Carlos Henrique Árabe
Proposta de Palloci vai na contramão do anunciado pelo PED
O tema do ajuste fiscal de caráter ortodoxo-liberal está posto desde o início do governo Lula, e com a crise política e o decorrente enfraquecimento do governo, a questão voltou à tona com muita força.
As tentativas de efetivar um ajuste fiscal como iniciativa global e permanente ao longo do segundo governo de FHC foram bloqueadas pela oposição liderada pelo PT, e substituídas por ajustes parciais. Até agora, um ajuste global e permanente não pôde ser realizado porque exige uma situação de franca derrota das forças populares, tamanho seu significado anti-social.
Durante a crise atual, a primeira formulação acerca do tema foi apresentada por Delfim Netto, a proposta de “déficit zero”. Sob o argumento de que a redução dos juros dependia de uma redução radical da dívida pública, propunha um corte também radical e prolongado dos gastos sociais e a transferência desse “excedente” ao setor financeiro. A proposta vinha junto com o velho sonho da direita de extirpar da Constituição as conquistas democráticas ali inseridas na reforma constitucional de 88, como o sistema público de saúde e a obrigatoriedade do Estado em sustentá-lo.
O professor Paul Singer, em artigo publicado na edição 14 do Jornal Democracia Socialista, desmontou seu argumento central e mostrou o caráter anti-social e anti-democrático da proposta. O argumento econômico de Singer era de que os juros poderiam cair de forma sistemática porque foram elevados de forma exagerada, havendo condições para sustentar um crescimento sem elevação significativa da inflação. O argumento democrático evidenciava a contradição insolúvel entre os interesses do capital financeiro e os interesses nacionais.
Nas últimas semanas o tema foi retomado pelos Ministros da Fazenda e do Planejamento, que passaram a defender um ajuste fiscal sem precedentes no país, quase nos mesmos moldes do “déficit zero”. Trata-se de reduzir drasticamente os gastos públicos constitucionais com saúde, de proibir a elevação de investimentos públicos além do patamar atual e de elevar ainda mais o superávit primário. O ajuste fiscal teria a duração de 10 anos. A cada ano se acrescentariam novos cortes nos gastos sociais. Emendas constitucionais seriam apresentadas para permitir a desvinculação de verbas orçamentárias de sua destinação constitucional. Seu objetivo geral é dar “segurança” ao mercado. Os dois mandatos presidenciais seguintes ao atual já teriam o seu programa econômico praticamente definido.
É uma das mais fortes e ousadas incursões do pensamento liberal e dos interesses do capital financeiro no governo Lula, e essa passa a ser uma questão crucial para definir os rumos presentes da política brasileira. Nela estão entrelaçados dois grandes nós dos impasses do governo.
Dois nós
O primeiro deles refere-se à estratégia econômica e ao diagnóstico dos entraves ao desenvolvimento. Parecem ter chegado ao limite, dentro do governo, as tentativas de conciliar instrumentos de planejamento estatal com interesses financeiros, tentativas que sempre terminaram por fazer prevalecer os últimos sobre os primeiros.
Para a concepção que vê no Estado, sobretudo nos países periféricos, um papel decisivo no desenvolvimento, o gasto público e a orientação dos investimentos são elementos decisivos. Uma política de contenção do gasto público é, em geral, uma medida recessiva, e ela vem à tona em uma situação na qual se prevê que o crescimento de 2005 será menor que o de 2004, em que os freios impostos pela política monetária limitam o crescimento do país.
O segundo nó é de caráter democrático. A forma como o debate recente do ajuste fiscal entrou na pauta política é um indício do problema. Nenhuma consulta às forças políticas que sustentam o governo, nenhuma transparência com a sociedade, e dentro do próprio governo, o debate é restrito. A exigência feita pelo Ministro Palocci de deter poderes absolutos na condução da política econômica seria a extensão da regra já praticada no âmbito do Banco Central.
A constitucionalização de um ajuste liberal seria uma espécie de argentinização da condução econômica no Brasil – uma referência à Argentina de Menem e Cavallo, que produziram a maior crise econômica que esse país já assistiu. Teria como conseqüência transformar em realidade a famosa incursão do megainvestidor George Soros nas últimas eleições presidenciais, para quem eleições ou o governante eleito servem para pouca coisa. Seria o maior atentado à democracia brasileira desde a ditadura militar.
No PT
O Processo de Eleições Diretas do PT (PED) demonstrou a vontade de mudança da maioria dos filiados e filiadas. A questão da política econômica tendo sido um dos elementos centrais do debate partidário nesse processo, o PED também atestou o desejo da maior parte da militância petista por mudanças na política econômica do governo.
Em resolução aprovada em 22 de outubro, o próprio Diretório Nacional afirma que “O PT contribuirá para (…) uma política de transição para um modelo de desenvolvimento com altas taxas de crescimento, juros baixos e fortes políticas públicas de distribuição de renda”. A proposta de Palocci e Paulo Bernardo, entretanto, vai na contramão do que fora anunciado no PED, e também do que afirma o Diretório Nacional.
Ao responder às pressões de banqueiros e especuladores dessa forma, propondo um ajuste de 10 anos, ambos os Ministros anulam qualquer possibilidade de o partido propor um programa alternativo para 2006, atropelando instâncias partidárias importantes como as eleições internas e resoluções do Diretório Nacional.
Carlos Henrique Árabe é membro da executiva estadual do PT-SP.