A pandemia do coronavírus e a “crise do petróleo” se instalaram provocando uma devastação imediata na economia mundial, com consequências que devem se prolongar pelos próximos anos. Hoje existe total consenso sobre a gravidade desta crise, e já é possível antecipar algumas de suas consequências econômicas.
Eu gostaria de enfatizar que qualquer ataque de um submarino americano de mísseis balísticos, independentemente de suas características, será percebido como um ataque com armas nucleares. E, de acordo com nossa doutrina militar, uma ação desse tipo seria considerada motivo para uso retaliatório de armas nucleares pela Rússia.
Maria Zakharova, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Federação Russa (in I. Gielow, “Rússia ameaça EUA com ataque nuclear”, FSP, 30/04/20)
Quando a China identificou a existência da epidemia do coronavírus, em dezembro de 2019, o mundo já estava sob pressão de duas grandes tendências internacionais de longo prazo, altamente corrosivas: a da “saturação sistêmica”1 e a da “fragmentação ética”2 em escala global.
Desde seu nascimento na Europa, durante o “longo século XVI” (1450-1650), o “sistema interestatal” expandiu-se de forma contínua, e de maneira cada vez mais acelerada, até alcançar sua plena globalização no final do século XX, em uma história que não foi linear. Esta trajetória envolveu uma competição e uma belicosidade quase permanentes entre Estados, que aumentaram seu poder, individual e coletivamente, na forma de grandes “explosões expansivas”, como a que estamos vivendo no início do século XXI.
A atual “explosão expansiva” começou ainda no século passado, com a plena incorporação de grandes unidades territoriais nesse processo, como foi o caso da Índia, da China e da Rússia, em um sistema composto por 60 Estados ao fim da Segunda Guerra, e que hoje conta com cerca de 200 membros. No passado, quando ocorreram explosões similares, provocadas pelo aumento da pressão competitiva, elas foram acompanhadas, invariavelmente, de um aumento da desordem interna do sistema, de um movimento expansivo para fora de suas antigas fronteiras e, finalmente, de algum tipo de “guerra hegemônica” que ajudou a refazer a ordem e a hierarquia do sistema, depois de sua expansão dentro e fora da Europa. Tudo indica que, neste início do século XXI, a própria tendência à “fragmentação ética” do sistema mundial – em pleno curso – torne o atual processo de explosão e entropia o mais amplo da História.
Esse movimento se tornou mais veloz depois que o governo de Donald Trump passou a atacar e destruir suas antigas alianças, e todos os consensos éticos, culturais e institucionais que ordenaram o mundo durante o século XX. Ele abriu mão de uma liderança ética mundial que os Estados Unidos conquistaram depois da Segunda Guerra, deixando o sistema mundial sem um poder de arbitragem em última instância, fato que deverá se prolongar depois desta crise, desenhando por algum período um mundo sem nenhum tipo de “pax” americana, chinesa, russa, ou mesmo europeia. Neste sentido, se pode afirmar que existe uma alta probabilidade de que o mundo esteja marchando na direção de uma “guerra hegemônica”, inevitável no longo prazo, mesmo que ainda não se possa dizer quando e onde ela ocorrerá.
Foi sobre esse “pano de fundo” que se instalou a pandemia do coronavírus, e a “crise do petróleo”, provocando uma devastação imediata na economia mundial, com consequências que devem se prolongar pelos próximos anos. Hoje existe total consenso sobre a gravidade desta crise, e já é possível antecipar algumas de suas consequências econômicas. No entanto, ainda não se tem dado a devida atenção a uma série de outros acontecimentos de natureza militar, que têm se desenvolvido, inclusive, como consequência provável da própria “crise bioeconômica”. Em particular, merecem destaque movimentações das forças armadas das três grandes potências que são capazes de alterar o rumo do sistema mundial através de suas decisões nacionais.
