Ao texto publicado no dia 13 de julho, próximo passado, acrescentamos outras questões da maior relevância.
Esta é a contribuição que apresentamos à proposta inicial do “Plano de Transformação do Brasil”, em elaboração pela Fundação Perseu Abramo, a pedido da direção nacional do PT. No final de julho o Diretório Nacional deverá aprovar um documento que será base para uma ampla discussão pública sobre o Programa, tanto do ponto de vista de uma visão de futuro, como de um plano emergencial para sair desta crise sanitária, econômica, política.
A luta pelo fim do governo da extrema-direita é, ao mesmo tempo, o período de disputa por um novo governo. Essa é a interpretação mais clara que devemos dar às lutas políticas em curso e articula-las com as eleições municipais.
Não há fim de um governo sem o potencial surgimento de outro. E, sem essa condição fundamental, porque haveria mobilização para por fim a um governo? Para colocar o que no seu lugar? Esse tem sido o impasse que ainda tem mantido uma base minoritária mas significativa de apoio ao bolsonarismo.
A disputa democrática por um novo governo manterá a polarização social “clássica” que deu sentido às eleições presidenciais desde 1989. E conseguiremos voltar a disputar a maioria nacional para a esquerda. Essa é a questão que nos desafia.
A construção de campos claros na disputa política é uma das condições para a vitória. A medida da vitória não estará apenas no resultado imediato da luta pelo impeachment e pela convocação de nova eleição, mas sobretudo na capacidade de falar para a classe trabalhadora empregada, desempregada e subempregada vivendo sob a ameaça da pandemia e de um mercado de trabalho com cada vez menos empregos, mas que tem coragem de lutar, como mostrou a recente mobilização dos trabalhadores de aplicativos. É preciso disputar os rumos da oposição crescente a Bolsonaro para a esquerda. E tocar no coração do povo.
Se a luta por um novo governo dá sentido à luta pelo fim do governo Bolsonaro, se o programa deste novo governo insere-se nesta luta democrática ao indicar uma saída democrática e popular à crise devastadora vivida hoje pelo país, é necessário estabelecer claramente desde já que a realização deste programa dependerá da — e por isso mesmo esse é um objetivo central — democratização do poder.
Desde o impedimento ilegítimo e ilegal perpetrado contra a ex-presidenta Dilma, a coalizão golpista impulsionou uma série de alterações constitucionais, novas legislações ordinárias, mudanças institucionais, privatizações e novas jurisprudências que visam exatamente impedir um novo governo de transformações democráticas e populares no Brasil. Um novo governo democrático e popular exigirá o fim da EC-95, que cria um novo regime fiscal duradouro escandalosamente financeirizado, a revisão das novas legislações que atacam profundamente os direitos dos trabalhadores, o restabelecimento dos controles sobre a predação do meio-ambiente e dos mecanismos de participação popular no governo. Não será possível governar com a tutela militar e a militarização do poder, o intenso grau de judicialização das decisões autocraticamente tomadas pelo STF muito além da sua função democrática de controle restrito da interpretação da Constituição.
A luta por um novo governo é o eixo através do qual as forças democráticas e populares acumulam forças, alteram a correlação de forças institucionais, reorganizam as bases do protagonismo dos trabalhadores e dos setores populares e estabelecem uma nova legitimidade para transformações democráticas profundas do poder.
Um novo governo do país conduzirá imediatamente a aplicação de um plano de emergência para dar conta da calamidade pandêmica, de desemprego e forte crise econômica, além do agravamento da violência policial e da destruição ecológica. Será necessário um plano sanitário de emergência, centralizado na autoridade do SUS, com financiamento extraordinário; a adoção de uma renda básica com referência no valor do salário-mínimo para dar conta de uma situação extrema de desemprego e precarização, medidas nacionais de controle e punição da violência policial, o restabelecimento do controle e punição da predação ambiental, em especial na Amazônia, além de medidas fortes de intervenção estatal no crédito e no investimento público para a retomada da economia. Esse processo não pode ser desligado de amplas e profundas transformações. Ao contrário, é o seu início. E a clareza do que disputamos é fundamental para não pararmos — ou sermos parados — no meio do caminho.
