O Haiti não é aqui. Cobertura da crise ignora movimentos populares e humaniza intervenção americana
As notícias que nos chegam sobre os conflitos no Haiti não permitem que se compreenda o que se passa por lá. A mídia brasileira, dependente das agências internacionais, se mostra incapaz de contextualizar a situação. Há 18 anos, os personagens principais dessa história são Jean Bertrand Aristide, os movimentos populares e o governo norte-americano. Para entender o conflito atual, é preciso compreender a mudança na correlação de forças entre esses atores.
A derrubada da ditadura dos Duvalier, em 1986, teve como um de seus principais líderes o próprio Aristide, ligado à teologia da libertação. O economista haitiano Camille Chalmers, fundador da Plataforma para Advogar pelo Desenvolvimento Alternativo (PAPDA), destaca a atuação de Aristide naquele momento. “Ele cumpriu um papel de extrema importância, com um discurso nacionalista, anti-corrupção e de renovação da classe política”, afirma Chalmers.
Aristide foi eleito para a presidência em 1990, mas seria derrubado por um golpe da direita um ano depois. O novo governo, de Raul Cedrás, instalou uma nova ditadura sangrenta e, em pouco tempo, havia destruído as conquistas populares. Os EUA viram a situação fugir de controle e, com medo de um fluxo migratório dos haitianos, decidiram apoiar a recondução de Aristide ao poder em 1994. Atado às imposições norte-americanas, o presidente implantou um Plano de Ajuste Estrutural, o primeiro sinal da política neoliberal que viria assolar o país.
As reformas na pauta
As conseqüências negativas do plano o afastaram do movimento popular e dividiram a população haitiana. Segundo Chalmers, Aristide assumiu a agenda de reformas liberais, que só interessava a elite. “A classe burguesa e os comerciantes foram beneficiados pela criação de uma zona franca”, diz o economista. Para os camponeses e trabalhadores, Aristide passou de herói a traidor, e o país voltou a assistir ao crescimento desenfreado da corrupção.
O ex-presidente ficou afastado de 1995 a 2000, mas voltou nas eleições seguintes e continuou sua agenda de reformas. A tentativa de acabar com a autonomia universitária em 2002 fez o movimento estudantil e as classes populares capitanearem uma campanha contra o governo. Ao perceber que Aristide caminhava para o isolamento, os EUA resolveram agir à sua maneira.
Os norte-americanos romperam com o presidente, criaram uma nova aliança política com burgueses e comerciantes e decidiram patrocinar o surgimento de “forças rebeldes”, na verdade agrupamentos militares da época de Cedrás, comandados por Guy Phillipe. Buscando enfrentar essas forças, os movimentos populares se organizaram na Agrupación Democrático-Popular.
Neste momento
O que vem acontecendo por lá é continuação dessa história. Chalmers explica que os movimentos sociais têm buscado denunciar a presença e o peso da participação estrangeira nas decisões do país. Para ele, não se pode repetir o esquema excludente que há anos alheia as classes populares do poder. “O conselho de anciãos formado para indicar o novo primeiro ministro é composto por sete pessoas. Entre eles não há camponeses nem trabalhadores”.
A agricultura, além de mal representada, tem sido diretamente prejudicada pela “ajuda” dos EUA. O país vende ao Haiti produtos agrícolas subsidiados, o que tem derrubado a pequena produção local. Protestos contra a expulsão dos camponeses de suas terras e contra a Zona Franca tem mobilizado os camponeses por lá. Por aqui, continua sendo impossível compreender os conflitos. Para a imprensa brasileira, só existem os pró-Aristide e os pró-norte-americanos. Enquanto isso, fora da dicotomia, o povo haitiano luta por sua história.
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