Debate inicial do processo da XIII Conferência da DS, realizado em 28 de abril de 2021, mediado por Moara Saboia , com Francisco Louçã do Bloco de Esquerda (Portugal) , Clarisse Paradis e Arno Augustin
Com a presença de Francisco Louçã, abrimos os debates para a conferência da Democracia Socialista deste ano. O encontro nos permitiu uma reflexão sobre a desordem financeira na era da globalização e a forma como a desregulamentação das finanças e os capitais financeiros fictícios e especulativos têm graves efeitos deletérios sobre o crescimento e desenvolvimento mundial.
O fenômeno global da financeirização tem no Brasil características extremas e dramáticas. A força do rentismo e da especulação financeira no Brasil se dá de forma cultural e histórica, inclusive fazendo do “mercado” um agente político de enorme dimensão.
A experiência brasileira dos governos do PT foi positiva considerando-se os aspectos sociais e econômicos, particularmente até 2014. O PIB cresceu 50,69% ou 3,48% ao ano. de 2003 até 2014. Tão importante quanto o crescimento foi a evolução social que o acompanhou, através do aumento da renda da população mais pobre, da reduçaõ do desemprego, que atingiu o menor patamar da série histórica em 2014 e principalmente com uma queda histórica na miséria, além de avanços relevantes no acesso à Educação e Saúde.
Podemos falar, portanto, que o Brasil teve um período de Desenvolvimento.
A população reelegeu nosso projeto em 2014, para um novo período de governo que começaria em 2015. Fomos eleitos com um programa de esquerda, que rejeitava claramente os retrocessos exigidos pelo mercado financeiro (foi debate expresso durante a campanha, não iriamos aceitar a pauta neoliberal de retirada de direitos dos trabalhadores “nem que a vaca tussa”). E o papel da especulação financeira como grande comandante e interessada na pauta neoliberal foi abordada de forma muito explícita.
Apesar disso, as exigências do mercado financeiro foram vitoriosas e nós mesmos passamos a destruir tudo o que havíamos construído, desmentindo o que falamos na campanha. A brutal guinada na política econômica nos levou a um desastre econômico e político. No primeiro ano do novo mandato a economia teve uma queda de -3,55% e em menos de um ano e meio o golpe estava consumado.
O principal motivo (há outros, de menor relevância, como a Lava Jato e a situação econômica mundial) do insucesso foi a adoção de um receituário de políticas neoliberais radicais pela equipe econômica nomeada pela Presidenta. Esse foi o maior erro político da história do PT. Falamos uma coisa e fizemos outra, cedendo ao mercado financeiro a ponto de adotar as políticas neoliberais que sempre condenamos. O aprendizado com esse erro deve nos levar a nunca mais repeti-lo.
A adoção do programa econômico dos adversários foi o estopim para o golpe, pois produziu um fracasso econômico (e político) que nos tornou frágeis, facilitando o golpe institucionalizado. Com a confusão em nosso discurso permitimos que os governos golpistas que nos sucederam simplesmente aprofundassem o austericídio e a retirada de direitos com a facilidade de poder jogar a culpa para cima de nossos governos. O neoliberalismo quebrou o país, mas a culpa foi jogada no seu oposto, ou seja, na política de desenvolvimento.
A política econômica neoliberal prejudicou o crescimento, diminuiu a receita e causou desequilíbrio fiscal. Isso já ocorreu antes da pandemia.De 2015 a 2019 o PIB brasileiro caiu 2,44%, o que significou um PIB per capita 6,44 % menor. Uma tragédia sem motivação, causada simplesmente pela ganância e pela correlação de forças políticas. Fizeram exclusivamente porque lhes permitimos ter força para fazer. A direita brasileira mais uma vez mostrou o que é: provavelmente a mais gananciosa e excludente do planeta. Que sirva de aprendizado.
Agregando-se o primeiro ano da pandemia temos uma economia que terminou 2020 6,34 % menor do que em 2014 e um PIB per capita que se reduziu em 10,83%. Ou seja, as pessoas terminaram 2020, em média, 10% mais pobres em 2020 do que eram em 2014. Como a distribuição de renda piorou muito, o efeito sobre os mais pobres é muito mais dramático.
