Por Sergio Karpron*
O momento é de avanço do golpe, de exceção democrática, de recuo dos movimentos sociais e de crise no maior partido da esquerda brasileira. É o reflexo no Brasil do agravamento das crises mundiais de financeirização e do neoliberalismo com emergência de nacionalismos de direita e fascistas. Superar este momento do PT e de toda esquerda é decisivo para novas frentes e formas de luta e um novo patamar organizativo de resistência democrática, avanço de direitos e ação anticapitalista. Reorganizar o partido, o programa e se reconciliar com as bases sociais é tarefa imediata para abrir um novo período de lutas e utopias.
O Golpe é uma reação do poder econômico aos avanços sociais conquistados pela luta da esquerda democrática desde o fim da ditadura. A força dos movimentos sociais, a Constituição de 1988, os direitos sociais e as políticas públicas universais tiveram seu ápice nos governos Lula e Dilma. A distribuição de renda, puxada pela valorização do salário mínimo e pela geração de empregos, trouxe um mínimo de dignidade ao nosso povo, mas foi rechaçada pelos privilegiados de uma das piores distribuição de renda do mundo. Ancorada no avanço mundial do conservadorismo, no acirramento da disputa de rendas pelo baixo crescimento capitalista e nas fragilidades expostas pelo governo e o PT, a direita operou uma criminalização da esquerda e um duro golpe na democracia eleitoral para retroceder os avanços sociais e impor reformas neoliberais que ampliam a desigualdade e a concentração de renda.
Crítica e Autocrítica como método permanente
Um profundo e crítico balanço da dimensão da crise e, principalmente, dos avanços, limites e equívocos dos governos liderados pelo PT, é mais do que necessário. É fundamental para atualizar e redefinir a estratégia socialista de construção de uma revolução democrática que permita aos brasileiros alcançar o padrão civilizatório que lhes é historicamente negado. Muitas são as causas de nossa derrota, desde os limites impostos pela dominação do capital, pela mídia monopólica, pelo sistema político e até pelos Poderes atrelados a interesses particulares, todos submissos aos 1% mais rico. Mas a parte que nos cabe na derrota e no golpe, passa imediatamente: a) pelas opções erradas na condução econômica do governo, especialmente a guinada neoliberal que traiu o programa eleito em 2014; e b) pelos erros diante do poder financeiro corruptor, que deram combustível para legitimar socialmente o golpe.
Desinterditar o debate: governos e partidos também erram! A criminalização do PT e o Golpe foram por conta dos poucos mas significativos avanços sociais de nossos governos. Mas o combustível que permitiu e legitimou a criminalização e o golpe foi a corrupção que de fato existiu no governo. É verdade que a corrupção é essencialmente capitalista e que sempre foi usada para manter o status quo, mas ela não poder ser naturalizada pela esquerda socialista. É fato que ela se propagou em nossos governos e tornou também nossas campanhas milionárias. É fato que o dinheiro entrou e modificou as disputas internas do PT, especialmente via o PED. Grandes somas foram trampolim para filiados atrás de poder e mandatos parlamentares, corrompendo a democracia interna. Alguns até formaram fortunas individuais. Pois em nome da defesa do Governo e do PT e para não fortalecer os adversários (sic) interditamos este debate. Passamos uma ideia pública de que negávamos estes fatos. Negamos publicamente, para nossa base social e para nós mesmos. É impossível seguir em frente sem encarar estes problemas. A resposta das urnas em 2016 não foi um desagravo ao PT nem uma deslegitimação dos golpistas. Pelo contrário. Desde o chamado mensalão até a lava jato há um desgaste cumulativo e contínuo com deterioração da imagem do PT, perda de militantes e o afastamento de uma importante base social, especialmente nos setores médios, como universitários e servidores públicos. Se o PT ainda quiser ser um partido capaz de representar um projeto radicalmente democrático e socialista, precisa imediatamente se reconciliar com sua ética, seu programa e sua forma democrática para, então, se reconciliar com sua base social.
O PT deve um gesto de autocrítica pública pelo equívoco de ter deixado a corrupção do poder econômico invadir a vida partidária, a conduta de figuras públicas, o financiamento das campanhas e a sustentação de alianças em nome da governabilidade. Estas práticas jogaram o partido, seu programa e todos seus símbolos e conquistas na vala comum dos partidos tradicionais e assim traiu a confiança dos setores populares que apostaram em um novo projeto sem os vícios da corrupção do poder econômico. Se reconciliar com o povo é mais que um gesto de humildade. É recuperar a credibilidade histórica das conquistas para a esquerda voltar a ser uma referência de futuro para os brasileiros. Para o bem do PT, mas sobretudo das forças de esquerda, democráticas e socialistas, é preciso reconhecer publicamente erros e limites para superá-los.
A maioria da atual direção nacional do PT está se mostrando incapaz de reconhecer esta dimensão da crise e de fazer autocrítica, impedindo o partido de se reconciliar socialmente como uma organização democrática e confiável, tornando-o mais um partido tradicional de manutenção da ordem. O Congresso do PT precisa aprovar em suas resoluções o reconhecimento explícito que foi um equívoco ter deixado a corrupção financiar nossas campanhas, a disputa política interna, a construção de personalidades e, até, o enriquecimento pessoal. Esta é uma condição objetiva e preliminar, para os petistas tentarem voltar a andar de cabeça erguida, e assim recuperar a credibilidade de seu programa e mobilização social.
