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Um novo bloco histórico?

Mais do que a polarização de duas coalizões lideradas por PT e PSDB, as eleições de 2010 podem gerar uma nova dinâmica de luta de classes, de relação do Estado com a economia e um novo centro de estruturação do sistema partidário. Além de a expressão política e a base social do neoliberalismo estarem em uma situação defensiva, há potencial de crescimento das lutas classistas e populares em direção a um novo programa de transformações do país.

O ano de 2009 chega ao seu final com potencialidades promissoras para quem trava a luta democrática a partir de uma perspectiva socialista. É que, além do fato de a expressão política e a base social do neoliberalismo estarem em uma situação francamente defensiva, há um claro potencial de transcrescimento das lutas classistas e populares em direção a um novo programa de transformações do país.

O principal fato que organiza a conjuntura política continua a ser a incontornável popularidade do governo Lula, que está longe de ser, como interpretam alguns, um fenômeno personalista. Ela tem bases sociais, em partidos e coalizões, assenta-se em um conjunto de iniciativas políticas de grande envergadura, em um dinamismo crescente e, além disso, confirma-se claramente no plano internacional.

A própria situação muito defensiva da oposição neoliberal, liderada pelo PSDB, de seus porta-vozes na mídia empresarial, é uma evidência maior dessa dinâmica política ascendente. A desistência anunciada por Aécio Neves da candidatura à presidência do país está longe de ser um trunfo para a candidatura de José Serra: envolvida em um simbolismo negativo, não fruto de uma unidade, mas de impasse, ela prenuncia as dificuldades do atual governador de São Paulo em costurar uma unidade eleitoral e em disputar o segundo maior colégio eleitoral do país, Minas Gerais. O escândalo de corrupção que atingiu em cheio a principal liderança pública do DEM – o governador Arruda, de Brasília – tem revelado conexões fortes com empresas contratadas e operadores do governador do PSDB paulista.

Nem a dinâmica política atual anuncia uma provável dispersão eleitoral da base atual do governo Lula, como fruto das candidaturas eventuais de Ciro Gomes, pelo PSB, e de Marina Silva, pelo PV. Pelo contrário, os últimos meses têm sido marcados por uma dinâmica clara de afirmação da potência política e eleitoral da candidatura Dilma.

Essa dinâmica política, de conjunto, não deveria, no entanto, legitimar uma postura triunfalista, de dar por vitoriosa a luta político-eleitoral de 2010, antes mesmo de ela ter sido travada. Ao contrário, ela precisa ser mais bem compreendida para que suas resultantes reflitam todo o potencial de avanços possíveis.

Uma nova dinâmica de classes

O auge do período neoliberal manifestou-se pela supremacia do poder político dos capitais financeiros, com suas conexões internacionais, por uma condição subordinada dos capitais produtivos, pela situação defensiva das classes trabalhadoras e por um forte aviltamento da condição humana daquelas populações cuja sobrevivência depende diretamente das políticas públicas universalistas.

A crise econômica internacional, que atingiu um ponto de aceleração em 2008, evidenciando a crise no centro da geopolítica do neoliberalismo, os EUA, indicou que novas dinâmicas de luta de classe estavam abertas. Em particular, na América Latina e no Brasil, onde forças de esquerda e progressistas haviam alcançado um protagonismo político maior, essas novas dinâmicas de luta de classes apontavam claramente para a conquista possível de um período pós-neoliberal.

No Brasil, as eleições de 2010 podem encerrar o período neoliberal e abrir uma nova conjuntura estruturada pelo que vem sendo chamado de revolução democrática, isto é, a possibilidade de se alcançarem democraticamente transformações estruturais na vida política, econômica e social do país.

A principal mudança econômica em jogo é exatamente a mudança de regulação dos capitais financeiros através de uma nova configuração institucional republicana do Banco Central, acompanhada do reposicionamento estratégico dos bancos públicos. O Brasil foi tragado abruptamente pela dinâmica da crise, em outubro de 2008, exatamente pela via do crédito, frente à política catastrófica de elevação dos juros pelo Banco Central e pela ausência de regulação dos capitais financeiros privados, que elevaram os juros e enxugaram os canais de crédito, mesmo com a liberação dos depósitos compulsórios.

Hoje, a continuidade da direção neoliberal do Banco Central, em disputa com a opção desenvolvimentista e distributivista do Ministério da Fazenda, continua sendo um eixo a partir do qual os capitais financeiros privados e internacionais procuram se reposicionar frente a uma conjuntura adversa: iniciando uma nova campanha pela elevação dos juros básicos da economia em 2010, disputando diretorias do BC, fazendo carga contra medidas que inibam a valorização do real e a maior exposição cambial do país, em uma nova conjuntura de crescimento econômico forte. O próprio DEM chegou a liderar, no Senado, a aprovação de uma proposta que visava a institucionalizar a autonomia operacional do Banco Central em relação ao poder soberano do presidente da República!

