Jornal DS 24 [nov2009]. Pepe Mujica quer aprofunar mudanças iniciadas por Tabaré.
O Uruguai tem uma história política recente bastante peculiar. Durante cerca de 160 anos, os Partidos Blanco e Colorado se alternaram no poder, sem oferecer, no entanto, diferenças qualitativas de governo para outro.
Em 1970, foi criada a Frente Ampla, com base no Partido Comunista, Partido Socialista, MNL (Movimento de Libertação Nacional), e outras forças de esquerda e centro-esquerda, com grandes chances de obter uma vitória eleitoral em 1973. Foi quando veio o golpe, em 1972, estabelecendo uma ditadura militar que se prolongou até 1985, e submeteu dirigentes do movimento de resistência a prisões, clandestinidade, tortura e morte. Somente em 2004, mais de 30 anos depois, a Frente Ampla vence as eleições nacionais no Uruguai, elegendo Tabaré Vásquez presidente e conquistando maioria parlamentar.
Depois de um governo bem-sucedido do ponto de vista da aprovação popular, em 25 de outubro de 2009, os uruguaios foram às urnas para eleger congressistas e o novo Presidente da República; e para, pela segunda vez, opinar sobre a Lei de Caducidade.
Pepe Mujica
O candidato da Frente Ampla é o senador José “Pepe” Mujica, ex-Ministro da Agricultura do governo Vásquez. Ele derrotou nas prévias internas Danilo Astori, Ministro da Fazenda, que é o candidato a vice-presidente na chapa de Pepe Mujica.
O senador foi um dos líderes tupamaros no enfrentamento à ditadura militar. Ficou preso por mais de 12 anos e fez parte do grupo conhecido como “os reféns”. Flávio Aguiar entrevistou Mujica para a Agência Carta Maior em 2005, após a vitória da Frente Ampla nas eleições nacionais. “Estávamos diante de um homem, ex-guerrilheiro, que passara anos de sua vida não só no cárcere, mas confinado numa cela que na verdade era um poço de pouco mais de dois metros de diâmetro, sem falar com ninguém. Contou-nos coisas terríveis e lindas ao mesmo tempo. Que conversava com os insetos. Que aprendera que as formigas gritam. Coisas assim”, escreveu Aguiar à época.
Na véspera da eleição, Mujica conversou com a revista Teoria & Debate, a quem falou sobre os desafios de um novo mandato progressista no Uruguai e o lugar do socialismo no programa da Frente Ampla: “E o que é o socialismo? O que era e o que será amanhã? O nosso programa corresponde a uma aliança de partidos que apresenta historicamente um conjunto de reformas a favor de desenvolver uma sociedade e tentar de integrá-la o máximo possível. (…) Digo-te que meus sonhos me levam hoje a crer que, para construir algum dia uma sociedade melhor, necessitamos de um país rico materialmente e tremendamente incluído e culto. Não que por ter essas duas coisas se irá criar uma sociedade socialista, mas sem essa questão prévia de massificação de conhecimento e cultura e de riqueza compartilhada, não há condição”.
Lei caduca
Na noite após a votação, as feições dos partidários da Frente Ampla eram de decepção. A despeito de terem obtido 48% dos votos para Pepe Mujica, ainda enfrentariam um duro segundo turno. Mas havia outro motivo para insatisfação. Com insuficientes 47,36% de apoio à anulação da Lei da Caducidade, os uruguaios decidiram manter a Lei da Anistia e o perdão àqueles que praticaram tortura e desafiaram os tratados internacionais de garantia dos Direitos Humanos durante os anos de chumbo naquele país.
Essa polêmica vinha se acentuando na sociedade uruguaia há algum tempo. Para a esquerda, que reivindica o enfrentamento à ditadura e conta, entre seus quadros, com ex-combatentes do período, tratava-se não de um acerto de contas com a História, mas sim, de uma forma de encerrar aquele passado próximo com justiça.
A campanha pela anulação da lei residia em atrair participação massiva de jovens. Isso significou dar nova dimensão à questão, não tratá-la como privativa dos diretamente afetados pelos crimes amparados pela lei de impunidade. Em outras palavras, o referendo tirou dessa questão a pecha de “crime do passado” e colocou-a em diálogo concreto com a realidade.
