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Um Mundo sem Racismo é Possível

1 – A Tendência Democracia Socialista e a Questão Racial

O racismo surge no mundo como uma forma de garantir uma dominação política, social e econômica de um agrupamento étnico sobre outro. No caso do racismo em relação aos negros, este surge e ganha força em um período mercantilista, para justificar a escravidão e o tráfico negreiro em um contexto colonial. O Brasil, que viveu praticamente 4 séculos de seus mais de 500 anos de história após a invasão portuguesa sob um regime escravocrata, é um espaço onde a discriminação racial eterniza a posição social ocupada pelas negras e negros, o que se verifica com maior evidência nas dificuldades de acesso ao mercado de trabalho e ao sistema educacional. O estado brasileiro teve – e tem até hoje – um papel decisivo nesse processo, ao entender a escravidão como natural durante muito tempo; ao não criar condições para que os recém libertados após a abolição assumissem suas cidadanias; e ao não reagir à altura frente às estatísticas.

A DS entende que a construção do socialismo passa necessariamente pela superação das desigualdades raciais no mundo. O combate ao racismo, nesse sentido, é uma luta estratégica e um dos elementos programáticos centrais em um país como o Brasil, que concentra a maior população negra no mundo após a Nigéria.

Este texto é uma contribuição de militantes do setorial anti-racismo da Tendência Democracia Socialista do PT aos debates de sua Conferência Extraordinária.

2 – A Luta Anti-Racismo na América Latina

A Pré-Conferência das Américas realizada no Chile como etapa preparatória para a Conferência da ONU em Durban (África do Sul) em 2000 foi um momento importante de aproximação entre o movimento negro e outros povos latinos – em especial os indígenas. Este ano, a realização da “Conferência Santiago + 5” é um momento oportuno para fortalecer laços, realizar um balanço político do último período e pensar ações que nos unifiquem em torno de bandeiras comuns, o que coincide com sinais de uma retomada da capacidade de iniciativa política popular e derrotas eleitorais de forças conservadoras neoliberais na América Latina.

Trata-se, portanto, de um momento ímpar para impulsionar o desencadeamento da transição do domínio absoluto do neoliberalismo para a construção de um outro cenário mais favorável às classes trabalhadoras e a setores oprimidos – em particular negras e negros. Isto será possível através de processos de mobilização internacionais de caráter antiimperialista, aprofundando o impasse que o projeto ALCA vive e fortalecendo a legitimidade do projeto Mercosul de forma ainda mais ampla na América do Sul. A luta contra o racismo deve se dar em sintonia com as lutas mais gerais pela superação das desigualdades sociais na América Latina.

3 – O Governo Lula e a Promoção da Igualdade Racial

A vitória do PT nas eleições presidenciais de 2002 é um reflexo da sede de mudanças por parte do povo brasileiro, um desdobramento do alcance do PT como um patrimônio sem precedentes históricos para a classe trabalhadora e os setores oprimidos no país, e portanto a derrota de uma forma de governar que predominou na política brasileira nos últimos 8 anos. Ao mesmo tempo, as forças conservadoras mantêm o controle sobre outras fatias do poder, como o legislativo, o judiciário ou os meios de comunicação, buscando se reorganizar para a disputa do governo federal tendo como pólo aglutinador o PSDB. Foi nesse contexto que o setor majoritário no PT e no governo optou por medidas de conciliação com as “forças do mercado” e evoluiu de uma forma contraditória até os dias atuais.

Pensar um Brasil melhor para negras e negros exige de nossa parte dois esforços:

  1. Uma política econômica capaz de condicionar os avanços sociais que podemos alcançar;
  2. A garantia de políticas específicas que possibilitem nossa inclusão, nos garantindo a conquista definitiva da cidadania plena, e isto passa necessariamente pelo sucesso da Seppir (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial);
  3. A política econômica conservadora aplicada pelo governo federal expressa o prevalecimento da subordinação do país aos ditames do capital, enfraquecendo ainda mais o estado em relação ao mercado. O Banco Central e o Ministério da Fazenda, respectivamente responsáveis pela política de juros altos e pela política de superávits primários, bloqueiam a capacidade do governo investir em seus programas de inclusão social – dentre os quais o programa “Brasil sem Racismo”.

A Seppir é um fato inédito na história política brasileira, um organismo sem equivalente no mundo todo. A sociedade em geral e o movimento negro em particular receberam com simpatia a criação de um órgão específico cuja tarefa é a promoção da igualdade racial, justamente pelo formato inovador que este órgão possui, uma vez que a Fundação Palmares estava ligada ao Ministério da Cultura, de acordo com a equivocada concepção que lê o racismo como um fenômeno meramente cultural, e portanto não estrutural. Com o tempo, a Fundação Palmares acabou ganhando novas funções que estariam fora do tema cultura, o que a sobrecarregou, ultrapassando a capacidade de dar respostas que a sua própria estrutura de organização permitia. A Seppir, além de possuir maior peso político para dentro do governo e expressão pública para fora perante a sociedade, nasce de uma outra concepção: deve ser um órgão que organize e desencadeie ações anti-racismo e de promoção da igualdade racial, incidindo no conjunto de governo através dos seus ministérios.

