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Soviet ou Assembleia Constituinte?

Ao longo dos doze meses que correram entre a deflagração da revolução que derrubou o czar em fevereiro de 1917 até janeiro seguinte quando se instala a Assembleia Constituinte, a conjuntura política russa tinha sofrido mudanças dramáticas.

A dualidade de poderes, a disputa entre governo provisório e soviet, tinha sido resolvida em favor do segundo.  Mas em algo convergiam um de outro, o compromisso de convocar uma Assembleia Constituinte.  Tanto que o decreto do Soviet que formou o primeiro governo sob a presidência do Lenin dizia que teria a tarefa da “administração do país, de agora em diante, até a convocação da Assembleia Constituinte”.

As eleições para Assembleia Constituinte se realizaram entre 12 e 14 de novembro. Sua instalação se dá no dia 5 de janeiro.

Para os bolcheviques – que tiveram expressiva votação, mas junto com seus aliados estariam em minoria na Assembleia frente às correntes moderadas – seus resultados expressavam uma conjuntura que já tinha sido superada pelos acontecimentos posteriores à instalação do primeiro governo soviético. Significaria voltar às vacilações e traições do governo provisório, provocando agora uma dualidade de poderes regressiva. Propuseram então que como primeiro ponto da pauta que a Assembleia aprovasse uma “Declaração dos direitos do povo trabalhador e explorado” que definia os parâmetros a partir dos quais essa instância passaria a deliberar, respeitando o rumo já definido pelos soviets.  Como a maioria rejeitou, os Soviets decidiram sua dissolução, ao dia seguinte de sua instalação.

ECONOMIA DA TRANSIÇÃO SOCIALISTA – POR CLÁUDIO PUTY

Os bolcheviques, após a vitória espetacular de Outubro de 1917, encontram um país assolado pela fome e por três anos de guerra. A partir dali a fração, até então minoritária entre os revolucionários russos, teve que se deparar com os problemas teóricos e práticos da transição socialista, que até então haviam sido tratados de forma tangencial.

A maneira como o governo revolucionário tratou das novas tarefas, particularmente a transformação econômica de uma Rússia atrasada, arcaica e convulsionada, reflete, em grande medida, respostas dos comunistas às dramáticas condicionantes conjunturais dos cinco primeiros anos da revolução. Mais do que seguir à risca um programa, em grande medida inexistente, a resposta bolchevique foi fruto de debates fervorosos no interior do partido, e cuja resultante foi um misto de flexibilidade tática, sempre ajustada às condições concretas, e uma firmeza nos objetivos – notadamente, a consolidação da primeira experiência socialista da história.

Esse programa em construção e em movimento, em seus primeiros anos, já refletiu questões ainda hoje controversas nas experiências da esquerda no governo.  Ainda que seja difícil extrair lições teóricas de experiências particulares e, portanto, historicamente localizadas, os anos da Revolução sob comando de Lenin trataram sob o ponto de vista econômico fundamentalmente de como realizar um governo de transformação social frente ao fracasso da revolução internacional, em um país sitiado pelas forças da reação e do imperialismo.

Nesse contexto, enfrentaram, de maneira surpreendentemente eclética, e antes que qualquer experiência keynesiana, de pelo menos duas questões que persistem até hoje. Em primeiro lugar, do papel do estado na economia frente à necessidade de mobilizar capitais para o esforço de reconstrução nacional e de industrialização. Em segundo lugar, da convivência de princípios reguladores distintos no sistema econômico-  um sistema de preços de produção (refletindo a lei do valor) em uma economia planificada. Isso se tornou um problema prático perante a necessidade de garantir um fornecimento estável de alimentos e estabilidade política no campo, em pais de população majoritariamente agrária. Como pano de fundo às duas questões, a não menos importante relação entre política econômica eficiente e democracia (socialista), preocupação perene nos primeiros anos do poder soviético.

Esses dois temas foram amplamente debatidos e enfrentados em quatro momentos distintos até a morte de Lenin: em novembro de 1917, imediatamente após a tomada do poder, em março de 1918, no momento da assinatura do tratado de Brest-Litovski, a partir de junho de 1918, no chamado Comunismo de Guerra e, finalmente, a partir de 21 de março de 1921, pela Nova Política Econômica (NEP), abolida por Stalin em 1928.

Apesar do conjunto resultante de políticas implementadas jamais ter sido consensual entre os mais destacados líderes intelectuais da revolução – Trotsky, Bukharin, Preobrajenski, dentre outros –  a liderança de Lenin foi fundamental na sua elaboração e na garantia de unidade política em sua implementação.

Como sabemos, Lenin havia esboçado nas Teses de Abril de 1917, alguns elementos que guiaram a ação imediata do novo governo após a tomada do palácio de inverno. Todo poder aos sovietes, substituição dos aparelhos repressores e burocráticos do estado burguês pela administração dos trabalhadores, expropriação dos latifúndios, estatização dos bancos e, centralmente, o fim da guerra.

Lenin, em O Estado e a Revolução, segue o Marx de A Guerra Civil em França e advoga a ideia de democratização profunda da sociedade a partir da gestão do estado de “baixo para cima” por conselhos de trabalhadores. O princípio organizador era o Soviet/Comuna como organismo executivo e legislativo, constituindo estado desburocratizado a partir de gestão coletiva do “trabalhador comum”.