A China, onde a epidemia foi identificada, foi o primeiro país a experimentar o seu impacto econômico, com a interrupção da produção, aumento do desemprego e ruptura de todos os seus circuitos e fluxos econômicos da produção e do crédito. O gigante asiático foi também o primeiro país a sofrer o impacto político e militar da epidemia, com o enfraquecimento do governo de Xi Jinping em um primeiro momento, mas com a subsequente retomada das rédeas da situação, dado o sucesso de sua política sanitária. Na sequência dessa retomada de fôlego, o país deu início a um movimento de afirmação do seu poder militar no Mar do Sul da China, com o surgimento de setores nacionalistas que voltaram a propor a ocupação militar imediata de Taiwan. É sabido que a China construiu, nos últimos anos, uma frota naval de guerra bastante significativa, com submarinos, barcos anfíbios e hoje já dispõe de capacidade para destruir, com mísseis DF-21, qualquer embarcação que navegue a menos de 1.500 km de suas costas, o que tornaria possível uma ofensiva imediata sobre Taiwan, apesar de que ela tenha sido rejeitada pelo governo de Xi Jinping.
No caso da Rússia, por seu turno, o impacto imediato da crise foi ainda mais violento do que na China, devido à dependência fiscal russa do preço internacional do petróleo. Tudo indica que a crise desencadeou ou acelerou uma disputa interna de poder, dentro e fora do Kremlin, envolvendo setores ultraliberais que ainda controlam o Banco Central e as grandes empresas privadas, e setores nacionalistas e militaristas que defendem uma espécie de “fuga para frente” militar, na direção do Báltico, da Bielorússia e da própria Ucrânia. Ninguém mais duvida que a Rússia já recuperou sua posição de liderança militar na fronteira tecnológica do desenvolvimento de novas armas estratégicas, com mísseis e armas submarinas hipersônicas que lhe dão uma capacidade de resposta avassaladora, em casos de ameaça.
Nos Estados Unidos, por sua vez, o avanço gigantesco da epidemia e da crise econômica tem alimentando o sentimento de um território atacado e fragilizado, isso por culpa – em grande medida – do próprio governo de Donald Trump. O presidente americano desqualificou a ameaça pandêmica e agora terá que enfrentar uma tentativa de reeleição, que parecia estar assegurada, mas que se tornou mais difícil, em uma sociedade ainda mais dividida e polarizada. É exatamente esse problema que parece explicar o grande movimento de reafirmação do poder militar norte-americano em curso em todo o mundo e de forma absolutamente explícita.
No Golfo Pérsico, os Estados Unidos aumentaram recentemente seu poder de fogo, com um sistema de drones mais modernos e letais (como é o caso do MQ-9 Reaper), ao que se soma um exército de 80 mil homens, agora distribuídos em torno do Irã. Na região do Oceano Glacial Ártico, no Mar de Barents, a frota naval norte-americana ingressou nas últimas semanas pela primeira vez desde 1980. Além disso, os EUA e a OTAN realizavam exercícios militares no Mar Báltico, utilizando bombardeiros B-1B supersônicos e com capacidade nuclear, concomitantemente ao anúncio da instalação de um novo sistema de foguetes na Europa Central, próximo da fronteira ocidental da Rússia. No Mar do Japão, no Mar do Sul da China, e, mais recentemente, no próprio Mar do Caribe, observa-se o deslocamento de navios de guerra. No Atlântico Sul, destroyers, submarinos e aeronaves de vigilância se somaram à IV Frota Naval, e se eleva a pressão constante dos Estados Unidos contra o governo venezuelano de Nicolas Maduro.