Essa tragédia toda foi feita em nome de melhorar as contas públicas. Mas, nem mesmo isso ocorreu.
A relação Dívida/PIB havia caído de 59,9% em 2002 para 32,59% em 2014. A “gastança” do PT havia melhorado em muito as contas públicas. Ocorre que a “austeridade” neoliberal trouxe um enorme crescimento da relação Dívida/PIB, que elevou-se para 54,57% até 2019. Agregando-se o ano de 2020, verifica-se que a relação Dívida/PIB sobe para incríveis 62,90 %.
A austeridade neoliberal deu enorme prejuízo fiscal. Nenhuma análise dos defensores das políticas neoliberais que levaram a este desastre explica esse fato, pois como controlam os meios de comunicação, optam por omitir os dados constrangedores.
Mas a especulação financeira se saiu muito bem. Os bilionários brasileiros ficaram mais bilionários, muito em função do pagamento de mais de 2 trilhões de reais em juros (de 2015 a 2019) pelo governo destinados à banca financeira especulativa. Mesmo na pandemia, a transferência de reursos públicos continuou e foram transferidos mais 312,4 bilhões de reais para juros em 2020. Gastamos mais em juros do que o auxílio emergencial de 600 reais, que custou apenas 293 bilhões de reais em 2020. Ou seja, o golpe e a consequente eleição do atual governo assassino atingiram seu principal objetivo: os ricos ficaram mais ricos e os especuladores financeiros ainda mais abonados e mais poderosos. Mesmo que para isso o país tenha ficado mais pobre.
A triste realidade é a economia e o emprego despencando enquanto a bolsa sobe e os ganhos financeiros se aceleram. Segundo a lista da Revista Forbes de abril deste ano, o número de bilionários brasileiros cresceu em 44% e o valor da fortuna dos bilionários em 71%. Foi estimada pela revista em 219,1 bilhões de dólares.
Durante anos a mídia econômica vem iludindo as pessoas com a idéia de que os indicadores do mercado financeiro medem também a economia real. Passam a idéia que se a sua evolução for positiva será melhor para o Brasil, pois significariam também crescimento econômico e empregos.Na verdade, não é assim.
Nunca o mercado financeiro se deu tão bem como no último período, mas nunca a miséria cresceu tanto, nunca a economia esteve tão mal e o desemprego tão alto.
O rentismo financeiro ganha mesmo se a economia estiver mal, e isso ocorre com a transferência de recursos públicos. Se a economia real está mal e a receita pública vai mal, mesmo assim o mercado exige e leva (principalmente através dos juros, mas não apenas) uma parte grande da poupança pública. O teto de gastos e o austericídio servem para isso. Prejudicam a economia (já combalida) mas garantem a transferência de recursos públicos para o rentismo financeiro.
Portanto, é preciso ter presente que no caso brasileiro (em especial) os interesses do mercado e os da economia real são contraditórios. Para a economia real o melhor seria que o teto de gastos não existisse. Mas ele é bom para os especuladores, pois, ao contrário do que a sociedade imagina, o teto de gastos não se aplica às despesas financeiras do governo. Com o teto de gastos o Governo investe menos em saúde, educação, bolsa família ou auxílio emergencial para poder pagar mais em juros.
As lições do que ocorreu nestes anos de tsunami neoliberal deve servir para fazermos uma reflexão sobre o futuro. O retorno dos direitos políticos do Presidente Lula criou uma nova realidade política. A esperança cresceu e são reais as possibilidades de vitória em 2022.
Ocorre que as dificuldades de um governo desenvolvimentista serão imensas, pois de 2014 para cá o início do desenvolvimento que havíamos conseguido foi revertido e a barbárie foi instalada.
A pobreza, o desemprego, a precarização do trabalho retornaram e foram normalizadas e a economia foi destruída, particularmente na indústria e nas atividades que geram emprego e valor. A estagnação econômica tornou o país muito mais endividado. Sem economia rodando, sem receita. Quanto maior o austericídio menor a receita e pior a situação fiscal. Por isso a relação Dívida/PIB praticamente dobrou. O país se tornou muito mais isolado e menos competitivo e não se recupera essa situação em prazo curto.
