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Raul Pont: “A luta socioeconômica, a luta das condições de vida do povo, essa é a nossa luta neste momento”.

Foto: Guilherme Santos/Sul21

A Rede Soberania entrevistou o historiador Raul Pont na última quarta-feira, 9, colocando em pauta a análise aos primeiros dias do Governo Federal sob a gestão Bolsonaro. Quadro histórico do Partido dos Trabalhadores (PT), do qual é membro fundador, Pont tem a vida dedicada à militância social. Foi prefeito de Porto Alegre, deputado estadual e federal.

Qual a sua visão sobre os primeiros dias de governo?

Raul Pont – O governo vem tomando as medidas que anunciava, ou que se prenunciava pelo código político, pela posição e compromissos de figuras como  Bolsonaro, Paulo Guedes e a equipe do Moro na Justiça. As medidas iniciais já dão um sinal a todos nós, que não podemos ter nenhuma ilusão. O ataque ao salário mínimo, que por si só já é pouco, evidencia isso. A política de crescimento acima da inflação que predominou num acordo com as centrais sindicais durante o governo Lula e Dilma estancou. Com o Temer já vinha sendo reajustado abaixo da inflação e agora mesmo aquela “merrequinha” que havia sido aprovada pelo congresso, foi sancionada diferente. O salário mínimo ainda não alcançou os mil reais no país, isso já é um exemplo concreto. Vimos antes mesmo da posse o ataque ao programa mais médicos, que talvez seja o programa mais exitoso de atendimento de saúde básica que foi criado no país.

Nós estamos vendo o que está acontecendo no campo, com o MST e com os sindicatos de trabalhadores rurais, ampliou-se o assassinato de lideranças sem que a polícia, que antes era tão competente consiga desvendar, nem estabelecer nenhum nexo de responsabilidade. Então é um governo claramente anti-popular, anti-povo, anti-nação e esse é o elemento central. Tem uma série de outras questões que criam uma cortina de fumaça hoje no debate, que o governo vem insistindo, a chamada pauta ideológica. Não que isso não seja importante – nós temos que travar esse debate -, mas não podemos nos atrapalhar no sentido de perder o foco central que é a defesa dos assalariados, dos trabalhadores, o ataque à previdência. Hoje a previdência é pública, estatal, baseada na solidariedade entre gerações, mas a cabeça de Paulo Guedes é a cabeça dos Chicago Boys, ele quer uma previdência igual à do Chile, de capitalização individualizada, que é uma tragédia, significa destinar aos pobres, aos trabalhadores no final de sua vida a condição de disputar lugar de esmolas na frente da igreja.

Como você interpreta o corte de R$ 8 no salário mínimo?

Eles apresentaram um cálculo para justificar esse corte de R$ 8,00 afirmando que esse valor representaria um déficit para o governo de R$ 300 milhões. Ora, o que R$ 300 milhões num país que tem um PIB do tamanho do Brasil e um orçamento de um R$ 1,5 trilhão compreende, é ridículo. Eles trabalham com números completamente fantasiosos e passam essa ideia de que esses números correspondem a previdência no regime geral, que hoje mais de 70% dos segurados recebem salário mínimo. O grande déficit está no regime próprio da previdência, onde só tem privilegiado, e um conjunto de privilégios que são sustentados pelo orçamento público e o Guedes agora vem dizer que vai resolver tudo isso com o regime geral em um novo sistema de capitalização individual. Algo que não dá certo em lugar nenhum no mundo, dá certo apenas para aumentar a exploração. Aliando isso com o problema da idade mínima que está se colocando, realmente não vai ter mais aposentado no Brasil, ninguém vai chegar lá com as médias de idades que nós temos e com a ausência da possibilidade das pessoas ficarem um tempo considerável no mesmo emprego, a rotatividade e o período que você fica desempregado leva a uma situação que para contar o tempo de contribuição e o tempo mínimo de vida exigida, não dá nunca, o cara morre antes. Estas políticas são o centro desse governo, contra o povo, a favor dos banqueiros, a favor dos ricos. É um governo entreguista, que está nos remetendo a voltar a ser uma colônia, não mais de Portugal ou da Inglaterra, mas um quintal dos Estados Unidos.

Parece haver um descompasso entre as correntes política, financeira e militar que compõem o novo governo. Qual sua avaliação sobre isso?

No geral podemos identificar este governo como ultraliberal, pelas medidas impostas pelo Paulo Guedes. Quando eu digo “ultra” é no sentido de ser mais radical ou ir além do período nefasto que já vivemos com o Fernando Henrique, e com o Collor: o período de maior entrada no país, de uma política de colocar o Brasil exatamente na mesma linha daquilo que ocorreu nos EUA, Inglaterra, e União Européia, a partir do neoliberalismo, uma linha de ruptura com o estado de bem estar social, que no Brasil nunca chegou a se instalar. Naquele período (anos 90) a capacidade de resistência do PT, da CUT, do MST, dos movimentos sociais conseguiu impedir o pior da pauta neoliberal e, com a vitória do Lula, conseguiu se reverter essa política. Evidente que isso não foi feito sem nenhum erro, sem nenhum problema. Teve erros, teve problemas, alguns mais justificáveis, outros menos, e, é esse balanço que nós temos que fazer junto com a resistência a esse governo que está aí. Nós não podemos reagir de uma forma simplista.

