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Um ano de guerra na Ucrânia: desafios para a esquerda brasileira | Eduardo Morrot

Completou-se recentemente um ano do início da invasão russa ao território da Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro de 2022. Após um mês de intensos combates de movimento, o conflito se consolidou em uma guerra de posições nos territórios do sudeste ucraniano, marcada por lentos avanços russos e pontuais contraofensivas ucranianas.

No seu percurso, a guerra deixou um rastro de destruição: cidades inteiras foram abaixo, famílias perderam suas moradias, milhões de pessoas tiveram de se refugiar e a conta de mortes supera a dezena de milhares de civis e de combatentes de ambos os lados. Seguindo um padrão presente em todas as guerras, intensificam-se a violência e os abusos contra as mulheres, que também são compelidas a arcar com os pesados custos de cuidado gerados pelo conflito, e contra as minorias étnico-raciais, de gênero e de orientação sexual. Como sempre, é a classe trabalhadora, sobretudo jovem, que é convocada para lutar e morrer no campo de batalha pelos interesses das elites político-econômico-militares. Uma geração inteira de russos e ucranianos teve sua juventude interrompida por conta da guerra.

Em âmbito global, a obstrução da produção e exportação agrícola da Rússia e da Ucrânia abalou o abastecimento mundial de grãos, afetando especialmente os países e as populações mais pobres. O estrangulamento dos gasodutos e as sanções ao petróleo russo encareceram os preços dos combustíveis e afetaram especialmente a conta de gás e luz das populações europeias, afetando especialmente os mais pobres, enquanto petroleiras americanas engordam com lucros desse novo mercado que a guerra abriu para elas. Dentro de um panorama pós-pandêmico, a guerra contribuiu para o cenário atual da economia mundial, com aumento da inflação, desaceleração econômica e aumento do endividamento dos Estados e populações.

As causas, o decorrer e os prognósticos da guerra

É necessário retomar as causas do conflito para compreender a guerra e propor saídas. Destaca-se entre elas, é claro, o avanço da OTAN e da UE para os antigos países socialistas do leste europeu, rompendo um compromisso dos EUA de “não avançar uma polegada” sobre a região, afirmado verbalmente no processo de desmembramento da URSS. Se o avanço para o leste europeu já era visto como uma afronta pela Rússia, a entrada da Ucrânia nesses organismos era uma nítida e compreensível linha vermelha para Moscou – que Zelensky e as potências ocidentais pareciam estar dispostas a ultrapassar. Os expurgos russofóbicos na Ucrânia após a Euromaidan em 2014, proibindo partidos comunistas ou ligados à Rússia e constrangendo a população russa residente no país, obviamente também pesaram para a guerra.

No entanto, é errado isentar Putin da responsabilidade sobre a guerra. Ao longo de sua trajetória política, o atual presidente russo fomentou a ultradireita belicosa de seu partido Rússia Unida, garantindo suporte interno para si. Ainda que existam grupos neonazistas na Ucrânia, o argumento da “desnazificação” parece ter sido mero pretexto para a invasão, já que Putin não tem problema em receber apoio de similares na Rússia. Pesa a Putin, também, a intransigência em não aceitar governos não-alinhados à Moscou na esfera da antiga URSS. Além dos casos da Geórgia em 2008 e da Criméia em 2014, mais vinculados a expansão da OTAN, é interessante lembrar da “mediação” russa na Guerra de Nagorno-Karabakh em 2020, que indiretamente serviu para reenquadrar a Armênia na órbita russa. Putin aproveita assim os problemas gerados pela dissolução da URSS para criar arranjos conflitivos que garantem um alinhamento à Rússia dos países da região.

