Uma ameaça à democracia
Fonte: Agência Carta Maior
A forma como o debate do ajuste fiscal entrou na pauta política é apenas um indício do tamanho do problema. Nenhuma consulta às forças que sustentam o governo e nenhuma transparência com a sociedade.
Uma ameaça a democracia
CARLOS HENRIQUE ÁRABE – 29/11/2005
O tema do ajuste fiscal de caráter ortodoxo-liberal está posto desde o início do governo Lula. As tentativas de realizá-lo como uma iniciativa global e permanente ao longo do segundo governo de FHC foram bloqueadas pela oposição liderada pelo PT, e foram substituídas por ajustes parciais. Até agora um ajuste global e permanente não pôde ser realizado porque exige uma situação de franca derrota das forças populares tal o significado anti-social que tem. Com a crise política vivida pelo governo Lula e seu decorrente enfraquecimento, a questão voltou à tona com muita força.
A primeira formulação durante a crise atual foi apresentada por Delfin Netto, com a proposta de “déficit zero”. Sob o argumento de que a redução os juros dependia de uma redução radical da dívida pública propunha um corte também radical e prolongado dos gastos sociais e a transferência desse “excedente” ao setor financeiro. Vinha junto com o velho sonho da direita de extirpar da Constituição as conquistas democráticas ali inseridas na reforma constitucional de 88, como o sistema público de saúde e a obrigatoriedade do Estado em sustentá-lo. O professor Paul Singer, em artigo publicado na Agência Carta Maior (“Juros x déficit: um falso dilema”, de 10/07/2005) desmontou seu argumento central e mostrou o caráter anti-social e anti-democrático da proposta. O argumento econômico de Singer era de que os juros poderiam cair de forma sistemática porque simplesmente foram elevados de forma extremamente exagerada e que havia condições de sustentar um crescimento sem elevação significativa da inflação. O argumento democrático evidenciava a contradição insolúvel entre os interesses do capital financeiro e os interesses nacionais.
Nas últimas semanas o tema foi retomado pelos Ministros da Fazenda e do Planejamento. Eles passaram a defender um ajuste fiscal sem precedentes no país e quase nos mesmos moldes do “déficit zero”. Pelo que tem sido noticiado a partir do debate público entre os Ministros Palocci e Dilma, trata-se de reduzir drasticamente os gastos públicos constitucionais com saúde, de proibir a elevação dos gastos públicos além do patamar atual como parte do PIB e de elevar ainda mais o superávit primário. O ajuste fiscal teria a duração de 10 anos. A cada ano se acrescentaria novos cortes nos gastos sociais. Emendas constitucionais seriam apresentadas para permitir a desvinculação de verbas orçamentárias de sua destinação constitucional. Seu objetivo geral é dar “segurança” ao mercado. Os dois mandatos presidenciais seguintes ao atual já teriam o seu programa econômico praticamente definido.
Não há dúvida de que se trata de uma das mais fortes e ousadas incursões do pensamento liberal e do interesse financeiro no governo Lula. E que essa passa a ser uma questão crucial para definir os rumos presentes da política brasileira. Nela estão entrelaçados dois grandes nós dos impasses do atual governo.
O primeiro deles refere-se à estratégia econômica e ao diagnóstico dos entraves ao desenvolvimento. O economista Paulo Nogueira Batista Jr., em seu último livro, identificou bem a natureza das diferentes avaliações da situação brasileira no final do governo FHC e início do governo Lula (ver a esse propósito o comentário “Retomando e qualificando o debate econômico”, publicado pela Carta Maior em 06/10/2005).
Parece ter chegado ao limite as tentativas dentro do governo de conciliar instrumentos de planejamento estatal com interesses financeiros, tentativas que sempre terminaram por fazer prevalecer os últimos sobre os primeiros.
É evidente para a concepção que vê no Estado, sobretudo nos países periféricos, um papel decisivo no desenvolvimento, que o gasto público e a orientação dos investimentos são elementos decisivos. Assim, uma política de contenção do gasto público sempre é uma medida recessiva. E ela vem a tona justamente em uma situação em que se prevê que o crescimento de 2005 será menor que o de 2004, em que os freios impostos pela política monetária limitam o crescimento de um país que passou muitos anos estagnado. Ao invés de se aproximar das taxas de 7, 8% de crescimento em curso em vários países com alguma similaridade com o Brasil, a taxa atual brasileira vai declinando e situando-se abaixo da metade daquelas. Além disso, cortar gasto público em políticas sociais para servir aos donos de riqueza financeira configura o que tanto já foi criticado em governos de direita como uma política de Robin Hood às avessas.
De outro lado, a concepção liberal aposta no capital como motor do desenvolvimento. E a questão central passa a ser a sua “segurança” política e jurídica. É bem verdade que nesse caso há uma especificidade: o capital de que se trata é o financeiro.
O segundo nó é de caráter democrático. A forma como o debate recente do ajuste fiscal entrou na pauta política é apenas um indício do tamanho do problema. Nenhuma consulta às forças políticas que sustentam o governo, nenhuma transparência com a sociedade, o debate é restrito até mesmo dentro do governo. A exigência feita pelo ministro Palocci de deter poderes absolutos na condução da política econômica seria a extensão da regra já praticada no âmbito do Banco Central. A constitucionalização de um ajuste liberal seria uma espécie de argentinização da condução econômica no Brasil – obviamente uma referência à Argentina de Menen e Cavallo, que produziram a maior crise econômica que esse país já assistiu. Teria como conseqüência transformar em realidade a famosa incursão do megainvestidor George Soros nas últimas eleições presidenciais, para quem eleições ou o governante eleito servem para pouca coisa. E seria simplesmente o maior atentado à democracia brasileira desde a ditadura militar.
Invertendo o problema, a forma e o conteúdo da discussão em curso sobre o ajuste fiscal mostram o quanto é limitada a democratização das instituições no país, em especial daquelas que cuidam da relação do Estado com a economia.
Carlos Henrique Árabe, economista e doutorando na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, é membro da Comissão Executiva do PT-SP.