Por Victor de la Fuente, no Le Monde Diplomatique Brasil *
Chile, Costa Rica e El Salvador foram os países da América Latina com menor número de protestos entre 2009 e 2010. (1) Mas em 2011 essa situação mudou para os chilenos. As gigantescas mobilizações estudantis fizeram a sociedade despertar depois de décadas de letargia e resignação com a ideia de que não havia alternativa ao neoliberalismo. Durante os vinte anos do governo da Concertação, houve mobilizações populares e estudantis sob a presidência de Michelle Bachelet, como a de 2006, conhecida como a “Revolução dos Pinguins” (pela cor escura do uniforme e o branco das camisas dos estudantes de ensino público). Os protestos, contudo, eram menos multitudinários que os atuais, com demandas mais limitadas e setoriais. A organização social que se expressava com tanta força durante a ditadura, nos protestos contra o governo de Pinochet, foi desarmada, e muitos de seus dirigentes, cooptados para atividades ligadas a governos estaduais e municipais.
Durante duas décadas, a Concertação administrou o sistema neoliberal e levou a cabo o processo generalizado de privatização – em particular da água, iniciado por Pinochet, e do cobre, com a abertura de novas explorações mineiras por transnacionais e a redução do papel da estatal Codelco, que passou a ser responsável por apenas um terço das exportações do mineral. A Concertação realizou algumas reformas na Constituição de Pinochet, mas não a substituiu, mantendo sua essência antidemocrática. É preciso reconhecer que, no plano social, o partido diminuiu os índices de pobreza e extrema pobreza, mas, por outro lado, as desigualdades se acentuaram, levando o Chile à lista dos quinze países mais desiguais do planeta. (2) A Concertação usou a imagem positiva de ter contribuído para o fim da ditadura para manter o que se chamou de “tranquilidade nacional”.
O mal-estar e as críticas da população foram se acumulando e o endividamento dos estudantes também. A injustiça do sistema se fez flagrante com a chegada de Sebastián Piñera à presidência, em março de 2010, com um governo abertamente de direita, que administra o país como uma empresa.
O despertar de 2011
Em maio de 2011 começaram a soprar os ventos da mudança. Milhares de pessoas saíram às ruas – em Santiago e em outras cidades – contra o projeto HidroAysén para a construção de cinco megarrepresas na Patagônia. Pouco antes, importantes movimentos regionais tinham se manifestado, como o de Magalhães contra a alta do gás e o de Calama para obter benefícios da produção de cobre naquela zona. Em seguida, no verão de 2012, as manifestações multitudinárias da Mesa Social de Aysén levaram a luta ao ápice, não somente pela resistência à repressão, mas também pela pauta – “seu problema é meu problema” –, que superava a reivindicação meramente setorial ou corporativista.
Outras mobilizações sociais regionais ocorriam paralelamente, como em Freirina e Caimanes, com destaque para a luta dos Mapuches em Araucanía, com greve de fome dos indígenas e recuperação de suas terras. Somaram-se aos combates outras reivindicações: os afetados pelo terremoto de fevereiro de 2010 cobravam auxílio, os sindicatos do cobre paralisaram as minas, marchas reivindicavam o direito à diversidade sexual e o fim da discriminação. Mas foram os estudantes secundaristas e universitários – com suas greves maciças, manifestações gigantescas e ocupações de escolas para exigir uma educação pública gratuita e de qualidade – que transformaram a situação, deram outra dimensão aos protestos sociais e acuaram o governo de direita.
O movimento estudantil se lançou contra as bases do sistema neoliberal ao reivindicar o papel do Estado e protestar contra a mercantilização da educação, exigindo o fim do sistema educacional herdado do regime militar, baseado no lucro. Para conquistar as mudanças de fundo, propuseram a realização de uma assembleia constituinte para elaborar uma nova Carta. Os estudantes pediam ainda a renacionalização do cobre como forma de financiar a educação gratuita, além de uma reforma tributária – para forçar os setores mais ricos a realmente pagar impostos – com o mesmo fim.
Em 2012, as mobilizações e marchas estudantis continuaram, embora menos multitudinárias. Os estudantes não podiam perder mais tantas aulas após um ano em que faltaram quase metade do período letivo, mas os movimentos sociais não se desmobilizaram e mantiveram suas lutas.
A retomada de 2013
No dia 9 de abril deste ano, os trabalhadores do cobre fizeram uma greve e, ao lado de reivindicações particulares da categoria, pediram a renacionalização do mineral. Dias antes, os trabalhadores portuários haviam paralisado os principais portos do Chile, assim como os funcionários do Teatro Municipal de Santiago e da Rádio ADN, na capital, também haviam parado. No dia 11 de abril, os estudantes voltaram às ruas: mais de 200 mil pessoas participaram da manifestação em Santiago e em outras regiões, repetindo 2011. Nesses novos levantes, cresceu a participação de trabalhadores e associações sociais, aumentando a lista de reivindicações.
No início de abril, representantes das assembleias territoriais e cidadãs, desde Antofagasta até Aysén, se reuniram em Freirina para coordenar a agenda de lutas. Participaram movimentos de diversos setores (colonos, ambientalistas, estudantes, trabalhadores) que buscam mudanças desde a base. (3)
A manifestação do Dia Internacional do Trabalhador, em 1º de maio, foi multitudinária. No sábado seguinte, 4 de maio, houve mais uma demonstração de luta cidadã, dessa vez pela saúde: a “marcha dos doentes” exigiu subsídio estatal para a aquisição de remédios.
A Central Unitária dos Trabalhadores (CUT) organizou uma greve em 11 de julho, Dia da Dignidade Nacional, em memória à nacionalização do cobre sob o governo de Salvador Allende. Esse protesto, ao qual se somaram os estudantes, reivindicou, entre outras pautas, uma nova Constituição para o país a partir de uma assembleia constituinte, além de três grandes reformas (tributária, previdenciária e trabalhista).
Lutas e 40 anos
Em setembro, completam-se quarenta anos do golpe que depôs Allende e colocou fim ao projeto da Unidade Popular de instaurar o socialismo pela via pacífica. A feroz ditadura civil-militar transformou o Chile no primeiro laboratório mundial de aplicação de um neoliberalismo radical – logo adotado também pela Grã-Bretanha de Margaret Thatcher e por muitos outros países.
No Chile, recordar os quarenta anos do golpe não significa apenas denunciar esse momento histórico, mas também lutar pelos recursos naturais privatizados, assim como pelos sistemas de pensão e saúde. Neste ano eleitoral (em 17 de novembro há eleições presidenciais e parlamentares), os movimentos sociais declararam que continuam mobilizados para impor aos candidatos as reivindicações das ruas.
* Victor de la Fuente é diretor da edição chilena de Le Monde Diplomatique.
1 De acordo com o relatório “O protesto social na América Latina”, publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) em 16 de abril de 2013.
2 Pnud, “Relatório regional sobre desenvolvimento humano para América Latina e Caribe”, 2010.
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