A batalha que se trava entre os campos políticos de classe é a batalha do programa. O Brasil — e o mundo também — está mais desigual e excludente, com a democracia por um fio, sem soberania nacional, sem desenvolvimento econômico e sob destruição ambiental. Mais do que bastar-se com a defesa do legado — na verdade, dos seus melhores momentos — dos governos do PT, cabe mobilizar esse legado para dar credibilidade aos novos enfrentamentos necessários. Precisamos atualizar diagnósticos e alternativas. A crise que atravessamos abre caminho para propostas ousadas em todos os campos.
A ruptura com o neoliberalismo exige uma forte presença do Estado, uma nova institucionalidade macroeconômica e um novo BC (nesse caso, pode-se até usar, em alguma medida, a definição do FED nos EUA), com o fortalecimento dos bancos públicos e do setor produtivo estatal (Petrobras e outros), além de estímulo à ciência, tecnologia, inovação e pesquisa. Isso deve implicar em reestatizações, em investimentos em setores estratégicos e em forte direcionamento da economia.
Não basta fortalecer o Estado. Se ele não for simultaneamente democratizado, suas estruturas de poder — conservadoras por sua própria natureza de dominação de classe — impedirão mudanças. O Estado acima da sociedade civil e cada vez mais um comitê de negócios das classes dominantes — produto do desenvolvimento do capitalismo — precisa ser subordinado à sociedade e desprivatizado. A construção de um Estado plurinacional, igualitário, anti-patricarcal e anti-racista, exige a consolidação de uma cultura política democrática na sociedade, uma soberania nacional sólida pressupõe uma soberania popular forte.
Ao mesmo tempo, a própria sociedade civil precisa ser democratizada. Trata-se da sua “superestrutura” oligarquizada e mercantilizada — como são a educação, informação e os meios de comunicação — mas também da desigualdade de propriedade e renda no “chão” da sociedade. Esse é o terreno onde se ergueu de forma imbricada, inseparável, a moderna sociedade capitalista dependente. No interior dessas relações sociais viceja o racismo e o machismo, moldando uma sociedade não só de exploração capitalista e de subordinação ao imperialismo, mas de superexploração e opressão às mulheres e à população negra.
Radicalizar a democracia: essa ideia tão forte compreende, portanto, Estado e sociedade. Ao mesmo tempo, a conquista da democracia é uma luta politica.
Essa perspectiva faz todo o sentido para o PT, que na sua origem proclamava que “A mais importante lição que o trabalhador brasileiro aprendeu em suas lutas é a de que a democracia é uma conquista que, finalmente, ou se constrói pelas suas mãos ou não virá.” (Manifesto de fundação do PT, 1980).
As lutas democráticas no Brasil, desde a derrota da ditadura, encontraram dois limites, o da estrutura social e o da estrutura de poder propriamente dita. Recuperar essa visão crítica e totalizante é fundamental para o programa necessário hoje. Isso quer dizer, em especial, superar a condição de ala esquerda da democracia liberal. Mais do que democratizar a ordem liberal, é preciso supera-la democraticamente. Essa é a perspectiva do socialismo democrático, que deve orientar nosso programa.
Em um programa democrático radical, a democracia participativa — como mobilização de maiorias para participar das decisões políticas e construção de novas instituições de poder — e o máximo da democracia representativa, a Constituinte, devem se combinar como movimentos e objetivos. A participação popular deve ser elevada à condição de arena de deliberação e não apenas de consulta.