É possível falar, inclusive, em um erro de cálculo por parte de Putin. Se o objetivo original fosse realmente impedir a entrada da Ucrânia na OTAN, bastava uma escalada local nos conflitos da região de Donbass para amedrontar os países europeus da ideia. Com a investida contra Kiev, o objetivo parecia ser realmente uma mudança de governo na Ucrânia. Essa era uma alternativa notavelmente arriscada, já que se configuraria como a maior operação militar da Rússia desde o fim da URSS. Apesar da superioridade de equipamento bélico, a desorganização do exército russo fez com que a conquista de Kiev fosse inalcançável, tornando as colunas russas alvo fácil para as tropas ucranianas e forçando seu recuo frente as pesadas baixas que sofriam. A operação inicial apenas fortaleceu Zelensky e gerou solidariedade à Ucrânia, com os russos tendo que se reorientar para o objetivo secundário de consolidar a região de Donbass.

No cenário geopolítico de crescente conflito sino-estadunidense, os EUA se aproveitaram da invasão para garantir mais unidade interna à OTAN e para sangrar ao máximo a Rússia, armando a Ucrânia e buscando estrangular a Rússia com sanções econômicas e sabotagem, como no caso da explosão dos gasodutos Nord Stream I e II, ao que tudo indica realizada pelos EUA. Em última instância, a intransigência dos EUA e seu objetivo de estender a guerra até uma “vitória” ucraniana visam garantir a continuação da expansão militar de seus aliados ocidentais (sobretudo no caso da Alemanha e do Japão) e a “neutralização” da Rússia, parceira importante da China, colocando-a em um atoleiro econômico-militar que, na visão dos estrategistas estadunidenses, poderia até mesmo gerar uma mudança de regime em Moscou em caso de derrota da invasão.

Hoje, um ano depois, as duas partes se preparam para uma nova escalada do conflito com a chegada da primavera e do verão no hemisfério norte. A Rússia, depois de ter mobilizado novos recrutas e reequipado suas tropas, provavelmente se prepara para uma nova ofensiva, após a conquista de Bakhmut, com o objetivo de consolidar a região inteira de Donetsk. A Ucrânia, que já mobilizou quase toda sua população e vem recebendo fartamente inteligência e equipamentos da OTAN (mísseis, munição, artilharia moderna, veículos de combate etc.), se prepara para repelir os ataques russos e tentar repetir as contraofensivas de Kherson e Kharkiv, dessa vez se concentrando provavelmente na província de Zaporozia, com o objetivo de chegar ao Mar Negro e dividir as tropas russas.

Putin e Zelensky atualmente se mostram mais preocupados em garantir seus objetivos militares do que em buscar a paz. O presidente russo quer, minimamente, consolidar os territórios das quatro regiões da Ucrânia anexadas pela Rússia e, como objetivo final, neutralizar de alguma forma a Ucrânia, garantindo seu alinhamento a Moscou. O presidente ucraniano quer retomar todo o território invadido pela Rússia, incluindo a Crimeia, anexada em 2014. Apesar de todas as mobilizações de guerra, provavelmente nenhum dos dois vai conquistar totalmente seus objetivos nessa próxima etapa – mas muita gente vai morrer por eles. Apesar do desinteresse imediato, os dois presidentes já começam a dar sinais de que estariam dispostos a negociar – tanto para não prejudicar sua imagem junto a países que pedem o fim do conflito, quanto por saberem que, depois de todo o confronto, vão precisar consolidar suas vitórias numa mesa de negociação.

 

A guerra e a esquerda brasileira

Com a eclosão do conflito, a esquerda brasileira se colocou novamente em uma sinuca de bico. Inicialmente, lideranças públicas, como o próprio Lula, deram declarações simpáticas à Rússia. Rapidamente, entretanto, a maior parte das figuras com preocupação eleitoral adotou um tom mais moderado ou evitou falar do assunto, sabendo da má repercussão pública que um apoio a Putin teria – o que era incrementado pelo fato do próprio Bolsonaro ter viajado à Rússia e elogiado Putin nos estágios iniciais da guerra.