Tudo isso poderia parecer uma mera “jactância” americana, feita com o objetivo ostensivo de escapar de problemas internos através da reafirmação da superioridade militar global inconteste dos Estados Unidos. Sobretudo porque Estados Unidos, China e Rússia, em particular, teriam grande dificuldade econômica de enfrentar uma guerra frontal neste momento, e provavelmente ainda por alguns anos. Mas é exatamente neste ponto que aconteceu, nas últimas semanas, uma mudança militar capaz de alterar radicalmente todas as perspectivas e prognósticos futuros, o fato se deu com o anúncio recente de uma “mudança operacional” promovida simultaneamente pelas Forças Armadas norte-americanas e russas.
Em primeiro lugar, o governo dos EUA anunciou ter tornado operacional o uso de uma bomba nuclear de “baixa intensidade”, com uma potência equivalente a um terço da bomba de Hiroshima (5 kilotons). Além disso, a nova arma, W76-2, deve ser instalada nos mísseis Trident utilizados pelos 14 submarinos USS Tennesse da frota americana, e pode ser utilizada pelas Forças Armadas norte-americanas no caso de conflitos ou guerras “limitadas” ou “regionais”. Em seguida, os EUA anunciaram um exercício militar com simulação de uma guerra nuclear limitada contra a Rússia.
Como resposta a esse anúncio, e em particular a esse exercício militar americano, a porta-voz do Departamento de Assuntos Estrangeiros da Rússia, Maria Zakharova, declarou que Moscou pode responder com um ataque nuclear maciço contra os Estados Unidos caso algum submarino americano faça qualquer tipo de lançamento de míssil, independentemente de este carregar ogivas atômicas ou não. A partir desse momento, a prática do “bullying militar” contra países considerados adversários ou estratégicos, por parte dos Estados Unidos, transformou-se num jogo extremamente perigoso.
Não é difícil calcular as consequências dessa simples “mudança operacional”. Em um mundo em plena transformação, provocada por sua “saturação sistêmica” e “fragmentação ética”, sem qualquer tipo de instituição, autoridade ou poder capaz de arbitrar divergências, e sem nenhum tipo de liderança com legitimidade universal, a guerra deixa de ser uma ameaça verbal e se torna um risco real. Neste cenário, esgotada a diplomacia, só restam as armas, e a partir de agora qualquer falha involuntária ou erro de cálculo pode transformar um conflito regional em uma catástrofe de grandes proporções. Isto vale para o Golfo Pérsico, bem como para o Mar do Sul da China, assim como para o Mar do Caribe, dada a disputa entre os Estados Unidos e a Venezuela, que envolve ainda os interesses econômicos da China e a proteção militar da Rússia.
Normalmente, seria muito pouco exequível que os Estados Unidos aceitassem ou iniciassem uma escalada atômica dentro do seu próprio “hemisfério ocidental” e junto de suas fronteiras. De fato, é muito improvável, mas não é impossível, dado que uma vez anunciada a decisão de resposta mútua com armas nucleares limitadas, entre EUA e Rússia, já não se pode excluir a possibilidade, mesmo que remota, da conflagração de um conflito, ainda que acidental, no Mar do Caribe e na Amazônia Sul-Americana.
A simples existência dessa possibilidade impõe a necessidade de uma mudança na postura das Forças Armadas brasileiras, que não têm representação, nem o direito de expor os brasileiros à vassalagem militar com relação aos Estados Unidos, pois isso pode induzir o Brasil a cometer um crime abominável contra seu próprio povo, contra seus irmãos latino-americanos e contra toda a humanidade.
José Luís Fiori é professor titular do Programa de Pós-graduação em Economia Política Internacional (IE/UFRJ), e do Programa de Pós-Graduação em Bioética e Ética Aplicada (PPGBIOS/UFRJ), Coordenador do GP do CNPQ, “Poder Global e Geopolítica do Capitalismo”, e do Laboratório de “Ética e Poder Global”, do NUBEIA/ UFRJ; pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP).
William Nozaki é professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e diretor técnico do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP).
1 J.L.Fiori. O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 40.
2 J.L.Fiori. “Ética cultural e guerra infinita” in Sobre a Guerra. Petrópolis: Vozes, 2018