Os últimos episódios conjunturais envolvendo o aumento da presença de generais no Planalto, a convocação de manifestações de rua pelo próprio presidente e o acirramento de motins realizados por policiais e milicianos nos estados, lança luz sobre a dinâmica política do governo Bolsonaro.
De um lado, há uma “vanguarda bolsonarista” que trava ruidosamente uma “guerra de movimento” fora das instituições, com a apresentação de um programa máximo de natureza liberal-conservadora, a manutenção de pressões externas sobre o Congresso e o STF e a ideologização permanente de todas as ações e políticas públicas. Aliás, trata-se de um jacobinismo de extrema-direita a fazer inveja para muitos esquerdistas.
De outro lado, há uma “retaguarda militar” que encampa silenciosamente uma “guerra de posições” dentro das instituições, avançando sobre cada posto chave do Estado. A ineficiência política e técnica do governo abre uma possibilidade tática para que os generais tenham suas demandas atendidas. Reforma da previdência militar, reforma da carreira das forças armadas e cargos de confiança para fardados são algumas das pautas corporativas recentemente conquistadas. A propósito, em um arranjo conciliatório de dar dor de cotovelo em muitos civis centristas.
O argumento, entretanto, não justifica falsas ilusões passadistas. A instabilidade civil permanente não vai resultar em um golpe à la 1964 produzindo uma derrota incontornável, não há contexto internacional ou nacional para esse tipo de desdobramento. A nova guerra contra a democracia se trava dentro da própria democracia; lawfare, fake news e milícias são as novidades. Do mesmo modo, a articulação militar incessante não vai ser orientada por arroubos estatizantes e nacionalistas à la 1974 intentando uma salvação repentina. As forças armadas estabeleceram um compromisso estratégico com a alinhamento automático aos EUA, com a entrega dos recursos naturais estratégicos do país e com um pragmatismo associado ao neoliberalismo.
Ler a conjuntura como se estivéssemos na Ditadura Militar talvez seja a tradução inconsciente do desejo de que a vitória nos leve à recuperação do contrato social da Nova República. No entanto, por melhor que tenha sido aquele pacto, e por mais importante que seja defender diuturnamente os direitos que ele assegurou, os tempos são outros.
O pacto constitucional de 1988 foi quebrado, ainda que instável e inacabada, a democracia brasileira se fiava no respeito das instituições políticas às decisões das urnas. Entretanto, desde o questionamento dos resultados eleitorais de 2014 até as desconfianças que pesam sobre o processo eleitoral de 2018, esgarçaram-se os laços que sustentavam o ciclo da Nova República, prova disso é que o presidencialismo de coalizão foi substituído por um presidencialismo de polarização em que o presidente governa sem partido, sem decoro e sem agregar todo o país.
Há por trás dessa dinâmica um ponto cego, obscuro, e que se constitui justamente na relação do governo com milicianos criminosos e policiais amotinados. É muita coincidência que a Casa Civil tenha sido ocupada por um general da ativa, chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas e responsável pela intervenção federal no RJ exatamente quando pesam suspeitas sobre o clã Bolsonaro de manter proximidade, em diversas instâncias, com milicianos e criminosos.
Exatamente por isso não parece absurdo levantar a hipótese de que não é Bolsonaro que está se cercando de generais, são os generais que estão cercando Bolsonaro, pois eles sabem que não é improvável que cedo ou tarde os olavistas que cometem crimes nas redes e os milicianos que cometem crimes nas ruas possam colocar tudo a perder. Nesse caso, o que tem imperado entre todos esses atores não é o monopólio do uso legítimo da força, mas sim a aceitação de um oligopólio do uso ilegítimo da força, por isso a crença no salvacionismo fardado não é uma opção.
O quadro constrange até mesmo a moralidade dos lavajatistas, os indignados da luta contra a corrupção hoje demonstram uma subordinação bovina diante dos mais variados ilícitos. Crimes de corrupção e colarinho branco dentro do governo, infelizmente, foram uma regra da Nova República, mas crimes de rua e banditismo tão próximos ao Planalto são uma triste novidade, preocupam, sobretudo, quando vem acompanhados de elogios por parte de membros da equipe do Ministério da Justiça.
A situação se agrava com os erros e equívocos da política econômica, a equipe econômica se mostra boa de ideologias e bravatas, mas ruim de políticas e resultados. O PIB, o investimento, o consumo, o gasto público e a balança comercial não dão mostras da recuperação adequada; a moeda se desvaloriza continuamente e o emprego se precariza sistematicamente. O supracitado presidencialismo de polarização vai desagradando até mesmo o parlamentarismo de ocasião e algumas alas do mercado.
Em suma, enquanto o presidente faz galhofa e distribui bananas para jornalistas, o Ministro da Economia ofende servidores públicos e empregadas domésticas e o Ministro da Justiça passeia de tanque militar e contemporiza com ilegalidades. O quadro é dantesco, mas, como já se disse, está longe de ensejar o inferno derradeiro, o purgatório ainda deve ser longo.
O ano de 2020, não esqueçamos, é ano eleitoral. No Brasil, com já se disse, as eleições tem acontecido sob a tacão do lawfare, das fake news e das milícias. Se, nas últimas eleições gerais, pela sua natureza nacional, o peso das fake news parece ter sido bastante relevante, não é improvável que nas próximas eleições municipais, pela sua natureza territorial, o peso das milícias se faça presente em muitas cidades. A proximidade entre as urnas e as armas merece alerta redobrado.
Nesse sentido, as oposições à barbárie bolsonarista, devem compreender que o tempo é de composição de forças e não de dispersão de candidaturas. Se partidos, movimentos e lideranças se comportarem como se essa fosse apenas mais uma eleição normal seguindo a lógica da Nova República e do presidencialismo de coalização vão contribuir indiretamente para a pavimentação de uma nova vitória bolsonarista e/ou neoliberal em 2022.
Entretanto, é bom que se alerte, a ampliação de forças nessa conjuntura não significa buscar a recomposição de um “centrão” no sentido tradicional da expressão. A polarização está produzindo uma disjuntiva histórica entre centro institucional e maioria eleitoral. Para atender aos anseios e expectativas da maior parte da população é preciso um programa de transformações econômicas radicais; paliativos, remendos e cosméticos não aproveitarão todo o potencial das tensões e contradições acima descritas.
O que aflige o povo é sua vida material e concreta, as questões culturais e as redes sociais tem importante poder de voto e serão fundamentais, mas as questões econômicas e as ruas tem decisivo poder de veto do qual não se pode prescindir contra um governo cuja dinâmica se aproxima do motim.
William Nozaki é Professor de ciência política e economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.