O centro programático desta frente democrática e popular é a combinação da defesa da democracia e dos direitos sociais intensamente atacadas pelas políticas e reformas econômicas neoliberais. Separar a defesa da democracia da luta contra as políticas de austeridade é corroer a sua base popular o seu próprio sentido. Esta frente democrática e popular não separa, mas integra as lutas pela liberdade e pela igualdade.
A construção da soberania popular mobiliza dimensões políticas fundamentais com base nos protagonismos das classes trabalhadoras, das mulheres, do povo negro, dos indígenas, da comunidade lgbti, para superar as dimensões históricas e estruturais do Estado capitalista patriarcal e racialista no Brasil. A formação de um bloco programático de esquerda com força social e parlamentar deverá ser sua expressão e impulsionar especialmente:
— a participação direta nas decisões públicas e a ampla reforma política do Estado;
— a democratização dos meios de comunicação e do processo de formação da opinião pública;
— a luta anti-corrupção sob controle democrático da população com o combate às relações corruptoras dos bancos e grandes capitalistas em relação ao orçamento público e às instituições;
— a desmilitarização do poder;
— a construção da economia do setor público, que crie as bases efetivas para um planejamento democrático da economia do país, com forte distribuição de renda e sustentabilidade ambiental;
Esse movimento político abre um novo ciclo de transformações históricas do país.
A atualização programática anticapitalista em tempos de pandemia
A escolha de Porto Alegre pelos organizadores do primeiro Fórum Social Mundial (jan. 2001) não foi aleatória. A razão da escolha estava na radicalidade da experiência de governo na capital e no Rio Grande do Sul baseada na democracia participativa.
Se o objetivo do Fórum era confrontar Davos e o neoliberalismo dominante, o melhor símbolo deveria ser a democracia participativa, a participação direta da população na definição das políticas públicas e do orçamento municipal.
O Orçamento Participativo (O.P.) tornou-se um ponto de programa consensual dos que defendiam que “outro mundo seria possível”. A experiência demonstrava que além da democratização da decisão sobre os gastos e políticas públicas, ali se ensaiavam novas formas de participação e deliberação que iam além da burocratizada e elitizada democracia representativa. Na prática concreta vivia-se, nas reuniões e fóruns regionais, e nos espaços temáticos que se foram criando, a experiência inovadora que apontava como possível a construção de uma nova institucionalidade a desafiar os programas partidários da esquerda.
A conquista da presidência da República e a política de alianças adotada, buscando governabilidade via alianças congressuais e coalizões governamentais com o centro e até a centro-direita foi solapando, de fato, que essa proposta permanecesse e fosse defendida, inclusive, noutra perspectiva de sustentação político-social. No primeiro mandato de Lula ensaiou-se uma experiência de participação popular via a estrutura dos conselhos temáticos já existentes e que por legislação estão capilarizados nos Estados e municípios, inclusive, com funções de fiscalização e controle e que continuam existindo, com experiências variadas de participação popular mas sem avançar no sentido da deliberação.
Apesar de alguns processos positivos de participação popular nos encontros, conferências e conselhos setoriais (saúde, educação, habitação popular, etc.) a experiência foi sendo abandonada e substituída pela tradicional negociação congressual e pelo fortalecimento das famigeradas e corruptoras “emendas parlamentares”.
A constituição de uma frente de esquerda que ampliasse e sustentasse, junto com movimentos sociais e sindicais, uma experiência desse tipo sequer foi tentada.
O realismo da relação de forças no Congresso e nas Assembleias e o pragmatismo governamental levou-nos a abandonar uma prática política que nos educaria, nos exigiria enfrentar a crise teórica e programática da esquerda mundial no séc. XX, no campo da representação política e na gestão pública.
No novo ciclo histórico que se abre e cujo sentido está em disputa faz-se necessário considerar: a participação popular com poder de deliberação, tanto no planejamento das prioridades de políticas públicas quanto na definição da execução orçamentária. Além disso, as novas tecnologias podem viabilizar mecanismos inovadores de participação contemplando tanto a sociedade civil organizada quanto a não organizada.
