Dr. Rosinha *
O escritor norte-americano Mark Twain teve a ingrata tarefa de desmentir notícias acerca de sua própria morte. Twain estava em Londres quando surgiram os boatos sobre o seu falecimento. Convocou a imprensa e, com sua habitual ironia, afirmou: “Os rumores sobre a minha morte foram grosseiramente exagerados”.
Com o Mercosul se passa algo semelhante. Desde o nascimento, vaticinam seu falecimento iminente.
Desde a época da assinatura do Tratado de Assunção, que em 1991 criou o Mercosul, não faltaram ironias. Alguns afirmavam que se tratava de uma união “dos rotos com os esfarrapados”. E faziam críticas ácidas em relação à suposta inviabilidade de um bloco fadado a ser absorvido em processos de integração mais amplos com países desenvolvidos.
Ao longo dos anos, também não faltaram aqueles que defenderam reiteradamente que o Mercosul renunciasse a sua união aduaneira e se transformasse numa mera área de livre comércio.
Tais vozes sempre apregoaram como fútil e irrelevante a integração regional e, com frequência, tentavam demonstrar que o Mercosul estava moribundo. Consideravam o Mercosul um arcaísmo “terceiro-mundista”, e sonhavam com a miragem neoliberal da Alca (Área de Livre Comércio das Américas).
Apesar de suas fragilidades e problemas, o Mercosul está hoje, duas décadas depois, mais vivo do que nunca.
Os boatos sobre a sua irrelevância e seu suposto “peso” para os países-membros não só são grosseiramente exagerados, mas também inteiramente falsos. São fruto da desinformação e de posição ideológica.
Nos últimos tempos, aumentou o tom do discurso dos “mercocéticos”, que apregoam a volta da desagregação regional e a necessidade do Brasil investir apenas no livre comércio com as nações mais desenvolvidas. Pregam a “flexibilização” do Mercosul. Nas eleições de 2010, o então candidato José Serra classificou o bloco como “uma farsa”.
Inspirado na experiência da União Europeia, o Mercosul foi concebido, desde o início, para ser um verdadeiro mercado comum, o que implica, necessariamente, a constituição da união aduaneira, mediante a Tarifa Externa Comum (TEC).
Por isso mesmo, o Tratado de Assunção –cuja leitura recomendo aos mercocéticos demotucanos, alguns diplomatas aposentados, jornalistas, etc.– estabelece, logo no seu artigo 1º, que a adoção de uma tarifa externa comum e de uma política comercial comum em relação a terceiros Estados são dimensões essenciais e constitutivas do processo de integração.
Sobre tal base, estão assentados outros vetores importantes desse processo: a livre circulação de pessoas, a harmonização das legislações, a constituição de instituições supranacionais e, sobretudo, a formação de uma cidadania comum. Este último vetor tem ganho uma ênfase nos últimos seis anos.
Além da união aduaneira, ainda que imperfeita e incompleta, e da política de representação conjunta frente a terceiros Estados, mesmo que eventualmente pouco coordenada, hoje o Mercosul já tem em funcionamento instituições típicas de um mercado comum, como o Focem (Fundo para a Convergência Estrutural e Fortalecimento Institucional do Mercosul). Destinado a corrigir assimetrias, o Focem financia projetos de desenvolvimento nas regiões pobres.
Já o Parlamento do Mercosul tem, como uma de suas atribuições, a de ajudar na correção do déficit democrático.
Evidentemente, os mercocéticos têm todo o direito de defender a ideia de que o Mercosul tem de ser flexibilizado e deva ser apenas uma área de livre comércio. Mas é preciso que fique claro que, nesse caso, o Mercosul deixaria de ser Mercosul. Seria uma espécie de Área de Livre Comércio do Sul, que poderíamos, para ficar na moda imposta pelos Estados Unidos, chamá-la de Alcasul.
Para tanto, o Tratado de Assunção teria de ser renegociado e todas as instituições, acordos, protocolos e processos construídos até agora teriam de ser revistos. Áreas de livre comércio, além de ter de prescindir da TEC e das negociações conjuntas, também têm de renunciar às instituições supranacionais e à livre circulação de pessoas. Seria uma “flexibilização” sem volta.
O Parlamento do Mercosul, concebido à semelhança do Parlamento Europeu e destinado a representar e construir uma cidadania comum, perderia inteiramente a sua razão de ser.
É preciso que todos os parlamentares tenham clareza quanto a esta questão. A Alcasul prescindiria de um verdadeiro parlamento. Afinal, as áreas de livre comércio –como a do Nafta–, não constroem cidadania, constroem muros.
Assim como Mark Twain, o Mercosul continua reiteradamente desmentindo os rumores grosseiramente exagerados de sua morte. E, para o desespero de alguns, demonstra vitalidade.
* Médico pediatra, deputado federal (PT-PR) e ex-presidente do Parlamento do Mercosul (http://www.twitter.com/DrRosinha). Artigo extraído do portal Carta Maior.