Uma organização realmente democrática e auto financiada. A institucionalização e o peso do dinheiro na vida partidária além de acomodar nas regras do poder econômico, tiraram muito do vigor rebelde, criativo e emancipador de nossas relações democráticas. É preciso revigorar nossas práticas democráticas, principalmente no partido, mas também nos sindicatos e centrais, nos diretórios estudantis, nas associações comunitárias e até nos mandatos parlamentares e nas estruturas de governo. As novas formas de luta da juventude, das ocupações, dos movimentos por alimentação e vida sustentáveis e pelos direitos da cidade ainda são incompreendidos pela esquerda e estão à margem de nossa forma organizativa e dos nossos programas de governo. Retomar o financiamento militante e renunciar privilégios institucionais são condições tanto para nos impor uma forma organizativa mais democrática, pedagógica e desatrelada das estruturas conservadoras do poder econômico como para nos aproximar dos anseios populares e das formas emergentes de luta. Dialogar e aprender com estas novas formas, compreender as experiências do Podemos na Espanha e o Bloco de Esquerda em Portugal pode ser oxigenador para uma esquerda capaz de ser revolucionária nas condições objetivas do século XXI.
Partido militante e uma frente ampla de massas
Construir uma ampla frente de massas é tarefa da esquerda democrática e socialista. Seja qual for o caminho que o PT optar, dificilmente recuperará o protagonismo que já teve na esquerda brasileira e mundial. Além do desgaste por conta da corrupção e da ofensiva criminalizadora da direita há uma profunda desmoralização dos sistemas políticos representativos. É preciso reinventar a forma organizativa de massas para fazer frente às novas condições objetivas. A discussão entre ‘partido de quadros’, ‘dirigente’ e ‘de massas’, tal como o PT a fez nos anos 1980/90 está superada. Pelo menos pela próxima década. A construção de uma democracia socialista exige uma nova síntese, que incorpore uma organização militante orgânica capaz de se incorporar em uma frente com partidos de esquerda, de movimentos sociais e até com ativistas autônomos e movimentos pontuais. Canalizar e fortalecer em uma frente todas as energias contra o sistema capitalista deve ser a prioridade.
Um partido militante, programático e sem pretensão hegemonista. A condição que o PT construiu nos anos 1980 de ser uma confluência da maioria dos movimentos sociais de esquerda, não está mais posta. É preciso reinventar a relação com as massas, com os movimentos de juventude, negros, LGBT, mulheres, com as novas formas organização, de participação e as novas tecnologias de comunicação. É necessário o exercício de construção de frentes e formas horizontais e de comunicação direta onde os partidos de esquerda sejam alguns dos protagonistas de uma ampla plataforma de massas, sem pretensão hegemonizadora.
Um programa socialista e radicalmente democrático.
Um partido orgânico, militante e com credibilidade precisa de um programa transformador, capaz de construir o caminho de desenvolvimento humano, social e ambiental de superação do capitalismo compatível com os desafios de finitude do planeta. Os limites do Lulismo não se deram apenas pela corrupção e o embate criminalizador da direita, nem pela resistência neoliberal e do poder financeiro. A opção pelo ajuste ortodoxo de 2015 foi decisivo para aprofundar a crise econômica, a volta do desemprego, a perda de ganhos salariais e com estes a perda de apoio popular do governo Dilma e a aceitação do Golpe.
Mas ainda antes de 2015 alguns dilemas advindos do governo já estavam postos. A Carta aos Brasileiros foi o capítulo mais recente das históricas conciliações de classe no Brasil. Dela decorreu uma estratégia de alianças e sustentação parlamentar do governo que implicava em não ter rupturas com estruturas de poder e interesses conservadores. Em vez de ‘empoderamento’ popular e ‘conquistas’ via lutas, tivemos governos que ‘criaram’ programas sociais. Sem falar na ausência das reformas e no poder financeiro intocado. Quando no primeiro governo Dilma se ousou derrubar a taxa de juros, os poderes conservadores inciaram uma oposição que culminou no golpe. Apoiaram o golpe mesmo os juros sendo uma pauta de certo empresariado nacional e o governo ter feito desonerações de tributos por estes pedidos, que, aliás foi em prejuízo de continuidade dos investimentos públicos o que ajudou a derrubar a economia. Mas isto apenas nos abre um roteiro de questões que precisam ser respondidas com o aprendizado deste período, para que possamos rearmar a esquerda de um programa transformador.
Qual nossa estratégia para conseguir apoio às reformas necessárias? Por onde construir empoderamento popular sobre os governos e instituições? Qual o programa que seria possível garantir a distribuição de renda de forma sustentada? É possível manter esta estratégia democratizadora criando consumidores? A aposta no mercado interno é suficiente? O crescimento continuado da economia é condição fundamental? Como manter uma estratégia de crescimento e distribuição diante do poder da capital financeiro e dos oligopólios mundiais? Há espaço para uma aliança desenvolvimentista com setores da burguesia? Com quais? Qual o papel do Estado na economia e qual o papel do setor privado? Como viabilizar a expansão de uma economia não estatal nem voltada para o lucro e à acumulação, uma economia associativa, solidária e autogestionária? Qual o papel dos governos, dos movimentos sociais e das organizações econômicas? Como conciliar as condições básicas econômicas com os limites ambientais, respeito às culturas, direitos humanos, de raça, gênero e sexuais? Enfim quais as condições para uma revolução democrática anti capitalista? Estas são apenas algumas das questões que precisaremos responder para retomar a condição de um novo ciclo de governo e de transformações sociais e econômicas que radicalmente democráticas. Mas para isto, é pré condição reorganizarmos um partido com credibilidade e uma frente de massas capaz de lutar e produzir estas repostas.
*Sergio Kapron é dirigente da DS no Rio Grande do Sul e doutorando em Economia.
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