Vimos ruir ou estagnar as experiências burocráticas e autoritárias dos Partidos únicos e/ou o afastamento crescente dos partidos de esquerda nos governos de uma perspectiva socialista, pela manutenção de práticas capitalistas e de acumulação de capital que reforçou a subordinação à lógica capitalista.
A rendição ideológica e programática ao neoliberalismo fez com que a maioria das experiências de governo no campo da esquerda aceitasse e até praticasse as políticas de privatização de empresas públicas, de bancos, das áreas de serviço essenciais como água, energia elétrica, portos, aeroportos, telecomunicações, transporte público, saúde, educação, etc. E repetisse a política e a ideologia tradicionais, atribuindo à responsabilidade privada — à cargo das famílias e, sobretudo, das mulheres — o peso fundamental da reprodução social e do cuidado. Não avançamos – nas experiências da esquerda mundial – em novas formas de gestão pública desses setores com participação dos trabalhadores e com controle público dos usuários.
Da mesma forma, há um atraso histórico na elaboração teórica e nas experiências de uma nova institucionalidade política. Não vamos avançar nessas formulações se não colocarmos em prática experiências vivas com o protagonismo da participação popular. Sem aceitar esse desafio, vamos continuar, simplesmente, reproduzindo instituições seculares criadas e organizadas para manter relações de dominação de classe e domesticar, pelas vantagens e privilégios, seus oponentes como ocorre hoje nos parlamentos e nas instituições do Estado capitalista.
Neste momento, que queremos superar derrotas eleitorais e políticas, numa conjuntura de gravíssima crise sanitária que expõe todas as mazelas e contradições do capitalismo, de profunda crise econômica no país agravada pelas medidas praticadas pelo governo Bolsonaro e uma ausência de valores éticos e morais com descrédito nas instituições, necessitamos um programa que, também, responda às reivindicações imediatas e sentidas pela população. Mas, principalmente, um programa que combine isso com a luta anticapitalista.
Mesmo nos limites da disputa municipal, é possível e, para nós, obrigatório que as campanhas eleitorais assumam também a propaganda educativa dos valores da igualdade social, da solidariedade, do coletivo, do planejamento superando o mercado, de uma economia em que o poder público e a sociedade assumam grande parcela da reprodução social que hoje recai sobre as famílias. Por isso, a campanha eleitoral não pode abdicar dos temas da reforma política, do combate a brutal desigualdade social, da defesa de uma estratégia de desenvolvimento com o planejamento do Estado, das lutas pela igualdade e enfrentamento a todas as formas de discriminação combinadas com o anti-capitalismo.
O sentido da Constituinte
Toda Constituição se funda em um pacto de forças políticas que organiza o conflito de interesses e de poder em um arranjo legal de instituições, o qual, por sua vez, se assenta em um certo campo de valores compartilhados. A desestabilização constitucional hoje em processo no Brasil é provocada por uma corrosão destes valores compartilhados e pela incapacidade das instituições em processar, em seus procedimentos constitucionalizados, os conflitos fundamentais entre as classes.
A Constituição de 1988 pode ser compreendida como um pacto entre liberais e conservadores, pressionado pelas forças de esquerda minoritárias e pelos movimentos populares. Se o enquadramento do conflito foi liberal-conservador (ver a polêmica de Raymundo Faoro sobre a necessidade de um Congresso Constituinte soberano e exclusivo), a dinâmica de sua disputa foi progressista e afirmativa de direitos. As forças conservadoras não democráticas nas Forças Armadas mas também no mal chamado “Centrão” exerceram o poder de veto.