O entreguismo das empresas públicas e a paralisação dos investimentos criarão dificuldades de infraestrutura que só serão revertidas com muito investimento.
As consequências dessa política podem ser vistas em qualquer setor, como no setor energético. O preço dos combustíveis e gás de cozinha esfola a população, e o caso da energia elétrica é particularmente revelador.
Estamos sob risco de um apagão energético. É sabido que quando a economia está em crescimento consome-se muito mais energia. Mas estamos numa recessão bárbara, com uma atividade econômica menor do que a de 8 anos atrás. A explicação para esse paradoxo é que a irresponsabilidade neoliberal conseguiu produzir falta de energia mesmo sem crescimento.
Mas o que acontecerá quando a economia voltar a crescer? É simples. Sem investimentos muito acelerados vai faltar energia. Portanto, a segurança energética que construímos com muito custo foi destruída e teremos que reconstrui-la em alta velocidade sob pena de não podermos voltar a crescer.
Assim sendo, a retomada do investimento público terá que ser enfrentada, tanto do ponto de vista de oferta de infraestrutura como de necessidade para estimular a volta do crescimento.
Da mesma forma, é absolutamente inevitável para que a nossa população volte a ter um mínimo de dignidade, que tenhamos investimentos sociais robustos, a começar por um programa de renda muito maior que o auxílio emergencial capenga de hoje. Toda a área social exigirá uma retomada do tempo perdido.
Para isso será necessário rever o entulho fiscalista austericida que foi implementado nesses últimos anos de barbárie, a começar pelo teto de gastos, que precisa ser revogado. Será preciso uma estratégia para as amarras neoliberais que impedem qualquer governabilidade desenvolvimentista.
Um exemplo é o Banco Central “Independente”(independente da democracia, mas dependente dos especuladores financeiros). Outro exemplo é a destruição dos Bancos Públicos. Os governos do PT haviam capitalizado o BNDES em mais de 500 bilhões de reais, que foram emprestados ao Banco para permitir o financiamento do desenvolvimento. Hoje só restam menos de 200 bilhões de reais, o restante foi torrado para financiar o déficit do austericídio neoliberal.
A grande questão política que devemos estar muito atentos é a de que um eventual novo Governo do Presidente Lula só poderá produzir novamente uma política de desenvolvimento se não tiver nenhum tipo de dubiedade ou compromisso com as teses do mercado financeiro. Em 2003 o governo fez mediações com o mercado financeiro que de forma alguma poderão ser reproduzidas em 2023. Porque seria fatal.
A realidade é muito diferente, os condicionantes internacionais são adversos, a situação fiscal é terrível, a indústria se deteriorou ainda mais, a concentração de renda aumentou e não haverá uma tal prosperidade econômica que permita ao mesmo tempo transferir rendas cavalares para o rentismo e melhorar substancialmente a situação da população. Se tivermos que pagar os lucros do aumento da riqueza rentista não conseguiremos investir na salvação da economia e combater a miséria.
Desta vez será necessário optar, sabendo das consequências da opção na correlação de forças. Já aprendemos da pior forma possível que a especulação financeira é insaciável, e desagradá-la significa um enfretamento com alto preço político. Devemos estar preparados para isso, o que significa fortalecer o campo democrático e popular desde agora e durante a campanha e não permitir nenhum compromisso programático com o mercado financeiro.
É bem simples e objetivo: se voltarmos a cometer o erro de tentar saciar o insaciável mercado financeiro especulativo seremos derrotados. Até o novo governo americano compreendeu que a política econômica precisava se aproximar um pouco das políticas keynesianas ou o fracasso dos Estados Unidos perante a China seria inevitável. A burguesia brasileira nunca foi capaz de ter uma compreensão semelhante. Por isso esta tarefa terá que ser feita contra a sua vontade.
- Arno Augustin é da Coordenação da DS, ex-Secretário do Tesouro Nacional no governos Lula e Dilma.