“A partir de 1° de janeiro de 2023, vou governar para 215 milhões de brasileiras e brasileiros e não apenas para aqueles que votaram em mim. Não existem dois Brasis. Somos um único país, um único povo e uma grande nação.” Trecho do discurso do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva.
Nos dois discursos que pronunciou na noite de 30 de outubro, Lula retomou das mais variadas formas a ideia força sintetizada nessas três frases. Depois de quatro anos submetido ao mando de um político faccioso, que se gaba de governar para os seus e se alimenta do ódio, a partir de 2023 o Brasil terá novamente um governo comprometido com o bem comum, com atenção especial aos mais pobres.
Bem definida a missão, resta a pergunta sobre as condições políticas para cumpri-la. Os desafios são muitos, mas um dos maiores concerne ao relacionamento do futuro governo Lula com os militares.
Podemos afirmar, sem medo de erro, que essa relação constituirá um ponto nevrálgico na política do próximo governo – o que exigirá de Lula muita cautela, mas sobretudo o conhecimento requerido para um manejo fino, ainda que necessariamente corajoso, dos problemas na área. Esta afirmativa baseia-se na constatação de que Lula encontrará este campo em estado radicalmente distinto daquele em que se encontrava em 2003, quando iniciou o seu primeiro mandato como Presidente. E esta observação vale também para a situação enfrentada por seu antecessor, ao longo de seus dois mandatos.
Nos dois momentos, o Exército – e as Forças Armadas como um todo – observavam ainda o padrão de conduta que haviam adotado desde a Constituinte. Tendo travado com êxito batalhas defensivas importantes durante a Constituinte, refluíram para um padrão “profissional” de comportamento, mantendo-se relativamente afastadas dos conflitos travados no espaço público (o silêncio durante a crise do impeachment de Collor é emblemático nesse sentido). Sabemos que esse comportamento manifesto se fazia com ranger dos dentes e ocultava, no seio da corporação, movimentos moleculares que iam em direção diametralmente oposta. Refiro-me ao trabalho de construção de uma narrativa laudatória sobre o regime de 64 em tudo oposto ao consenso dominante na sociedade política – narrativa que não se centrava nos êxitos econômicos e sociais real ou imaginariamente logrados pelos governos militares, mas naquilo que havia neles de mais sombrio: a guerra suja contra a oposição de esquerda, a violação sistemática dos direitos humanos em nome da luta sagrada contra o comunismo.
Embora ainda pouco pesquisado (por razões óbvias), esse movimento subterrâneo já foi objeto de estudos esclarecedores, que lançaram luz sobre os temas e os argumentos mobilizados na cruzada, e sobre os atores que a impulsionavam (militares reformados e na ativa com atuação destacada na linha de frente da política repressiva do regime). Esta observação sugere uma hipótese rica de consequências: o processo de construção da memória coletiva das FFAA no período foi liderado, não por representantes ideológicos da elite militar, mas por personagens que habitavam os porões da ditadura.
O outro desenvolvimento relevante no período é a difusão na corporação militar de uma visão conspiratória do mundo, que identifica setores sociais e orientações ideológicas mais díspares como faces distintas de um mesmo fenômeno ameaçador: o globalismo. Concebido como sujeito coletivo, este é o grande inimigo a combater porque trabalha sistematicamente para corroer a identidade cultural da nação brasileira e põe em questão sua soberania territorial (tema da Amazônia). A referência principal aqui, entre os fardados, é o General Sergio A. Coutinho, líder intelectual do combate ao “gramscismo” da nova esquerda e teórico da nova ordem internacional, mas a influência maior vem de fora da caserna, encarnada na figura excêntrica de Olavo de Carvalho.
Não há nenhuma novidade nas indicações acima, mas elas são indispensáveis porque marcam uma das diferenças essenciais no estado do campo militar nos dois períodos. A outra diferença crucial tem a ver com a relação deste com a dinâmica da política brasileira. Em posição defensiva, no contexto de alta mobilização política e social da transição democrática em que apareciam como vilões da história, vinte anos depois os militares voltavam ao proscênio no bojo de uma crise que não fora desencadeada por eles e na qual tiveram papel marginal. Esta crise, que redundou no golpe parlamentar-judicial de 2016, tinha como alvo específico os governos do PT, mas se traduziu em crise geral da representação político-partidária. Há toda uma área de pesquisa a explorar sobre a relação entre o lavajatismo – que deu o tom da campanha pela derrubada de Dilma Rousseff e a criminalização do PT – de um lado, e o discurso simplório, mas bem mais articulado sobre a esquerda gramscista e o globalismo das elites transnacionais. Mas o importante neste momento é outro aspecto: mais ou menos convergentes (o movimento anticorrupção é um fenômeno transnacional empuxado pelas mesmas elites que promovem a agenda globalista), esses dois impulsos – a recuperação da memória do regime militar, com o aggiornamento ideológico que se faz em simultâneo e a denúncia do sistema político como espaço pantanoso onde viceja a corrupção — se alimentam mutuamente e dão identidade política a um grupo nos círculos dirigentes das FFAA – o chamado Partido Militar – que enxerga na crise uma janela de oportunidade para regressar às posições de mando no Estado brasileiro. Bolsonaro – um político inexpressivo, de poucas luzes, escorraçado do Exército em passado então já distante – foi identificado por esse grupo como o instrumento hábil para viabilizar a anisada passagem.
