Tentando explicar essa complexa e triste notícia que deve reinflamar e complicar ainda mais as perspectivas de paz de uma guerra civil que já dura 8 anos.
A Casa Branca anunciou ontem (07/10), para surpresa até de membros do Pentágono, que vai retirar suas tropas e assessores militares da Região Autônoma do Norte da Síria.
Esse território é controlado pelo SDF (Syrian Democratic Forces) que é dominado pelo YPG (traduzido do curdo: Unidades de Proteção do Povo), grupo majoritariamente curdo e pelo YPJ (Unidades de Proteção das Mulheres), as famosas rebeldes mulheres curdas — inclusive, está em cartaz nos cinemas um filme sobre elas (Les Filles du Soleil/Filhas do Sol).
O SDF recebeu apoio dos EUA ao se tornar tão importante quanto o próprio governo na luta contra o Estado Islâmico na Síria, tendo inclusive sido responsável pela tomada da capital do Califado: a cidade de Raqqa.
Para os EUA, a “aliança” garantia tanto maior capacidade de enfrentar o Estado Islâmico, quanto maior influência na região. Para os curdos, a aliança era essencial não só pelos equipamentos americanos, mas sobretudo porque a presença militar dos EUA dissuadia ataques do governo sírio e, principalmente, da Turquia — já que qualquer ataque aos curdos seria visto também como um ataque aos próprios Estados Unidos.
Mas por que a Turquia nessa equação? O apoio dos EUA aos curdos e o estabelecimento de um território autônomo controlado por eles enfurece o governo turco que tem como um objetivo estratégico a supressão dessa minoria étnica.
Os curdos são considerados o mais populoso “povo sem nação”, com costumes e uma língua (com vários dialetos regionais) própria (próxima ao Persa, bastante distinta do Árabe e do Turco). Eles são habitantes de territórios fronteiriços entre o Irã, Iraque, Síria e em parte significativa da Turquia, país com a maior população curda.
Além de reivindicarem um país próprio (o Curdistão), eles pleiteiam nos países onde habitam autonomia regional, igualdade de direitos e o direito a falar, publicar em jornais, livros e revistas, ensinar nas escolas e transmitir nos meios de comunicação com própria língua — sim, essas coisas básicas já foram ou até hoje são proibidas para eles.
A Turquia vê os curdos como uma das suas principais fraquezas estratégicas, temendo perder parte do seu território. Por isso, considera como terroristas o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) e o YPG/YPJ. Assim, em janeiro de 2018 já havia invadido um dos territórios controlados por eles, na região fronteiriça de Afrin, e vinha ameaçando tomar boa parte do território da fronteira.
Na Abertura da 74° Assembleia da ONU, o presidente turco Recep Tayyip Erdogan, apresentou e reforçou seu plano de estabelecer uma “Zona Segura” para reassentar os refugiados sírios que estão na Turquia. Na prática, isso significaria um domínio turco sobre as regiões curdas e a diluição das populações curdas com a entrada massiva de refugiados de populações árabes, uma perversa obra de apagamento de um povo.
Como forma de pressão para ter sua invasão aceita, a Turquia ameaçava “abrir os portões”, permitindo que os 3,6 milhões de refugiados sírios que estão na Turquia possam entrar na Europa e se distanciando dos EUA/OTAN ao comprar equipamentos militares russos (como o sistema de mísseis terra-ar S-400 e possivelmente caças russos Su-35 e Su-57). A única coisa que mantinha em cheque os turcos era a existência de militares americanos na região.
No entanto, agora Trump deixou claro que vai trair seus aliados curdos em troca de melhorar relação com a Turquia — que já se prepara para invadir o território a qualquer momento. Não se trata de defender a presença americana na Síria, já que justamente a intromissão dos EUA foi uma das principais impulsionadoras da guerra civil, mas a retirada americana nesse momento e nessas condições só serve para causar mais morte, destruição e para vender a liberdade de um povo.
Não sabemos ainda a extensão do ataque Turco, se será uma pequena incursão em territórios majoritariamente árabes, ou se será uma invasão de larga escala em territórios curdos, como o almejado por Erdogan. De qualquer forma, Trump vai ser diretamente responsável pelo possível banho de sangue e pelos efeitos perversos que essa decisão pode deixar — que inclusive podem significar uma retomada de células adormecidas do Estado Islâmico na região e a possível fuga de milhares de prisioneiros de guerra também do ISIL.
A Síria não merece passar por mais derramamento de sangue, a saída para a guerra civil deve ser pacífica e permeada por uma constituinte que mantenha a integridade territorial do Estado Sírio enquanto restabeleça direitos para toda a população e autonomia para as regiões controladas pelos rebeldes. A ONU estabeleceu em setembro um comitê constituinte com oposição, governo e sociedade civil que pode ser um primeiro passo nesse processo, mesmo que ainda exista necessidade de representações importantes (dos curdos, inclusive). Sigamos do Brasil observando e torcendo para que esses oito anos de horror terminem logo e que as mortes de centenas de milhares de sírios não sejam em vão.
Eduardo Morrot é formado em Direito, estudante de Relações Internacionais da UFRJ e militante da Democracia Socialista.