A iniciativa de construir o referendo veio no bojo de uma série de medidas que vêm sendo tomadas por governos progressistas e de esquerda na América Latina, em relação ao seu passado recente de ditaduras militares, censura, torturas, assassinatos e desaparecimentos de militantes. No Paraguai, Fernando Lugo encaminhou a abertura dos arquivos da ditadura do país. Na Argentina, a aprovação da nova lei de telecomunicações se contrapôs à anterior, datada da ditadura. No Chile. 300 pessoas ligadas ao regime militar foram processadas e 200, condenadas por crimes contra a humanidade. No Fórum Social Mundial de Belém, em 2009, o juiz Juan Guzmán Tapia, primeiro a determinar a prisão de Pinochet, ressaltou quão importante foi para o Chile abolir os inúmeros acordos e “leis do perdão” forjados pela ditadura militar agonizante para defender a si mesma de futuras punições pelos três mil assassinatos e 1.200 desaparecimentos ocorridos durante o período em que esteve no poder.
No Brasil, os processos têm caminhado com passos tímidos, especialmente a partir da atuação insistente do Ministro da Justiça Tarso Genro e do Secretário Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannucchi, em defesa da abertura dos arquivos, da retomada das buscas a desaparecidos políticos do período e da indenização de ex-combatentes que foram torturados, presos ou exilados, bem como de familiares de mortos e desaparecidos.
Disputa polarizada
Tendo conquistado maioria parlamentar e verificado crescimento no interior do país, a avaliação das diversas forças que compõem a Frente Ampla é de resultado positivo no primeiro turno. Todos concordam que o ponto negativo foi não conseguir anular a Lei de Caducidade.
O segundo turno será no próximo dia 29 de novembro, e Mujica enfrenta o ex-presidente Luis Alberto Lacalle, do Partido Nacional. Blancos e colorados já anunciaram seu apoio ao oposicionista, ação que, de acordo com líderes da Frente, não surpreende. “Esse acordo é o fruto lógico do predomínio conservador”, disse Pepe Mujica.
A direita está unida e utilizando instrumentos pouco ortodoxos para conquistar os cerca de 9% que ainda se declaram indecisos, de acordo com as pesquisas. A Frente Ampla, em recente nota pública, afirmou que “rechaça a atitude irresponsável, desleal e insensível assumida pelo Partido Nacional, que vem contratando espaços nos meios de comunicação do interior do país para difundir informações falsas e infundadas, que induzem ao erro setores de nossa sociedade, numa prática que acreditávamos estar superada, dado o avanço e a consolidação da vida democrática em nosso país”. De acordo com a propaganda da direita, o equilíbrio e a governabilidade estariam ameaçados num novo governo da Frente Ampla.
A linha da Frente, no item “alianças”, é ampliar sua base eleitoral priorizando o diálogo direto com eleitores, não com líderes partidários. “Não buscaremos ninguém, mas sempre aceitaremos os que vierem”, declarou Mujica.
Aprofundar mudanças
Em entrevista ao “Em Perspectiva”, a senadora Lucía Topolansky, mais votada da Frente Ampla, disse que a campanha, neste segundo turno, vai defender “cinco anos de governo estável, a partir do qual o país cresceu e houve mudanças, a partir do qual se melhorou o salário e a distribuição de renda”. Trata-se de um dos aspectos centrais do discurso da Frente na reta final das eleições: reivindicar a gestão do governo de Tabaré Vásquez e expressar a segurança da continuidade e o aprofundamento das mudanças iniciadas.
A segunda ênfase assinala que Frente Ampla é a única força capaz de garantir estabilidade política e social ao país. Esse item aborda a maioria parlamentar obtida e o peso político conquistado ao vencer em 11 departamentos. A terceira apresenta as propostas de País Produtivo contidas no programa da Frente Ampla: mais equidade, mais transparência, mais desenvolvimento, mais segurança.
“Com os que pensam diferente, tentaremos construir acordos nacionais em áreas estratégicas como Segurança, Energia, Educação e Meio Ambiente, e também estaremos dispostos a marchar com os que pensam parecido em outros pontos que permitam fortalecer o pensamento e a presença de nossa força política”, resume Mujica.