Não vem ao caso discutir neste momento se Bolsonaro funcionou então – e mais tarde – como mero agente deste ator coletivo, ou se ele opera na Presidência com vontade própria. Estou convencido de que a segunda alternativa é a verdadeira, mas isto é irrelevante para o argumento que estou esboçando agora. O importante é que, mandantes ou aliados, os militares foram extremante bem-sucedidos na empreitada. Vemos isso nas vantagens corporativas que lograram nos últimos anos (expansão extraordinária de sua presença na burocracia pública federal; tratamento diferenciado na reforma da Previdência; privilégios na política salarial do setor público etc.), além do tratamento favorecido na definição do orçamento federal.
Esses elementos bastam para nos dar uma ideia do tamanho do problema que vai confrontar o governo de Lula, dando como certo que os resultados eleitorais serão respeitados e Lula assumirá a Presidência em janeiro de 2023, em conformidade com a Constituição nacional.
Com efeito, mesmo que não tenha se traduzido em compromissos explícitos, o governo Lula será informado por um programa para a área da Defesa e da Segurança Nacional que envolve, no mínimo, a restauração do papel antes exercido nela pelo pessoal civil; a redução das vantagens corporativas mais escandalosas dos militares, e a retomada de projetos interrompidos com o golpe de 2016: a consolidação de uma base industrial de defesa, o avanço no sentido da integração regional das políticas de defesa em escala sul-americana.
Agora, para dar qualquer passo na direção desses objetivos Lula precisará se valer de sua autoridade como chefe supremo das Forças Armadas. E o problema é que, dadas as condições antes referidas, esta será certamente acatada com muitas reservas no seio da corporação. E não é de se desprezar a hipótese de que ela possa vir a ser contestada por atos abertos de indisciplina dos quais são pródigas de exemplos as experiências históricas brasileira e latino-americana. Ainda mais quando levamos em conta a forte politização do universo militar nesses últimos anos e o uso bastante difundido nele das redes sociais.
Sendo assim, o prerrequisito para qualquer política que Lula busque conduzir na área é sua capacidade de estabelecer um relacionamento de confiança mútua com um comando militar forte o bastante para disciplinar os seus subordinados. É no limite estreito criado por esta condição preliminar que os objetivos de política antes assinalados deverão ser perseguidos.
Daí a pergunta que nos aflige a todos. Restará espaço para alguns desses objetivos, ou Lula se verá compelido a ceder de antemão em toda a linha, operando como refém de uma corporação visceralmente hostil que lhe cobra a inação como preço para suportá-lo?
Se considerarmos os militares na ativa – em particular a alta oficialidade – como um bloco sem fissuras dificilmente escaparemos dessa conclusão – é impensável o preenchimento daquele requisito se o outro polo da relação estiver ocupado por um bolsonarista empedernido, ou um adepto de Olavo Carvalho.
Mas fazer isso é atribuir a este corpo profissional um grau de homogeneidade político-ideológica superior a exibida pela direção de partidos supostamente coesos, como aqueles construídos segundo a cartilha do bolchevismo.
Acho que estamos – Lula e nós mesmos – face a uma situação pascaliana: não temos certeza de que esse interlocutor benigno exista, mas precisamos apostar nessa possibilidade porque na hipótese contrária nada do que intentamos, ou aspiramos, faz sentido.
O argumento acima é puramente formal, mas creio que ele pode ser reforçado com breves considerações substantivas.
A primeira delas é a natureza mutável dos alinhamentos ideológicos. A história política de qualquer país é rica em ilustrações, e agora mesmo estamos assistindo no Brasil ao espetáculo de reposicionamentos que seriam inimagináveis há bem pouco tempo. Ora, se isso acontece na arena política, onde as tomadas de posição são públicas, por que não aconteceria numa organização profissional, caracterizada pela vigência de fortes incentivos contra qualquer manifestação de dissenso? Mesmo que constatemos hoje uma aceitação quase total nas Forças Armadas ao discurso de seus atuais comandantes, é preciso considerar o grau e a intensidade da adesão a este. E há razões teóricas ponderáveis para postular que ele será bastante variado.
A segunda tem a ver com o fato de que a ideologia é algo muito diferente do modelo de uma teoria científica em que as proposições se encadeiam umas às outras numa lógica inflexível. As ideologias proporcionam marcos de referências que ajudam os agentes a se orientar no mundo, mas o fazem oferecendo-lhes repertórios argumentativos suficientemente diversos e maleáveis para lhes permitir escolhas adaptadas às realidades cambiantes por eles enfrentadas.
Vale dizer, a ideologia é uma dimensão indispensável na análise retrospectiva ou prospectiva, mas ela só esclarece a ação política quando tomada como um elemento da lógica da situação.
A derrota do bolsonarismo para uma coalizão ampla e heterogênea, nacional e internacional, como a que se constituiu em torno da candidatura Lula, provocará uma mudança significativa na configuração da política brasileira, com efeitos sensíveis também nas Forças Armadas.
Sebastião Velasco e Cruz é Professor Titular do Departamento de Ciência Política da Unicamp e do Programa San Tiago Dantas de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UNESP/UNICAMP/PUC-SP.
Via Rede Estação Democracia