Democracia Socialista

Uma política internacionalista para o século XXI

A Democracia Socialista, tendência interna do PT, é uma corrente que se define internacionalista desde suas origens. O objetivo deste documento é atualizar o significado dessa definição, considerando a nova conjuntura mundial e regional e o quadro da esquerda no mundo e na América Latina.

Um novo período político
A crise de legitimidade do projeto neoliberal na América Latina, produto de impasses desse programa e da resistência popular à sua aplicação, abriu um novo período político na região. O ascenso das lutas sociais e o avanço, no plano institucional, de partidos de esquerda e progressistas são expressão desse novo cenário. A tradicional hegemonia do imperialismo norte-americano na nossa região, vista como seu “quintal”, está em questão.

Um novo cenário para as esquerdas
A crise do “socialismo real” no momento do auge da hegemonia neoliberal, entre o final dos anos 1980 e a primeira metade da década passada, afetou profundamente toda a esquerda mundial.

A idéia, que chegou a ser cultivada inclusive entre nós, no Brasil, de que aquela foi apenas uma crise do estalinismo e seus herdeiros, não se sustenta. Aquela crise significou, em grande medida, um novo desenho da esquerda no mundo inteiro. Houve perdas significativas quando importantes contingentes passaram ao campo do neoliberalismo ou abandonaram a militância política. Mas também aconteceu que as fronteiras ideológicas construídas durante o século XX e, particularmente, aquelas vinculadas ao debate sobre a URSS e o Leste Europeu, foram se erodindo em face às novas realidades e desafios colocados pelo século XXI. Em alguns casos, esse processo deu origem a fusões de antigos grupos adversários.

A retomada das lutas sociais que aconteceu no final dos anos 1990 e na presente década se dará sobre um novo território político. Ao contrário do que foi a história das esquerdas no século passado, não há hegemonias estabelecidas nem forças políticas em condições de disputar a condução única desse processo.

Há, no entanto, novas questões estratégicas, novos desafios teóricos e políticos. Frente a eles, esboçam-se campos de construção socialista e internacionalista, e novas polaridades. Em nossa Conferência Extraordinária (abril de 2005), destacamos uma dessas questões centrais, a partir da realidade que vivemos no Brasil e na América Latina:

“Se é necessária a compreensão da crise de legitimidade do neoliberalismo, é também imprescindível examinar um horizonte histórico no qual revoluções de caráter anticapitalista que possam ser um pólo de atração e referência para uma nova época de revoluções socialistas não estão à vista no curto e médio prazo. Neste período, devem ser combatidos os riscos do pragmatismo, da conformação dos horizontes utópicos a um capitalismo pretensamente reformável, da esterilização de forças emancipatórias pela integração à ordem estatal burguesa ou de mercado. Estes riscos são centrais para partidos do socialismo que tenham chegado ao governo central de seus países, como o PT. O combate à adaptação ou integração à ordem burguesa exige uma resposta histórica, tendo por base a tradição socialista revolucionária, que é o desafio de avançar a capacidade de dirigir uma transição democrática ao socialismo, em regime de pluralismo, de democracia participativa, de progressiva superação da lógica mercantil privatista e em relação dialética com um processo de transformação da ordem mundial dominante.”

Resoluções da Conferência Nacional Extraordinária da DS [Link Indisponível], Abril/2005

Premissas para um internacionalismo do século XXI
O debate sobre um “internacionalismo para o século XXI” deve recuperar os valores e a herança positiva das quatro internacionais anteriores, mas também deve fazer um balanço dos seus erros. Deve identificar os novos atores hoje existentes, assim como aqueles que permaneceram (após a crise geral das esquerdas no início da década passada). E deve, sobretudo, ser capaz de impulsionar um internacionalismo aberto e plural, estreitamente vinculado às lutas em curso.

Somos de uma tradição do movimento socialista que tem no internacionalismo um de seus valores estratégicos constitutivos. Nossa luta deve ter objetivos comuns no mundo todo. A fraternidade universal dos povos é um valor a ser perseguido e, assim como o capital globalizou sua dominação, não há como desenvolver o socialismo de forma isolada em um ou outro país. Um projeto pós-neoliberal, para ser coerente, necessita ser socialista e internacionalista. O antiimperialismo, a defesa da soberania nacional de nossos povos, a denúncia e o enfrentamento da condição subdesenvolvida dos nossos países e da aliança da classe dominante com o capital internacional, a produção teórica e ideológica da luta pelo socialismo, a ética e a moral na política, a permanente luta por uma democracia participativa e a necessária construção de forças políticas com independência de classe capazes de levar isso a cabo são as condições fundantes da transição e da superação do neoliberalismo.

Os internacionalismos do século XX
O século passado foi marcado por uma série de antagonismos entre projetos políticos internacionais das esquerdas: social-democracia (da II Internacional) X comunismo (da III Internacional); estalinismo (dos PCs) X trotskismo (da IV Internacional); linha Moscou X linha Pequim (maoísmo); na América Latina, organizações identificadas com a revolução cubana X partidos comunistas. Essas linhas demarcatórias perderam grande parte de sua vigência, ainda que debates estratégicos das esquerdas no século XX continuem sendo fundamentais. Mas também estão emergindo novas polaridades em um quadro de grandes desafios cujas respostas estão em fermentação.