É preciso uma enorme mobilização social, que aprofunde a conscientização e politize cada vez mais o debate anti-racismo, para a disputa de hegemonia na sociedade e a legitimação de nossas medidas específicas perante um governo que tem em seu arco de alianças uma imensidade de partidos políticos que não possuem um histórico de contribuição com este debate (que entra diretamente em choque com seus programas), contando inclusive com o pressuposto de que algumas questões mais polêmicas encontram resistência dentro do próprio PT.

3.1 – Desenvolvimento Étnico-Sustentável aos Remanescentes de Quilombos

Uma das vitórias do movimento negro em 1988, quando organizou uma mobilização de enfrentamento às comemorações do centenário da abolição pelo governo Sarney, questionando assim a “história oficial” e o mito da democracia racial, foi a inclusão na Constituição Federal do reconhecimento da propriedade definitiva da terra às comunidades remanescentes dos quilombos. Ficou determinado ao estado brasileiro “emitir-lhes os respectivos títulos”. Conforme delegação do governo brasileiro, caberia à Fundação Palmares identificar, demarcar e titular estas áreas.

Nos 14 anos que se passaram de 1988 até o término do governo FHC, o que se viu foi uma lentidão que beirava a paralisia total. Das 1.000 comunidades catalogadas oficialmente (o movimento negro entende que este número é 3 vezes maior), apenas 18 receberam seus respectivos títulos da Fundação Palmares, o que representa muito pouco: 1,8 % do total. Isto sem mencionar a questão da Base de Alcântara, que para além de ser uma agressão à soberania nacional é também um desrespeito à Constituição Federal, uma vez que naquela área reside uma comunidade remanescente de quilombo.

O governo Lula tem o papel de acelerar o processo de titularização destas comunidades, cumprindo à risca o que manda nossa Constituição e respeitando e reconhecendo um legado de luta contra a escravidão e pela liberdade. Mais do que isto, cabe ao governo desenvolver projetos de economia popular solidária junto a estas comunidades, assegurando a elas o legítimo direito à sobrevivência e à autodeterminação. As metas de titulação das terras dos Remanescentes de Quilombos (os Quilombolas) só serão atingidas pelo MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário) a partir do fim nos cortes orçamentários e do aumento dos investimentos sociais, o que pressupõe a mudança na política econômica.

4 – A Disputa de Rumos do PT

A Secretaria de Combate ao Racismo do PT é uma conquista de negras e negros no interior do partido, um instrumento fundamental para a organização de uma intervenção do PT no movimento negro e para que o PT assuma por inteiro nossa contribuição programática específica em sua formulação mais geral. Ao longo dos últimos anos, nosso setorial esteve ativamente presente aos debates, mobilizações e eventos partidários com a sua contribuição, o que culminou com a elaboração do programa “Brasil sem Racismo” durante a campanha de Lula em 2002 e apontou para a construção da Seppir e a indicação de Matilde Ribeiro para ocupar o posto de Ministra. A DS foi construtora de primeira hora deste setorial, sendo portanto parte deste movimento desde sua origem até o momento atual.

Ao longo dos últimos anos, o PT vem vivendo uma crise de valores, o que fica muito claro no rebaixamento de seu programa, nos ataques contra a sua democracia interna e pluralidade e na sua dependência e atrelamento ao governo. A Secretaria de Combate ao Racismo é parte integrante do partido e vem sofrendo junto com ele os ataques a valores históricos e os recuos programáticos. Seu coletivo nacional nunca se reuniu com a equipe da Seppir, se limitando a assistir as ações do governo federal. É necessário reconduzir nosso setorial ao seu papel de direção e independência política, acompanhando o processo mais geral de disputa de rumos no PT. O PED é um momento único para este debate.

5 – O Movimento Negro e sua Agenda de Lutas

O ano de 2005 foi estabelecido por decreto do presidente Lula como o Ano Nacional da Promoção da Igualdade Racial. A Seppir, juntamente com a sociedade civil, estará realizando “Conferências Estaduais” até o final de abril e em junho a “1ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial”. Isto faz do 1º semestre um período de questionamento a governos estaduais e a Prefeituras Municipais acerca de suas políticas de superação da igualdade racial, além de proporcionar um balanço dos 2 anos do governo Lula, apontando diretrizes para o próximo período e atualizando assim o nosso programa. Será uma oportunidade inédita para desmascarar o caráter racista que orientou as ações do poder público historicamente e a necessidade de reversão deste quadro.