É este fundamento do pacto político, nunca inteiramente estabilizado mas sempre em disputa, que foi rompido desde 2016. O partido líder do liberalismo democrático, o PSDB, violou as regras da disputa ao não reconhecer de fato os resultados das eleições presidenciais de 2014, radicalizou o sentido anti-republicano de seu programa e legitimou a presença de um movimento proto-fascista no contexto da democracia impedida. O centro político se desfez, houve uma polarização para a direita que, ao mesmo tempo, legitima o discurso fascista e criminaliza a esquerda democrática. Ao mesmo tempo, a esquerda no governo não foi capaz de enfrentar esses impasses e liderar uma revolução democrática.
Não há arranjo constitucional que sobrevive a um tal deslocamento das forças que estabeleceram o pacto de sua fundação. Quem hoje reivindica os direitos previstos na Constituição de 1988 são os partidos de esquerda, os movimentos sociais e os setores democráticos da tradição jurídica e cultural brasileira contra os que exercem os poderes executivo, legislativo e judiciário e a violam de forma permanente.
É fundamental a consciência de que este fenômeno de corrosão dos fundamentos garantistas, desenvolvimentistas e programáticos das Constituições do pós-guerra, alicerçados em pactos entre as tradições do liberalismo social ou keynesiano e as forças da esquerda democrática, é internacional. Trata-se de uma mudança de época no centro da própria tradição liberal: desde o final dos anos setenta, há uma nítida e crescente dominância das tradições neoliberais nas tradições políticas e nos regimes dos países capitalistas centrais, seja na Europa e nos EUA. Através de diferentes caminhos e em diferentes níveis, tem havido o que Gerardo Pisarello tem chamado de desconstitucionalização antidemocrática, isto é, o acionamento de mecanismos não baseados na soberania popular para operar mudanças regressivas na regulação do poder e na garantia de direitos democráticos. A crise brasileira seria, neste sentido, não propriamente uma exceção mas uma singularidade vivida de forma extremamente dramática em uma tendência de época.
Este é, então, o primeiro sentido de (re)constituir. Trata-se de refundar um pacto democrático que restabeleça os valores, as instituições e os procedimentos da disputa democrática e pluralista. Sem isto, será cada vez mais a violência – o discurso do ódio e da execração, a autocracia judicial, a militarização – que prevalecerá.
O segundo sentido de (re)constituir é o de reconstruir as bases políticas de uma coalizão de esquerda que fundamente, com vocação hegemônica e pluralista, uma Constituição democrática e republicana. A república democrática — e não a sua ausência —- é a melhor condição para a esquerda exercer a sua identidade, o seu programa e a sua vocação transformadora.
O terceiro sentido de (re)constituir é o de abrir uma nova época histórica de atualização dos direitos humanos. Esta nova época de direitos será mais feminista, mais negra, mais atenta aos direitos da diferença e da livre orientação sexual, mais ecológica, mais aberta aos regimes participativos, socialmente igualitária e universalista, do que a afirmação de direitos institucionalizados no período 1988-2016. Esta atualização de direitos é ainda mais necessária naquelas áreas onde houve mais resistência à democratização, como na área da segurança pública. Há uma verdadeira fome por direitos de liberdade e justiça no Brasil. Há um conjunto de novos movimentos sociais formados e em formação cujas agendas batem à porta de uma nova constitucionalização. É este impulso democrático que o golpe anti-democrático de 2016 e, agora, uma aberta violência fascista quer destruir.
Como (re)constituir?
A identificação da necessidade de (re)constituir e do sentido de (re)constituir não prova a possibilidade de (re)constituir, nem afasta o risco de uma maioria conservadora vir a ganhar um foro legitimador para impor retrocessos históricos a direitos conquistados. A defesa de uma nova Constituinte, de uma forma incondicionada, pode mesmo acelerar a desconstitucionalização. Como mera peça de resistência, de propaganda, esta defesa seria perdida no próprio processo de polarização política em curso, minando o seu possível sentido democrático universalizante.