Aquelas linhas demarcatórias fizeram também com que a luta de classes se visse, freqüentemente, subordinada à lógica da disputa entre aparelhos vinculados às diferentes correntes de esquerda. Isso, algumas vezes, bloqueava a própria luta de classes.

A experiência da IV Internacional foi, nesse século, singular, já que, contrariamente às outras correntes, nunca se transformou numa organização que, como regra, integrasse partidos de massas ou dirigisse organizações de massas, e que tampouco nunca chegou a ser política de um Estado. Surgida em 1938 como conseqüência da luta das oposições de esquerda ao estalinismo, foi vista por Leon Trotsky, no momento de sua criação, como uma ferramenta de defesa do programa revolucionário (frente à degeneração operada pelo estalinismo de um lado, e a social-democracia do outro). Nesse momento, a classe operária dos países centrais estava sob direção política do comunismo estalinista, da social-democracia ou diretamente subjugada pelo nazi-fascismo, e o mundo se encontrava às vésperas da II Guerra Mundial. Essa marca fundacional (a “defesa do programa”), aliada à persistência, por um longo período, de uma situação marginal frente à classe trabalhadora e às práticas sectárias e doutrinaristas que a pequenez de suas organizações facilitava, serviu de justificativa para o curso que muitos grupos quartistas adotaram ao se degenerar em seitas políticas (auto-referenciadas, por fora da conjuntura política, dedicadas prioritariamente a disputar entre si, etc).

Trotskismo ou marxismo revolucionário
A aproximação da DS com a IV Internacional (SU) se deu pela combinação de vários fatores. Em primeiro lugar, foi fundamental que a IV Internacional tenha aprovado no seu XI Congresso Mundial, em 1979, o documento “Democracia socialista e ditadura do proletariado”, recuperando uma visão radicalmente democrática da luta pela construção do socialismo.

Em segundo lugar, nessa época, a IV Internacional deixou de se considerar “partido mundial da revolução” e de tentar ter uma direção internacional que centralizasse suas “seções nacionais”.

Em terceiro lugar, afirmava que não mais se podia trabalhar com a idéia de que uma internacional revolucionária de massas se formaria “em torno” ou “sob a condução” da IV Internacional, mas que a IV seria um dos seus componentes, numa perspectiva de vanguarda compartilhada, e não hegemonizada por esta ou aquela corrente. Essa perspectiva foi fundamental para dialogar com outras correntes revolucionárias, sobretudo na América Central nos anos 1980.

Em quarto lugar, diversos pensadores vinculados à IV Internacional trabalhavam já com uma perspectiva de marxismo revolucionário que superasse a referência exclusiva de Trotsky e incluísse todas as influências do pensamento crítico e revolucionário (em muitos casos, contraditórias com a herança trotskista).

O quinto ponto e mais importante, é que, na aproximação com a IV Internacional, a DS foi aceita como era, uma experiência singular. Contrariamente ao trotskismo usual, a DS não se via no PT como em uma tática “entrista”. Para entender essa singularidade, basta comparar as trajetórias no PT da DS e da Convergência Socialista, antecedente “morenista” do atual PSTU (1).

Nesse período, a relação de debate e intercâmbio com a IV Internacional contribuiu para nossas formulações estratégicas sobre as questões democrática, nacional e da transição.

Internacionalismo e raízes nacionais
Jose Carlos Mariátegui, grande pensador marxista peruano, afirmou em 1928:

“No queremos, ciertamente, que el socialismo sea em América calco y copia. Debe ser creación heroica. Tenemos que dar vida, com nuestra propia realidad, em nuestro propio lenguaje, al socialismo indoamericano. He aqui una misión digna de una generación nueva”.

(trecho do artígo “Aniversario y Balance”, revista “Amauta”, Ano III, número 17, Lima, setembro de 1928).

Era o período em que Mariátegui lutava no interior da III Internacional contra a aplicação mecânica, no Peru, de suas determinações – coisa que o estalinismo somente conseguiria após a morte dele, em 1930. A III Internacional se pretendia o “partido mundial da revolução” e, pouco depois (1943), encerrou suas atividades como parte dos acordos da URSS com os Estados imperialistas.

O marxismo chegou ao nosso continente como uma ideologia fora de lugar. Já vão cento e cinqüenta anos de mútuos aprendizados entre nossos povos, que buscam no marxismo uma ferramenta para sua libertação, e o marxismo, que, para ser um pensamento universal, precisa se deseuropeizar. O trotskismo também sofreu do mesmo mal.
A DS não somente não se colocava como um “enxerto” no PT, mas buscou, desde o início, participar de processos coletivos de síntese dentro dele, com a esquerda do PT e com o partido como um todo. Todo o debate sobre estratégia revolucionária, sobre socialismo e sobre construção do partido revolucionário realizado pela DS ao longo dos anos 1980 e 1990 está impregnado dessa visão. Quando a DS decidiu expressar sua identidade com a IV Internacional em meados da década de 80, esta decidiu respeitar essa trajetória e essa perspectiva. Assim, o internacionalismo nunca significou, para nós, a negação das raízes nacionais ou do necessário processo de reapropriação e recriação do marxismo revolucionário.

