Há duas décadas a área, uma antiga Usina de açúcar em Campos dos Goytacazes, foi ocupada por trabalhadores rurais organizados pelo no Movimento dos sem Terra – MST. Tratava-se de uma terra ociosa. E mais, pesava sobre a Usina a acusação de que ali foram incinerados corpos de militantes da resistência à ditadura. É possível que nem todos os participantes soubessem o significado e o alcance daquela ação. Isso é o menos importante. Estavam fazendo História. Nem sempre quem faz História tem plena consciência de que está fazendo História. Estabeleciam um laço entre a resistência à tirania civil-militar (1964-1988) e a reconstrução da democracia. Lutavam contra o latifúndio e, com o mesmo gesto, assentavam os alicerces de uma sociedade menos injusta.
Passados mais de vinte anos nos encontramos aqui, neste 6 de dezembro de 2023, acolhidos pelos assentados. Registro que daqui a quatro dias serão celebrados 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU.
Volto ao chão onde pisamos, o decreto de desapropriação para fins de Reforma Agrária foi assinado pelo Presidente Lula, em janeiro último. Viemos em alguns poucos carros particulares e três ônibus. Dois do Rio e um de Vitória. Outros, organizados pelos movimentos populares de defesa dos Direitos Humanos, de Campos e Petrópolis.
Alguns dos assentados que nos acolhem são filhos dos primeiros ocupantes, como esse adolescente, negro, Mateus Guedes, filho de Cícero Guedes líder assassinado em 2013 que dá nome ao assentamento. Sua presença aqui de algum modo prolonga o sopro de vida que emana das lutas de seu pai.
Antes, o acampamento se chamava Oziel Alves (militante assassinado no massacre de Eldorado dos Carajás, no 17 de abril de 1996, já na vigência do regime democrático). Como se vê, a vida desses lutadores e lutadoras é marcada quotidianamente pela barbárie e pela violência do Estado durante o dia ou das milícias a soldo do latifúndio, nas horas noturnas.
As tímidas experiências liberais-democráticas no Brasil nunca conseguiram libertar-se da matriz oligárquica que historicamente preside as relações sociais e culturais do país para alcançar a base da pirâmide. Nunca encararam a superação do binômio que nos persegue e nos condena há cinco séculos: a Casa Grande e a Senzala.
Conduzidos pelo mineiro Nilmário Miranda – referência indispensável para a construção e consolidação da agenda de defesa dos Direitos Humanos no Brasil – cerca de duas centenas de pessoas foram apresentadas aos familiares dos combatentes socialistas que resistiram à ferocidade da tirania civil-militar, em defesa da democracia:
João Batista Rita Pereda, Presente!
Joaquim Pires Cerveira, Presente!
Ana Rosa Kucinski Silva, Presente!
Wilson Silva, Presente!
David Capistrano, Presente
João Massena Melo, Presente!
Fernando Augusto Santa Cruz, Presente!
Eduardo Collier Filho, Presente!
José Roman, Presente!
Luís Inácio Maranhão Filho, Presente!
Armando Frutuoso, Presente!
Tomás Antônio Meirelles Neto, Presente!
Essa reiteração que pronunciamos nos encontros onde homenageamos os lutadores e lutadoras do nosso povo, chamando-os pelos nomes, dissolve materialmente a temporalidade medida pelo estreito círculo dos relógios. Alarga ao infinito as dimensões do PRESENTE. Recusa os códigos da amnésia. Recusa curvar-se ao esquecimento. Liberta-nos da mistificação do “fim da História” como desejava Fukuyama nos primórdios da ofensiva neoliberal que devasta o mundo e prepara a emergência do neofascismo. Aqui se converte recordações em memória viva. Geradora de futuro.
É sabido que não se faz História sem paixão. Sem emoções. Ali estávamos protagonizando um encontro, atando um laço, um nexo entre as lutas de resistência contra a ditadura civil-militar e as lutas quotidianas do mais significativo movimento de massas do Brasil contemporâneo, o MST, nesta segunda década do século XXI.
Nenhum movimento de trabalhadores no Brasil, ao longo da história, percebeu com mais clareza seu papel de educador político de sua classe, no sentido que lhe atribui Paulo Freire. Estendidos no chão, demarcando o espaço do púlpito, absolutamente horizontal estão os frutos do trabalho, as flores necessárias para amenizar os ásperos da vida e das lutas, os frutos da terra e do trabalho e a memória dos que lutaram antes de nós: fotos com os rostos dos lutadores e lutadoras do povo de todas as idades, que inspiram as lutas que travamos hoje.
Os fatos históricos relacionados à Usina Cambahyba reforçam a percepção histórica da permanência dos vínculos entre a exploração do trabalho, a resistência dos trabalhadores ao regime civil-militar e a luta pela reconstrução da democracia.
Esse é o sentido mais profundo do vínculo com as lutas que travamos há séculos, conduzidas pelo fio da memória: para superarmos o binômio que historicamente nos aprisiona – Casa Grande &Senzala – para alcançarmos a sociedade democrática que almejamos. É incontornável democratizar a base física da nação: a terra, por meio da Reforma Agrária Popular.
A permanência dessas lutas vem confirmar o equívoco daqueles que imaginam se tratar de uma luta pelo passado. Uma luta anacrônica, ultrapassada pela marcha da História. Nesse país que traz consigo sempre a vocação para o absurdo, estamos falando de um passado que assalta o presente e nele se perpetua como uma condenação.
Portanto, não nos enganemos, não se reconstruirá a democracia brasileira sem esse recurso à memória das lutas, como fazemos neste 06 de dezembro, contra a dominação de classe, do patriarcalismo e seus derivados: o racismo, o sexismo, o preconceito no país onde uma elite econômica herdeira da pilhagem, do tráfico de pessoas e da exploração do trabalho escravo se especializou na produção industrial do esquecimento.
Abrimos aqui uma batalha em torno da memória e História das lutas pela emancipação dos trabalhadores que percorrerá todo 2024, no momento dos sessenta anos do golpe civil-militar que violou a Constituição de 1946, depôs pela força das armas um presidente legítimo, eleito pelo voto, e impôs uma tirania que anoiteceu o país até 1988 quando voltamos a contar com uma nova Constituição.
Depois de tudo que ouvimos sob as tendas que nos protegiam do sol: os depoimentos dos familiares dos mortos e desaparecidos da ditadura, os marcos históricos dos anos de chumbo recuperados pelos testemunhos de homens e mulheres maduros que nutrem a indignação e os discursos dos jovens que nos sucedem; depois de ouvir a poesia necessária como o bálsamo sobre o coração daquelas pessoas, me integro à caminhada rumo aos fornos. Uma caminhada de 500 metros até as ruínas, ao pé das gigantescas chaminés que resistem contra o azul da tarde.
É como se caminhasse pra dentro do peito. E percorresse mais uma vez os dias e noites da véspera de minha morte, os círculos do inferno, os contornos dos lugares por onde transitaram os corpos trucidados dos militantes, tragados para um caminho sem retorno: o ladrilho dos fornos e das cinzas. Arrastados para lugar nenhum. Incinerados.
E, sobrevivente, evocar talvez pra meu consolo, o verso de Dante:
“Mas fixa o olhar no vale, pois já vem
do sangue o rio, onde é o réu fervido,
quem na vida foi violento contra alguém.” (Canto XII, 48)
Enquanto seguimos na luta quotidiana para que amanheça o dia da justiça.
Pedro Tierra é poeta. Ex-presidente da Fundação Perseu Abramo.