Logo após o Outubro, o novo governo passa a estatização dos bancos, expropriação dos latifúndios, iniciando o que seria um processo progressivo de controle dos soviets sobre a economia. Esse processo foi suspenso no início de 1918, quando Lenin retomou a tese do “capitalismo de estado” de setembro de 19171, cujo principal objetivo era garantir as bases de recuperação econômica a partir da retomada das condições de produção e garantia da capacidade de planejamento mínimo. O plano, amplamente controverso, envolvia controle estatal de setores estratégicos no processo de transição e mobilização de capitais industriais privados, inclusive externos, no esforço emergencial de industrialização. Esse “Brest-Litovski econômico”, seria, nas palavras do próprio Lenin, um recuo tático, mas um enorme avanço perante as condições econômicas da Rússia de 1917/18.

A eclosão da guerra civil e a frustração na mobilização de capitais privados, levou o governo soviético a um regime econômico militarizado, o Comunismo de Guerra, onde a prioridade foi garantir o estoque de alimentos para as cidades e a retaguarda necessária para o exército vermelho na luta contra a burguesia e seus aliados. Passou-se então à estatização de todas indústrias, controle rígido sobre o comércio exterior, disciplina militar no trabalho e a prodrazvyorstka, coleta obrigatória por decreto do excedente de grãos para fins de abastecimento.

“O camarada Lenin limpa a Terra da escória” – 1920

A política do comunismo de guerra foi bem-sucedida para os seus fins – vencer a guerra civil e a invasão imperialista –, mas, obviamente, em um pais basicamente camponês, causou enormes conflitos e rebeliões em áreas rurais, e inclusive entre a própria base urbana da revolução, representada pela revolta de Kronstadt, em março de 1921.

A tensão insustentável no campo – a fome ao longo do Volga, que matou cerca de 5 milhões de pessoas – e finalmente a paz após três anos e meio de guerra, levaram Lenin, contra a posição de Trotsky e Preobajensky,  a retomar sua proposta de Capitalismo de Estado. O 10o Congresso do Partido Comunista de Toda Rússia aprovou o estabelecimento de um imposto em espécie (prodnalog) sobre a produção agrícola, em lugar do recolhimento compulsório de todo o excedente. Inaugurava-se ali a NEP.

A NEP, estabeleceu uma economia mista, com o restabelecimento de relações mercantis entre o campo e a cidade, permitiu propriedade privada no campo e investimento privado em algumas indústrias, além de incentivos aos pequenos empreendimentos (os Nepmen). Como resultado, houve uma rápida recuperação da produção agrícola e aumento do investimento, diminuindo a tensão social.

Entretanto, a dinâmica da NEP criou novas contradições.  Os desequilíbrios entre uma pujante oferta de alimentos e uma indústria pouco produtiva levaram a quedas na renda dos camponeses, que não conseguiam mais adquirir produtos industrializados e começaram a reverter sua produção para subsistência. O enriquecimento dos Nepmen e dos agricultores empresariais – o Kulak era visto como uma ameaça à aliança entre operários e camponeses, base da revolução. Por outro lado, o Estado, controlador de grande parte da produção industrial, encontrava-se cada vez em mãos de uma tecno-burocracia especializada.  Crescia o medo que a NEP, de recuo tático, promovesse um caminho sem volta ao capitalismo;

Particularmente após a morte de Lenin em 1924, Trotsky, Preobajensky e Bukharin, ainda que com posições diferentes, ecoaram as preocupações derradeiras de Lenin com a crescente burocratização do Estado soviético e o como garantir que a transição para uma economia socialista se desse com radicalização democrática.

Preobajensky alertava que a economia soviética não poderia compatibilizar, se quisesse uma verdadeira transição para o socialismo a planificação e a lei do valor, ou seja, o mercado capitalista. Advogava uma acumulação de capital socialista sob forma de transferências de poupança da agricultura para a indústria, o que exigiria o avanço de formas socialistas de produção no campo. Além disso, em posição similar a de Trotsky, defendia que a gestão da economia tivesse nos sindicatos um papel fundamental como centro de decisão e democracia, em uma defesa do planejamento democrático.

A ideia da acumulação primitiva socialista de Preobajenski foi rechaçada por Bukahrin, por achar que isso constituiria um aniquilamento do campesinato e que a melhor alternativa política seria promover a cooperação destes com empresas estatais industriais.

O rico debate desses anos foi abortado pela coletivização forçada do campo e industrialização que se seguiu à NEP, já no âmbito do Termidor Stalinista.

Ainda hoje, muitas das polêmicas desses primeiros anos da Revolução persistem, tanto nas economias autointituladas socialistas, como nos problemas de industrialização entre países subdesenvolvidos.

Olhemos a trajetória chinesa, onde sua economia camponesa cumpre um papel central na estabilidade política do país, o controle estatal de atividades estratégicas, a promoção de empresas (estatais e privadas) “campeãs nacionais” e a gestão das divisas oriundas do comércio exterior são parte da receita de sua notável transformação industrial. Por outro lado, a consolidação de uma tecno-burocracia, os processos de trabalho autoritário, além do crescimento de uma poderosa burguesia chinesa, também nos lembram dos alertas dos críticos da NEP.

Além dos temas já mencionados, o debate econômico sobre a transição para o socialismo na jovem União Soviética envolveu questões de gestão de demanda efetiva antes das formulações keynesianas, além de debates eminentemente monetários sobre o papel do imposto inflacionário e da senhoriagem na mobilização de poupança para a industrialização. Enquanto os governos e economistas das nações capitalistas engatinhavam em dogmas como o padrão-ouro, teoria das vantagens comparativas e neutralidade da moeda, os soviéticos anteciparam o que hoje chamamos de economia do desenvolvimento.

Para ler mais:
BERTELLI, A. (org.). A Nova Política Econômica (NEP) – Capitalismo de Estado, transição e Socialismo. 1. Ed. v. 52. São Paulo: Global, 1987.
Cohen, Stephen. Bukharin, uma Biografia Política, 1888-1938. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1990.

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