O novo cenário e seus atores
Na confluência entre crise dos projetos neoliberais e emergência popular na nossa região, desenha-se um novo cenário. Na emergência de lutas populares após a crise das esquerdas, surgiram novos atores e renovaram-se outros. Para o bem e para o mal, o mundo hoje é outro. Os espaços amplos e unitários de lutas contra as diversas expressões da globalização neoliberal só são possíveis hoje por causa desse novo quadro em que se encontram as esquerdas no mundo e, em particular, no nosso continente.

A militância da DS tem tido um papel destacado na construção de espaços e articulações internacionais como o Fórum Social Mundial, a Assembléia de Movimentos Sociais, a Campanha Continental contra a ALCA, a Aliança Social Continental, a Marcha Mundial das Mulheres, a Coordenadora de Centrais Sindicais do Cone Sul, os fóruns de trabalhadores em economia solidária, entre outras iniciativas que têm significado avanços importantes na luta contra a globalização neoliberal, o imperialismo, a guerra e o patriarcado capitalista em nosso continente.

O grande impacto das recentes ações contra Bush e a ALCA na Cúpula dos Povos (impulsionada pela Aliança Social Continental), em Mar del Plata, foi uma mostra concreta do acerto dessa política internacionalista. Os significativos avanços políticos registrados no Fórum Social Mundial de Caracas, em janeiro passado, apontam para igual sentido.

Essas conquistas não são nem estranhas nem contraditórias com a nossa política nacional, ao contrário, são a continuação dela no plano internacional. E essa política está embasada numa visão da situação e das tarefas no nosso continente tal como expressas nas resoluções de nossas duas últimas conferências.

Surgido quinze anos atrás, em outro contexto político, o Fórum de São Paulo conseguiu se manter como espaço de encontro de um leque amplo de partidos progressistas e de esquerda da América Latina. Defendemos que o Fórum tenha um papel mais atuante em um debate de balanço sobre as experiências de governo na nossa região, de articulação de iniciativas em âmbito partidário e que construa uma parceria estratégica com as campanhas desenvolvidas pelos movimentos sociais da América Latina.

Um internacionalismo estreito X um internacionalismo para o século XXI
A crise pela qual atravessou a esquerda brasileira no debate sobre rumos do governo Lula foi pretexto para que companheiros da IV Internacional alterassem profundamente a conduta de mútua colaboração que houve por anos com a DS. A maioria do seu Comitê Executivo Internacional (CEI) se atribuiu prerrogativas que não tem. Pretendeu intervir na DS, decidindo quem a deveria representar no CEI, quem deveria ser considerado militante da DS e o que é a DS. Assim como, em relação à conjuntura brasileira, pretendeu definir na Europa o que a DS deveria fazer no Brasil – ignorando que a DS tem sua própria estrutura de deliberação baseada na democracia interna.

Foram dois anos nos quais a atitude fracionista e anti-democrática de setores que compunham a DS tiveram o respaldo de manobras operadas desde as instâncias da IV Internacional. Interrompeu-se, assim, por iniciativa das instâncias de direção da IV Internacional, uma trajetória de trabalho conjunto e mútuo respeito.

Por outro lado, em nossa região, no último período, sem maiores discussões, a maioria do CEI optou por afastar-se dos processos de recomposição em curso da esquerda latino-americana e privilegiar o diálogo e a ação conjunta com pequenos grupos “trotskistas” que restaram no nosso continente.

Há um rico processo de recomposição das esquerdas no mundo e na América Latina do qual a DS é parte ativa. É sobre ele, e dentro dele, que deve se desenvolver nossa reflexão e contribuição.

Um novo internacionalismo é necessário e ele está sendo construído nas lutas, nas campanhas e nos espaços unitários regionais e internacionais. Os setores que não se contaminarem com o espírito de seita e fracionalismo – para onde, alguns querem anacronicamente, recuar – serão nossos aliados naturais nesse esforço. A DS continuará seu trabalho internacionalista com aqueles setores da IV Internacional com os quais já tem uma relação de colaboração mútua e com todos os setores da esquerda mundial, latino-americana e brasileira dispostos a renovar o internacionalismo para fazê-lo capaz de enfrentar o desafio de construir o socialismo do século XXI.

Notas:
(1) O “entrismo” como tática de construção tem sua referência histórica clássica na “virada francesa”, como foi conhecida a tática proposta por L. Trotsky, e que seus seguidores na França dos anos 1930 aplicaram ao “entrar” no partido SFIO (Seção Francesa da Internacional Operária, denominação do partido socialista social-democrata) com a perspectiva de ganhar influência de massas e posteriormente romper com essa organização e criar um partido revolucionário.