O golpe de 2016 é mais uma prova. Nós já tínhamos vivido aqui outros momentos para saber que a classe dominante, a burguesia industrial e financeira brasileira não é democrática, não aceita o processo democrático, em que você possa efetivamente usar a democracia para ter conquistas, para ter avanços, para melhorar a distribuição de renda, pra se aproximar daquilo que chamamos de estado de bem estar social. É uma burguesia golpista, escravista, conservadora e racista. Agora o central mesmo deste governo é este miolo onde o cerne é o Paulo Guedes, com o Santander no Banco Central, o Levy no BNDES – que já era um traidor lá dentro da trincheira com a Dilma. Foi um equívoco, um erro, e esse é dos problemas que eu digo que temos que nos recuperar, não permitir que em um próximo governo nosso, tenhamos a mesma política de alianças: levar um tipo como o Levy que sempre esteve a serviço dos banqueiros pra ser o sujeito que ia comandar a economia brasileira, com a crise que cercava o governo Dilma naquele momento… Nós tínhamos companheiros com muita capacidade de encontrar saídas que não fossem aquela da austeridade, do ajuste e corte de investimentos que ele praticou prometendo que iam ser dois ou três meses e nos levou para um buraco brutal, do qual não saímos mais e que ajudou muito no isolamento político do governo e a perda de confiança dos trabalhadores

Mas esse não é um governo isento de contradições, temos nesse governo energúmenos como o Mourão, mas temos também militares como Geisel, e não tenho nenhum problema de falar sobre o Geisel, eu fui preso político então não tenho nenhum problema de falar disso… veja bem, o plano de desenvolvimento do governo Geisel não tinha nada a ver com o desses sujeitos que estão aí no governo.

Onde foram o parar os militares nacionalistas, que eram comprometidos com a política progressista no país?

Raul Pont – Essa é uma das contradições que nós vemos, o predomínio dessa pauta ideológica levada para dentro dos quarteis. Eu não sou especialista na área, não estou lá dentro da academia pra ver como são educados os cadetes, não estou no clube militar pra saber como são formados. Agora, imagino que nas forças armadas, mais cedo ou mais tarde alguém vai começar a ver que entre jurar bandeira e se enrolar na bandeira e ir de verde-amarelo para o Parcão ou para a Paulista, há uma contradição com o que a economia está fazendo. Quer dizer, ou eles deixam de usar o verde-amarelo, ou deixam de ser enganadores oportunistas, meramente ideológicos. Ainda tentam justificar isso com algo completamente anacrônico, a Guerra Fria acabou há 50 anos, a URSS já não existe há 30 anos.

Mas eu estou enunciando a contradição, estou mais preocupado que o campo democrático e popular, o campo sindical, dos trabalhadores, das associações de moradores, dos movimentos de juventude. Nós é que precisamos mostrar essa contradição, enunciá-la. A contradição existe independente de nós, então precisamos fazer com que ela comece a aparecer como força política, materializar isso como força política. O movimento popular e o movimento sindical precisam assumir essas contradições. Nesse momento a CUT tem que centrar fogo na defesa de um salário mínimo constitucional, exigir que a pessoa tenha um salário que lhe dê condições mínimas de sobrevivência física. Hoje esse salário que está aí não garante a sobrevivência física. Não é só a questão da comida, a sobrevivência física no capitalismo que nós vivemos – altamente urbanizado – exige que tu tenha que ter transporte, telefonia, energia elétrica, redes sociais, etc. Essas coisas hoje deixaram de ser uma perfumaria, elas estão incorporadas no custo de reprodução de um cidadão qualquer. Entre aluguel, comida, vestuário, transporte, higiene, saúde, com mil reais ninguém consegue chegar no fim do mês. Hoje em dia, na sociedade latino-americana urbanizada, não há diferença do ponto de vista de custos de um trabalhador da Europa, de um trabalhador dos EUA.

Não podemos cair nas esparrelas que querem nos colocar, como as bobagens da ministra Damares. Nosso foco é a luta da sobrevivência, a luta de classes, luta por melhores salários, emprego, moradia… Esses são os grandes temas que toda a esquerda, todo o movimento popular deve se focar, pra que essas contradições comecem a aflorar, e vai aflorar desde a luta pelo salário até o problema de porque os militares brasileiros são tão sabujos, tão subordinados a ideologia americana. Como é possível alguém que é candidato a presidência da República bater continência ao Trump? É uma perda absoluta de dignidade pessoal, do cargo a que se propõe. É essa visão de colônia que esta incrustrada dentro das forças armadas.