Apesar disso, é constatável uma certa simpatia à Rússia na maior parte da esquerda brasileira, desde os setores tradicionais do PT aos diversos partidos comunistas, pautada inicialmente na questão da “desnazificação”, mas centrada hoje na crítica à expansão da OTAN, ao imperialismo dos EUA e na perseguição a partidos de esquerda na Ucrânia. Alguns “porta-vozes” dessa posição acabam por soar quase como “torcedores” de Putin, vibrando com suas vitórias e buscando justificar suas derrotas. Apenas uma minoria da esquerda, com forte influência morenista, adota um tom que, se não solidário à Ucrânia, ao menos centra fortemente suas críticas à Putin. Outros setores parecem ter preferido simplesmente não falar publicamente sobre o assunto, com especial menção àqueles filiados ao Secretariado Unificado da IV Internacional, organização que adotou uma problemática posição de apoio à resistência ucraniana.

Ainda que um apoio à Ucrânia deva estar fora de cogitação para qualquer organização que compreenda o caráter do imperialismo estadunidense e que seria banida na Ucrânia atual, isso não significa um necessário apoio à Rússia de Putin: um líder de direita, conservador e que governa com uma base oligárquica, ultranacionalista e patriarcal. São certamente preocupantes as possíveis repercussões que uma derrota da Rússia poderia trazer para a ordem mundial e para a estabilidade dos países da antiga URSS, mas tampouco uma vitória dele contribuiria para o fortalecimento da esquerda e o bem-estar das classes populares locais – apenas para o fortalecimento do seu regime. O papel central da esquerda é defender aqueles e aquelas que estão morrendo e sofrendo com a guerra, lutando pela sua imediata interrupção – inclusive para que as populações de cada país possam cobrar seus governantes pelo lamaçal de sangue que as meteram.

O Brasil, apesar da posição de Bolsonaro, construiu uma acertada, ainda que tímida, posição sobre o conflito – que combina neutralidade com não-indiferença, seguindo o lastro de tradições construídas ao longo da história da política externa brasileira. Foram acertadas as decisões do país de não aderir (e criticar) às sanções unilaterais impostas à Rússia pelas potências ocidentais, de defender a manutenção da Rússia nos organismos internacionais e de não enviar equipamento militar à Ucrânia, apenas ajuda humanitária.

Hoje, com a liderança e o respaldo internacional de Lula, o país pode se juntar à Índia, China e diversos países do sul global que têm interesse em mediar o conflito. Nesse caso, é importantíssima a proposta de Lula para a criação de um “Clube da Paz”, reunindo países capazes de dialogar com os dois lados do conflito e construir uma solução pacífica para ele. A proposta de Lula também serve ao constranger as lideranças da guerra, pelo apoio que arrasta dos países não diretamente alinhados a nenhum dos lados. Não à toa, o Kremlin emitiu nota afirmando que estudava a proposta e Zelensky prontamente buscou conversar com Lula sobre o tema. Ainda que a interrupção imediata dos combates seja difícil, é urgente ao menos iniciar um ponto de contato entre as partes.

É necessário ter um mínimo de realismo e compreensão de que dificilmente os Estados abrirão mão na mesa de negociação dos territórios que ocupam militarmente, com o foco inicial na cessação de hostilidades. Mas a cada mês que passa aumentam os desgastes para os dois países em guerra e para aqueles que enviam ajuda militar à Ucrânia – com mais mortes, destruição e custos econômicos para as populações. A paz será uma construção demorada e laboriosa, e a resolução total do conflito provavelmente só virá em um momento que nem Putin, nem Zelensky estarão à frente dos seus respectivos países, mas é necessário fazer o que for possível para pôr um fim o mais breve possível ao estado atual. E é papel da esquerda, sobretudo brasileira, de buscar contribuir com isso.

 

Eduardo Morrot é advogado, mestre em Ciência Política pelo IESP/UERJ, militante e analista de política externa.

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