O segundo semestre, por sua vez, será palco das mobilizações para a “Marcha Zumbi + 10”, repetindo o feito de 1995, quando o movimento negro levou mais de 35 mil pessoas à Brasília, tencionando o governo FHC e encaminhando algumas de nossas demandas. Foi um importante momento na história da resistência negra no Brasil, onde ficou evidente o caráter conservador e racista do governo FHC. O ano 2005 será palco de novas mobilizações, que passam pela construção de comitês de base para a articulação de um amplo movimento que vislumbra dar ainda mais visibilidade para nossa luta, atraindo o foco do Governo Lula para a importância das políticas públicas de promoção da igualdade racial e assim fortalecendo o trabalho da Seppir, reforçando a necessidade de sua existência. A unidade política em torno desta proposta é que vai assegurar nossas conquistas pontuais e possibilitar o acúmulo de forças para novas conquistas.

A participação popular é uma das formas de reverter à força da direita no Congresso nacional, impedindo que o governo fique refém de suas politicagens. Para tanto, o governo deve dividir a responsabilidade de governar com a população organizada. Neste sentido, destaca-se também o peso fundamental a ser jogado pelo movimento e pelo governo no Conselho Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. O caráter do governo Lula se define em um processo de disputa política pela hegemonia.

5.1 – O Socialismo no Horizonte

Esta agenda – das Conferências e da Marcha – deve ser encarada segundo alguns valores e princípios programáticos. As ações afirmativas em geral, ou a política de cotas especificamente, são ações emergenciais, estando, portanto dentro dos marcos do sistema capitalista. Isto nos remete a nos posicionarmos diante do dilema das cotas fazendo um duplo movimento, que não nos coloque na contramão da história ou em posições reacionárias, abrindo mão de um avanço gradual que é o que é possível de imediato, mas nos inserindo na discussão de forma crítica, sem sermos arrastados pela enxurrada reducionista que vê neste tipo de política a solução milagrosa para todos males que afligem os negros e as negras no Brasil. O debate sobre ações afirmativas em geral deve se dar em um processo cujo horizonte estratégico seja o socialismo.

O movimento negro não pode deixar de considerar a importância de um programa amplo, que aponte, por exemplo, a Saúde da população negra (e suas especificidades); as Relações Internacionais com a África; a valorização de nossa Cultura; a impacto do conjunto das reformas que o governo fez ou pretende realizar; a importância da participação popular; a necessidade de reorientação da política econômica, como elementos fundamentais. Mesmo em relação ao mercado de trabalho e a educação, é possível que se faça muito pela população negra para além da política de cotas, que não dará conta de fornecer sozinha todas as respostas necessárias, ficando aquém e não se posicionando à altura de nossas inúmeras demandas. Uma análise despida de dogmatismos nos mostra que o capitalismo é na verdade um meio cujas características – como o individualismo ou a competição, acirrado por um momento de predomínio da política neoliberal – potencializam a reprodução do racismo, portanto criam condições para sua perpetuação. Se é correto afirmar que o problema do racismo não se reduz a uma questão de classe, é também correto afirmar que os negros são a maioria entre os trabalhadores e as trabalhadoras, entre excluídos e excluídas em geral no Brasil. Assim, a luta contra o racismo se articula necessariamente com uma luta mais ampla pela superação do capitalismo.

Assinam:

Adriana Perdomo – Direção da DS de Porto Alegre/RS; Adriano Bueno – Coletivo Nacional da Secretaria de Combate ao Racismo do PT; Ainda Matine – Agente Educacional de Araraquara/SP; Daniel Alves (Ciro) – Movimento Hip Hop de Campinas/SP; Fernando de Souza – Conselho de Usuários de Transp. Coletivo de Araraquara/SP; Gilson da Silva – Ministério das Cidades/Governo Federal; José Lopes (Nei) – Movimento Hip Hop de Araraquara/SP; Jorge Carneiro – SEPPIR/Governo Federal; Jorge Nascimento – Secretaria de Economia Solidária/Governo Federal; Jorge Sena – Coletivo Estadual da Secretaria de Combate ao Racismo do PT/RS; Luiz Fernandes – Sociólogo/MNU do Rio de Janeiro/RJ; Márcia Santos – Secretária Estadual de Combate ao Racismo/RJ; Marcio Oliveira – Núcleo Negro do PT de Porto Alegre/RS; Miguel Ramos – Movimento Hip Hop de São Paulo/SP; Moisés dos Santos – Movimento Hip Hop de São Paulo/SP; Quener Chaves – PT de Canoas/RS; Ricardo Silva – Coordenadoria de Participação Popular – Araraquara/SP; Sandra Mara Oliveira – Núcleo Negro do PT de Porto Alegre/RS; Verônica Veiga – Movimento Hip Hop de Campinas/– SP; Ubirajara Toledo – PT de Porto Alegre/RS.

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