Uma nova Constituinte não pode ser concebida como ponto de partida mas como um ponto central no próprio processo político de ascensão da luta democrática e de (re)constitucionalização do país. Este está condicionado à formação de uma nova consciência e capacidade de resistência do povo brasileiro em relação aos seus direitos humanos, à formação da unidade da esquerda, da atração da centro-esquerda, da vitória política da democracia que ponha em clara situação minoritária e neutralizada as forças de direita e proto-fascistas que hoje governam o país. Vale dizer, à conquista do governo pela esquerda e como um desenvolvimento necessário dessa conquista.
Concebida nesta perspectiva, a defesa de um processo histórico de (re)constituição deve ser formulada como momento de convergência, de reunião, de pactação em regime pluralista de soberania popular e de afirmação da soberania nacional. Não pode ser apenas o ponto de vista de um partido mas de uma maioria democrática e popular. Nem mesmo pode ser compreendido como um mero instituto criado de cima mas forjado nas lutas dos movimentos sociais por seus direitos fundamentais.
A ascensão das forças de extremo-direita se deu em um quadro de desestabilização da democracia, de regime de exceção e se alimentou de um forte sentimento de deslegitimação do sistema político e, através dele, de todo o sistema público do país. A derrota destas forças exigirá conquistas democráticas, a capacidade de reinstitucionalizar o conflito político e o reencontro de legitimação da maioria da população em relação ao sistema político e às instituições públicas. A defesa programática de uma novo processo constituinte, que tenha como cláusulas pétreas os direitos humanos fundamentais, e que seja capaz de reconstruir e aprofundar o fundamento democrático do Estado vai nesta direção.
Um eixo central nos programas eleitorais municipais
O eixo estruturador dos programas municipais deve estar assentado na democracia participativa, nas experiências positivas que já realizamos. Seu fundamento é a participação popular através de formas diretas que se adequam a cada realidade (no Brasil temos o município de SP com 11 milhões de habitantes e há várias capitais e cidades com mais de um milhão de habitantes e a maioria dos municípios com menos de 10 mil habitantes) por regiões, por paróquias, por distritos e/ou zonais e a estrutura existente dos Conselhos Municipais temáticos, inclusive com funções legais previstas nas várias legislações (conselhos de saúde, educação, transporte, moradia, assistência social, etc.). Essa variedade enorme entre os municípios encerra, também, uma imensa diversidade de história, experiências e lutas sociais mas são todos entes jurídicos semelhantes perante à União.
Nossos programas devem garantir que as políticas e os gastos públicos orçamentários sejam decididos diretamente pela população conjuntamente com o governo que deve propiciar as condições materiais e as informações e dados orçamentários, os limites dos novos investimentos, comprometendo-se em apresentar nas Câmaras Municipais o resultado fiel desses processos e a garantia de sua consecução. O Orçamento Participativo pode e deve criar outros mecanismos de consulta e protagonismo através de congressos, conferências, plebiscitos que venham ampliar o acesso à informação e a participação das comunidades.
As ferramentas digitais existentes hoje permitem estender isso de forma infinita. No Brasil, já há campanha orquestrada pela direita de transformar o celular num mecanismo de participação direta que substitua o Parlamento por um processo plebiscitário permanente. Ao menos é o que transmite a proposta que circula nas redes sem uma autoria clara e identificada.
Para nós esses mecanismos não podem eliminar a participação presencial onde se exerce a formação da cidadania, onde se dá a educação política e compreensão do funcionamento, do papel e das competências do Estado em seus vários níveis, onde se aprende a debater e a decidir com solidariedade, prioridade e soberania popular sobre o orçamento público.
A questão central, o divisor de águas da nossa experiência com outras de consulta ou ouvidorias que se apresentam como semelhante é o caráter deliberativo, vinculante, da soberania da decisão sobre o serviço e/ou a obra definida pela comunidade e o respeito e cumprimento pelo Executivo. Esta é a essência da experiência de Orçamento Participativo que praticamos.
