Por Táli Pires de Almeida, publicado no Blog da MMM*
“Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios”: que lindo nome de filme para assistir numa tarde nublada de domingo, ainda mais protagonizado por uma atriz brasileira que coloca tanta força em suas personagens que elas sempre ganham destaque, ainda que secundárias no enredo. Camila Pitanga, mais uma vez, surpreendeu pela excelente interpretação. Esqueci da atriz e visualizei as inúmeras mulheres retratadas naquela personagem.
“Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios”: que lindo nome de filme para assistir numa tarde nublada de domingo, ainda mais protagonizado por uma atriz brasileira que coloca tanta força em suas personagens que elas sempre ganham destaque, ainda que secundárias no enredo. Camila Pitanga mais uma vez surpreendeu pela excelente interpretação, esqueci da atriz e visualizei as inúmeras mulheres retratadas naquela personagem.
Camila Pitanga é Lavínia no filme, uma mulher em conflito por estar dividida entre o amor por dois homens. Não pretendo tratar disso (não hoje). Me chamou atenção a história dessa personagem antes de seu conflito amoroso. Lavínia era uma prostituta de rua e drogada (o termo adequado seria usuária de drogas, mas para entender o drama, o estereótipo é de drogada mesmo), perdida, dormindo na rua, delirando por causa de alguma droga ou bebida e fazendo programas.
Um dia ela estava deitada na rua e pede dinheiro a um passante, que coincidentemente era um ex-usuário de drogas que se tornou pastor. Esse homem conversou com ela e por meio de seus métodos bíblicos (que não pretendo questionar aqui) fez com que Lavínia decidisse deixar a prostituição, a bebida e as drogas.
Ao contar sua história para o pastor, Lavínia relata um episódio em que estava na casa de sua mãe dormindo, quando é despertada por um homem (parente, padrasto talvez). Ela leva um susto, tenta gritar, mas o homem aperta sua garganta com tanta força que ela decide ficar quieta, enquanto isso ele passava a mão em seu corpo. Lavínia não contou o episódio a sua mãe. Após uma discussão esse homem agrediu Lavínia, “aí ele bateu, bateu, bateu, bateu, me fudeu! Só depois que eu fui agarrada pra fuder que eu comecei a entender as coisas, sabe? Aí eu comecei a ter consciência. Aí eu fui embora de casa, caí no mundo.” Nossa personagem tinha catorze anos quando “caiu no mundo”, nunca mais teve contato com sua família, a não ser em “pesadelos”. Ou seja, saiu de casa para não sofrer mais abusos, mas o meio encontrado para sobreviver foi a prostituição, depois, quem sabe, veio o contato com as drogas.
A linda, confusa e triste Lavínia me fez pensar mais uma vez na polêmica discussão sobre a regulamentação da prostituição. Mais que isso, para chegarmos a alguma conclusão é preciso um olhar mais atento, que vai além dos dados e estatísticas nas trajetórias de mulheres inseridas no mercado do sexo.
Outros filmes retratam em seu enredo situação semelhante, “Baixio das Bestas” é um deles. Numa pacata cidade do interior do Brasil há uma menina que vive com o avô e também sofre abuso e exploração sexual deste que deveria cuidá-la. A personagem traça a mesma trajetória de Lavínia, cresce, revolta-se e foge de casa para prostituir-se num posto de gasolina na beira da estrada.
Várias pesquisas dão indícios de que o abuso sexual na infância e adolescência aumenta a probabilidade do envolvimento com a prostituição, assim como a fuga do lar e abuso de substâncias tóxicas (basta colocar as palavras chaves no Google ou no Scielo). As crianças que sofrem esse tipo de violência desenvolvem uma visão distorcida do que seria o amor e o afeto.
A prostituição acaba se tornando apenas um dos efeitos perversos do abuso sexual. Não que toda mulher abusada sexualmente na infância ou adolescência se insira na prostituição, mas há que questionar a relação entre esses dois fatores. Ou seja, a cruel realidade de que milhares de crianças são abusadas por pessoas de quem deveriam receber amor, carinho e proteção. Como crianças não entendem a situação e o abuso e, ainda que incômodo, se torna uma rotina. Aquilo que deveria ser considerado uma violação, desrespeito, um crime, torna-se normal, natural, fazendo parte da vida. Então, não obrigatoriamente, penso que outros tipos de violência e abusos serão tolerados ao longo da vida, especialmente aqueles que ocorrem no espaço privado, da intimidade, tradicionalmente relegado às mulheres.
