“Está gostando da sua estadia na África do Sul? Ah, você tinha que ter vindo para cá há 10 anos, antes desses negros assumirem o poder. Naquela época sim isso aqui era o paraíso!”
Quando ouvi essas palavras entrei em um estado quase que catatônico. Eu morava na capital sul-africana há apenas cinco meses e, apesar de já ter me engajado em dezenas de debates com colegas de faculdade sobre o tema do Apartheid, ainda não tinha vivenciado pessoalmente a crueza do pensamento daqueles que sentem saudade do regime de segregação racial imposto à imensa maioria da população daquele país, entre 1948 e 1994.
A perda do paraíso para o interlocutor acima foi a democratização da nação, realizada após a ascensão de Nelson Mandela ao poder. Antes desse dia, a minoria branca (cerca de 10% da população) controlava não só os rumos do país, mas também toda a riqueza do território, tomado da população originária negra pelas colonizações inglesa e holandesa.
Oficialmente o regime do Apartheid tinha como objetivo isolar as diferentes etnias presentes no país (oficialmente classificadas como “brancos”, “negros”, “de cor” e “indianos”), pois para seus formuladores elas se desenvolveriam melhor sem conviverem no mesmo território.
Paraíso para quem?
Esse discurso oficial nunca conseguiu esconder, porém, o caráter de classe do regime.
Com o controle total da exploração das valiosas minas de ouro e diamantes do país em suas mãos, o regime criou verdadeiras “ilhas” de prosperidade no território sul-africano onde os negros eram proibidos de morar.
Pretória, a capital administrativa, é o melhor exemplo do modelo de “desenvolvimento” defendido pelos partidários do antigo regime. A cidade funcionava (e em parte ainda funciona) como uma espécie de condomínio fechado, com ruas arborizadas, casas luxuosas, universidades, escolas e hospitais de alto nível – disponíveis para todos os cidadãos. Brancos, que fique bem claro. Os não-brancos eram simplesmente considerados cidadãos de classe inferior. Nos arredores dessa ilha de prosperidade ficavam as chamadas townships – imensas favelas criadas com o propósito de manter a população negra afastada dos brancos.
Afastada, mas não tanto
Apesar de desejarem a maior distância possível dos negros, a população branca padecia do grande “inconveniente” de precisar deles. Afinal, alguém tinha que limpar as ruas, fazer o serviço doméstico, consertar os luxuosos carros importados e aparar os impecáveis jardins de suas mansões. A África do Sul quase chegou a ser, inclusive, o primeiro país africano a possuir um sistema de trens bala, devido a conveniência desse tipo de transporte, que permite levar as townships cada vez mais longe das cidades dos brancos, ao mesmo tempo que garante uma comutação de trabalhadores em tempo razoável.
Qualquer semelhança com a região dos jardins de São Paulo, com a Zona Sul carioca e com o Plano Piloto, de Brasília, não é mera coincidência.
Quando me horrorizei com a sinceridade do interlocutor racista do início do texto, não tinha percebido a semelhança do pensamento dele com o da elite brasileira. Afinal, o horror que ele deve ter sentido com o fim do regime segregacionista de lá é o mesmo que sentem esses dignos senhores e senhoras com as conquistas das classes populares no governo Lula. Eles que tentam de todas as maneiras dizer basta ao aumento do número de passageiros nos aeroportos, à entrada dos filhos dos trabalhadores nas universidades, ao aumento do trânsito causado pelos novos carros daqueles que há pouco tempo não tinham condições de comprá-los.
Neste sentido, a ideologia racista do Apartheid caiu como uma luva para a concretização do modelo de cidade ideal para o sistema capitalista. Um modelo que separa fisicamente as elites das classes operárias, excluído os trabalhadores das regiões centrais fora do horário comercial, mas permitindo seu deslocamento para a exploração de sua mão-de-obra.
Não é por coincidência que as potências capitalistas ocidentais, notadamente os EUA, apoiaram – ora de forma velada, ora escancarada – o regime racista que durou quase 50 anos, ao mesmo tempo que chegaram a classificar o líder da resistência como “perigoso terrorista”.
Esse líder completa hoje 94 anos, já com a saúde bastante fragilizada. Sua resistência de quase 30 anos na prisão inspirou e estimulou milhares de negros sul-africanos a saírem às ruas para exigir o fim do Apartheid. Homem que, num gesto de grandeza aceitou dividir o Prêmio Nobel da Paz de 1993 com o último presidente do regime racista, em nome da reconciliação nacional que defendia. Sua trajetória de vida o fez ser reconhecido como o Pai da Nação em seu país e ele passou a ser chamado por negros e brancos de Madiba – uma forma respeitosa usada entre as pessoas do povo Xhosa, do qual ele é membro. O dia 18 de julho passou a ser uma data oficial comemorativa e é conhecido atualmente como “Mandela Day”.
Mesmo que os governos de seu partido, o ANC, tenha falhado na construção de uma política mais efetiva no combate à pobreza e, principalmente, à imensa desigualdade reinante no país, sua luta foi fundamental para a conquista da democracia nos países africanos e para a desconstrução do ideário segregacionista dentro e fora da África do Sul.
Por essas e outras, vida longa Madiba!
* Rodrigo Mathias é jornalista, redator do site da DS e viveu entre 2003 e 2005 na África do Sul.