Um programa de prioridades sociais
A campanha eleitoral será, necessariamente, nacionalizada. Ou seja, no debate, nos panfletos, nas reuniões públicas, nas redes sociais, no rádio e TV, os temas nacionais estarão presentes pois os municípios dependem deles diretamente: o sistema tributário e a partilha federativa dos recursos, a legislação autoritária sobre os gastos públicos e a política de austeridade neoliberal, o financiamento das grandes obras públicas nas áreas de saneamento e habitação popular, o papel do Estado e do planejamento como indutores de desenvolvimento, a reforma política exigida para substituir o caráter corruptor, anacrônico e anti-democrático do atual sistema eleitoral, a brutal desigualdade social e a liquidação em curso das conquistas e direitos sociais da Constituição Federal de 1988.
Precisamos, também, responder às competências municipais específicas e algumas com obrigatoriedade orçamentária como as áreas da educação infantil e fundamental e o sistema de saúde. As políticas de assistência social, habitação popular e mobilidade certamente vão variar muito de acordo com a dimensão dos municípios, mas o que distinguirá uma política petista, uma política de esquerda nessas áreas será a profunda democratização de suas decisões através dos Conselhos Municipais, articulados com os mecanismos gerais de decisão orçamentária no Orçamento Participativo.
O que distingue, também, nossas políticas públicas não é só a forma em que se realizam ou o cumprimento além dos mínimos constitucionais e das leis orgânicas.
Não basta, por exemplo, garantir os recursos materiais da educação. O importante, também, é engajar professores, alunos e comunidade escolar no debate sobre o conteúdo pedagógico do ensino-aprendizagem, no combate aos índices de evasão e repetência, na formação permanente e continuada dos docentes, na formação da cidadania e no estímulo à cultura e ao esporte às crianças e adolescentes. Uma escola cidadã que prepare para a democracia.
O que distingue, também, uma administração petista é a defesa e a luta para que os serviços essenciais como a água, o saneamento, a mobilidade, a energia, a comunicação, a moradia tenham caráter público e não sirvam à acumulação privada do capital.
O município pode ser um importante indutor do desenvolvimento econômico sustentável no estímulo à formação de cooperativas, de incubadoras empresariais e tecnológicas, de crédito e/ou microcrédito para investimentos locais, de compras coletivas e direcionadas nas escolas, hospitais e refeitórios públicos, nas políticas de apoio e extensão técnica para pequenos produtores e na capacitação gerencial de micro e pequenas empresas, na organização e apoio às cooperativas de recicladores de resíduos e outras iniciativas adequadas às características e ao meio ambiente de cada município.
Por menor que seja o município, o planejamento, a ocupação do solo urbano, a exploração de recursos naturais são elementos sujeitos ao poder regulador municipal, às vezes concorrente com o Estado e a União, mas não pode abdicar de fazer valer no município a racionalidade, o combate à especulação e destruição do meio ambiente, em suas variadas hipóteses.
Pensar e elaborar uma base comum programática para os mais de 5.500 municípios brasileiros, profundamente diferentes em suas condições de população, socioeconômicas, meio ambiente e de formação histórico cultural é impossível, mas o que importa é o método e uma estratégia comum que o partido deve orientar. Nesse sentido, o esforço desta contribuição é assentar esta estratégia comum na concepção de radicalização democrática popular, com partidos aliados e movimentos sociais, através da participação popular direta e organizada na busca de nova governabilidade e legitimidade baseadas na democracia participativa.
Somos favoráveis que esse esforço e essa política seja defendida pelo nosso Partido como algo inseparável da formação de uma Frente de Esquerda orgânica, permanente e que tenha um programa comum com base na democracia participativa.
Essa proposta não é incompatível com os legislativos municipais que existem hoje, mas estabelece outra forma na sua relação com o Executivo e, com sua prática, nos permite retomar um debate com base real para propormos profundas mudanças na institucionalidade representativa atual.
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