Em setembro de 2012, a companheira Rafaela Rodrigues, escreveu um excelenteartigo no Blog da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) sobre prostituição.
Os dados coletados por ela revelam que 40 milhões de pessoas no mundo se prostituem, 75% são mulheres jovens com idades entre 13 e 25 anos. É preciso destacar ainda que os dados do Disque Denúncia da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) referentes ao período de janeiro a fevereiro de 2011 demonstram que o sexo feminino corresponde à maioria das vítimas nas variadas formas de violência sexual praticadas contra crianças e adolescentes: são 80% das vítimas de exploração sexual, 67% de tráfico de crianças e adolescentes, 77% de abuso sexual e 69% de pornografia.
Essa mesma fonte afirma que no Brasil entre maio de 2003 e maio de 2011 o Disque Denúncia recebeu 66.982 denúncias de violência sexual praticadas contra crianças e adolescentes. O estado da Bahia lidera o número de denúncias (7.708 casos) seguido por São Paulo (7.297 casos) e Rio de Janeiro (5.563 casos). Essas cidades em 2014 serão sedes da Copa do Mundo e a Bruna Provazi já escreveu um texto, também publicado no Blog da MMM, que vale a pena revisitar sobre a relação entre os grandes eventos e a prostituição.
Concordo com a afirmação de Rafaela, em seu artigo, de que por trás dessa ideia de uma “livre escolha” das mulheres a prostituição baseia-se num padrão de sexualidade, de subordinação da mulher em relação aos homens. Nesse padrão de sexualidade as mulheres devem sempre estar disponíveis quando um homem desejar e assim há uma tendência em considerarmos normais alguns fenômenos em nossa sociedade: a prostituição, o estupro, a pornografia, a violência contra a mulher.
Em 2005 participei de uma pesquisa sobre tráfico de pessoas no aeroporto de Guarulhos. Durante a preparação para a pesquisa, nossa coordenadora nos deu a tarefa de conhecer uma casa de prostituição. Com as colegas de pesquisa entramos em um “inferninho” da Rua Augusta em São Paulo. Eram 19h de terça-feira, horário e dia em que a casa não estava cheia. As mulheres que estavam ali vieram conversar conosco achando que estávamos interessadas num programa. Falamos que estávamos conhecendo o local para fazer um trabalho para a faculdade. Duas prostitutas sentaram conosco na mesa e nos contaram de sua rotina. De um jeito alegre e despojado falaram dos clientes, do porque estavam ali: para sustentar a família e os filhos, abandonaram maridos controladores e violentos no interior do Brasil. Para dar conta da rotina de programas, bebiam muito e cheiravam cocaína, às vezes compravam, outras vezes o cliente oferecia.
Dá pra imaginar que esse tipo de trajetória (fuga de situações de abuso, pobreza, violência, autoritarismo) e rotina (sexo com vários clientes, uso de drogas pra conseguir aguentar) seja uma “livre escolha”?
Não pretendo vitimizar as prostitutas, tampouco torná-las exemplos a serem seguidos e reverenciados. Mas, acho que temos que refletir melhor sobre os “meandros” das trajetórias das mulheres, de como vivemos nossa sexualidade, ou melhor, como aprendemos a vivê-la, e de que maneira essa vivência nos foi imposta. Uma coisa é minha vontade de sair na rua com a roupa que for, sem ser importunada, ou transar com quem desejar. Outra é usar o corpo e o sexo para sobreviver. Sobreviver porque a realidade das prostitutas é bem diferente do glamour retratado pela mídia, nas novelas e revistas, e principalmente na visibilidade que ganham os depoimentos das mulheres que dizem se prostituir por serem libertárias e autônomas (e eu bem desconfio dessa autonomia toda).
* Táli Pires de Almeida é socióloga e militante da Marcha Mundial das Mulheres em São Paulo.
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