Qual sua avaliação sobre a retirada do Brasil do Pacto global de migração da ONU?

É uma estupidez. É essa visão que confunde. Quando você tem uma visão de estadista num mundo complexo como o que vivemos, você não pode tratar as coisas com preconceito, tratar as coisas com primarismo. Não é gratuito que o novo chanceler está com 30 anos de casa e nunca teve um posto importante no Itamaraty, por que é um maluco simplesmente. Mao dizia que quando as pessoas lêem muito e não tem nenhuma experiência concreta de vida, ficam idiotas. O caso deste é típico. Nunca teve nenhuma vivência concreta e agora está experimentando a condição de chanceler. Imagina a festa que eles fizeram para primeiro ministro de Israel, que tem 2 ou 3 contratos com o Brasil do ponto de vista de armamento e etc, mas a nossa relação econômica do ponto de vista de país com o mundo árabe é incontavelmente superior e o sujeito confunde a condição de premier, a condição de chanceler, a condição de estadista com suas idiossincrasias pessoais, com seus comportamentos mesquinhos. Quer dizer, será esse débil mental não sabe que nos últimos 40, 50 anos saíram mais brasileiros pra fora do que vieram migrantes para dentro do país?

E sobre a participação do MDB no governo?

É talvez o exemplo mais claro do fisiologismo politico, da degradação, da degeneração político-programática de um partido. Daqui alguns anos certamente vai se transformar num caso singular, daqueles casos clássicos do estudo da ciência política, sobre como um partido pode chegar nesse nível de degeneração, até virar um aparato completamente fisiológico. Você imagina um partido com o maior número de prefeitos, o 2º com o maior número de deputados, maior número de senadores, maior número de deputados estaduais em todo o país e consegue fazer 1% dos votos na eleição em 1º turno paro seu candidato à presidência? Ali na eleição do Meirelles já ficou evidente que além de fisiológico, é um partido traidor, é um partido que não tem a mínima espinha dorsal, a política passou a ser puro negócio, puro oportunismo. É um partido que está em crise profunda, não vai desaparecer por que se alimenta nos pequenos municípios, com as associações comerciais que fazem política sem ser partido, os Lyons Club, os Rotary Club… Essas coisas são o campo onde eles mantém uma implantação social e vão continuar elegendo vereadores e deputados, mas sem nenhum critério programático, é um plasma que vai se adequando, completamente liquefeito, que vai se aprumando, se ajeitando em qualquer condição.

Qual a tarefa do PT e da esquerda para o próximo período?

Raul Pont – Temos que resistir a essas políticas, a esses programas. Toda a militância do partido, quem está na CUT, quem está nos movimentos sociais, a juventude, têm que trabalhar as lutas concretas. A juventude tem que defender o ensino público gratuito. Se não defender os institutos federais, as universidades federais, elas podem ser privatizadas, não num sentido clássico, sendo vendidas, mas passando a ser pagas. Alijando milhares e milhares de pessoas que hoje chegam a universidade graças ao seu caráter públicos e graças também à política de cotas, às políticas que foram criadas nas últimas décadas exatamente para compensar e contrastar as desigualdades e iniquidades históricas que marcam o país.

Eu acho que a juventude tem que estar lá nessa luta, os sindicatos na luta pelo salário, pela recuperação dos direitos trabalhistas, essa é a nossa luta e precisamos fazer isso da forma mais unitária possível, com uma coordenação permanente dessas forças, nos estados e municípios, para a gente poder enfrentar efetivamente essa disputa que não será fácil. É claro que terão consequências daqui a dois anos para as eleições municipais, vão surgir problemas, mas nesse momento acho que essa é a grande tarefa que podemos através da Frente Brasil Popular e da Frente Povo Sem Medo, dessas frentes mais amplas que a gente organiza na sociedade e fazer uma ampla defesa da democracia, uma ampla defesa das lutas gerais da sociedade, incorporando setores mais amplos.

Do ponto de vista político partidário, na minha opinião precisamos centrar fogo na organização. O mais importante nesse momento é ter uma frente permanente, porque isso vai ajudar a ver quem é quem. Temos visto que se não se constrói isso, a dinâmica eleitoral em cada município,  em cada estado acaba entrando também na vida dos partidos de esquerda e aí começa a aparecer o atalho, o caminho mais curto e ali já começa um processo de diluição programática, diluição ideológica. Acho que isso não elimina o problema, mas ajuda muito a ser resolvido. Podemos chegar em cada município, em cada estado com um grau de confiança, de lealdade, de trabalho comum em conjunto muito mais consolidado para a gente se apresentar nos processos eleitorais. Que no meu ponto de vista nesse momento não deve ser considerado a coisa mais importante. Tem papel, tem que ser feito, não podemos abrir mão das representações, mas nesse momento nós precisamos é travar a luta socioeconômica, a luta das condições de vida do povo, essa é a nossa luta, é aí que os movimentos sociais, os partidos e os sindicatos tem que trabalhar.

Publicado originalmente em Rede Soberania.

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