um discurso ideológico, com uma crítica impiedosa ao governo de Joe Biden. Já no primeiro dia, assinou 46 ordens executivas (decretos) de grande impacto político, social, econômico e geopolítico.
Mesmo sabendo que muitas medidas podem ser revertidas pelo Poder Judiciário ou pelo Congresso dos Estados Unidos, é difícil acusar Donald Trump de não cumprir com sua palavra e defender o que acredita – ou pelo menos acenar esse compromisso com o seu público.
Caso as medidas sejam revertidas (e podem ser), ele ainda reforça sua posição: tentou, fez o que prometeu, mas outros setores impedem a realização plena de seu programa, criando ainda mais um componente de coesão contra “inimigos do governo”.
Ele concedeu o perdão presidencial a 1.500 presos por invadir o Capitólio em 6 de janeiro de 2021, atropelando o Poder Judiciário. Declarou também emergência na fronteira com o México para obstruir a entrada de imigrantes, o que viabiliza o envio de tropas e liberação de recursos para combater a imigração ilegal.
Também deu largada na política de prisão e deportação em massa de imigrantes latino-americanos, com a meta de expulsar do país 1 milhão de pessoas, abrindo uma crise diplomática dos Estados Unidos com toda a região. Além disso, assinou ordem de retirada dos EUA do Acordo de Paris e da Organização Mundial da Saúde (OMS).
O hiato entre falar e fazer é objeto de estudo sobre as relações humanas, relacionado ao inconsciente e às contradições internas do sujeito, o que possibilita fazer um paralelo com a política.
O psicanalista Christian Dunker considera que a palavra, quando tomada como ato, constrói vínculos simbólicos que fortalecem o tecido social. No entanto, aponta o enfraquecimento do compromisso com a palavra na modernidade, com impacto nas relações humanas e, inclusive, nas instituições.
É justamente nessa contradição que a extrema-direita tem conseguido conquistar apoio de faixas da população em seus países. O que muitos consideram como intransigência, radicalismo e autoritarismo é visto por parte da população, independente do mérito das medidas, como compromisso, firmeza e coragem.
Os governos de esquerda têm dificuldades de transformar a palavra em ações que reforcem a confiança da população no seu compromisso com suas promessas.
A responsabilização pelo que se quer e pelas palavras que se profere, diz o psicanalista francês Jacques Lacan, vincula a psicanálise à “ética do desejo”. De acordo com ele, não cumprir a palavra revela um conflito interno, uma alienação ou que alguma coisa do inconsciente foge à consciência.
Na política, parte da população interpreta como fraqueza, desculpa esfarrapada ou simplesmente falta de compromisso quando os governos prometem e ficam inertes, alegando “respeito às instituições” ou “diálogo com o mercado”. Isso corrói a legitimidade de qualquer liderança ou governo.
No Brasil, o caso do repasse dos dados do PIX para a Receita Federal é paradigmático dessa crise de confiança do governo. Depois da defensiva com a campanha nas redes sociais da extrema-direita que denunciava que transferências acima de R$5.000 seriam taxadas, os ministros envolvidos abriram a discussão sobre o que fazer.
O principal argumento para recuar da medida, de acordo com a imprensa, foi que não adiantava mais explicar, porque a população não acreditaria no governo…
O governo Lula tem o desafio de recuperar a confiança da população e não basta repetir discursos e palavras. É necessário apontar os problemas e tomar medidas que sejam efetivas, mostrem disposição de enfrentamento e atestem seu compromisso e convicção com o programa, independente de gerar polêmica ou contrariar interesses.
Igor Felippe Santos é jornalista e analista político com atuação nos movimentos populares.
Via Opera Mundi
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