Enquanto a direção do Banco Central e seu funcionamento institucional estiverem nas mãos dos financistas, uma dinâmica plenamente desenvolvimentista e distributivista não poderá se assentar em todo o seu potencial. Ou seja, toda uma nova lógica transformadora de classes, de seus poderes instituídos no Estado brasileiro, continuaria, pelo menos, parcialmente travada, pelo efeito que o manejo dos juros e do câmbio tem sobre toda a dinâmica e a estrutura relativa de preços da economia.

Hoje, na dinâmica que se seguiu à crise, o poder neoliberal do BC e dos financistas privados é, proporcionalmente, muito menor do que tinham. Seria necessário agora assentar as bases de uma transformação qualitativa, uma nova correlação de classes, que favoreça as classes trabalhadoras e os oprimidos. Enfim, posicionar estruturalmente na defensiva as forças do capital financeiro, alargar os espaços de investimento produtivo e, sobretudo, incentivar uma ofensiva estratégica das classes trabalhadoras e uma elevação qualitativa dos padrões de direitos dos setores mais pauperizados.

Democracia e transformações estruturais

O segundo mandato do presidente Lula conheceu uma contradição que se tornou típica dos governos nacionais progressistas na história republicana brasileira, em particular, na trágica experiência do governo Goulart. Isto é, a defasagem entre a popularidade dos mandatos executivos, democraticamente legitimados, e as posições de força dos setores conservadores no Congresso Nacional e também na mídia.

Apesar de somar mais de 70% em ótimo e bom – um recorde histórico jamais alcançado por qualquer outro governo nacional –, o governo Lula está muito longe de ter maioria para aprovar leis progressistas no campo trabalhista, agrário ou tributário. Se no período pré-64, as estruturas clientelistas somadas ao fato de que uma grande parcela da população pobre, analfabeta, não tinha direito de voto, explicavam esse fenômeno, hoje, isso se dá centralmente devido ao poder econômico no financiamento eleitoral e às campanhas de mídia empresarial.

Frente a essa contradição, o que o governo Lula tem feito é ampliar pragmaticamente suas coalizões partidárias e utilizar largamente o poder de iniciativa e patronagem do poder executivo central. Mas não sem grandes contradições, como a de ficar refém, por exemplo, da chamada bancada ruralista em relação a iniciativas decisivas no campo da reforma agrária.

De fato, o sistema partidário eleitoral brasileiro carrega hoje um forte déficit em relação às mínimas demandas progressistas, o que evidencia uma crise de legitimidade devido à recorrência de escândalos que escancaram o padrão anti-republicano de seu funcionamento. Há, pois, uma contradição democrática no centro da experiência brasileira atual e que precisa encontrar um caminho de superação. A reforma política – financiamento público de campanha, fidelidade partidária e voto em lista, institucionalização de mecanismos de democracia participativa, reforma da função e da representatividade do Senado – vem sendo apontada como um vetor indispensável de democratização do Estado brasileiro.

Já ficou claro que um encaminhamento meramente parlamentar não é suficiente para viabilizar tal reforma, até porque ela incide centralmente sobre disfunções e privilégios do próprio parlamento. Ela só pode crescer se for às ruas e se for vinculada à defesa das grandes transformações estruturais ansiadas pelo povo brasileiro. A chamada Consolidação das Leis Sociais, já anunciada pelo governo Lula, é uma dessas grandes reformas que funda no centro da institucionalidade uma dinâmica crescente e progressiva de afirmação e universalização de direitos.

Nova cultura e socialismo democrático

Faz parte da compreensão clássica dos autores marxistas, em particular, de Antonio Gramsci, que grandes transformações de estrutura social demandam um novo campo hegemônico, isto é, uma vasta luta político-cultural em torno a novos valores e racionalidades de civilização alternativas ao paradigma liberal.

Desde o início da crise de legitimidade do neoliberalismo no Brasil, tem havido fortes movimentos de mudança de consciência: de autoconfiança e identidades classistas e populares, de nova inserção da identidade nordestina no cenário nacional, de afirmação dos direitos dos negros, uma indicação de expansão social das mulheres nos planos da educação e do trabalho, dos direitos dos gays, de consciência latino-americana e, principalmente, de consciência ecológica. Todas as iniciativas do governo Lula tomadas no campo ecológico e que culminaram em seu protagonismo central na recente Conferência de Copenhague revelam esse dinamismo da opinião pública.
Esse crescimento de consciência tem sido feito em contraste com os pontos de vista liberais. É mais do que um fenômeno conjuntural, deste ponto de vista, a situação de crescente perda de audiência da mídia liberal-conservadora.

É preciso que ganhemos consciência de que estamos envolvidos em uma dinâmica histórica muito ampla de transformação de identidades e de consciências. Daí a necessidade da identidade do PT nas eleições de 2010 expressar-se publicamente como relacionada aos valores e perspectivas do socialismo democrático. É preciso que este processo histórico muito amplo e plural de formação de consciências e identidades ganhe consistência utópica, formulando sistematicamente alternativas de civilização para além da vida organizada pelos valores mercantis e pela autocracia do grande capital.

Uma nova configuração da dinâmica de classes, uma nova configuração das instituições democráticas da representação e da participação, uma nova cultura de emancipação: a conjuntura das eleições de 2010 pode ser o caminho de passagem para uma dinâmica aberta de revolução democrática.

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